A CAUSA DE PEDIR NA MODERNA JURISPRUDÊNCIA PREVIDENCIÁRIA
Após defender que a causa
de pedir é formada pelo conjunto de fatos essenciais (acontecimentos concretos
da vida) contemplados na situação de vantagem objetiva que servem de base à
obtenção de consequências jurídicas pretendidas pela parte no processo em um
determinado momento no tempo e no espaço, Darci Guimarães Ribeiro explica:
“[...]
uma vez mudado o fato constitutivo do qual a parte extrai as consequências
jurídicas necessárias para configurar a situação de vantagem jurídica,
estaremos diante de uma diversa causa de pedir e, consequentemente, de uma
diversa pretensão processual”.[1]
Dentro do processo, a
mudança de fatos nem sempre acarreta uma mudança da causa de pedir.[2]. Em
poucas palavras, dentro do processo é possível a ampliação da causa de pedir. O
objeto da decisão é sempre maior que o objeto do processo (como sinônimo de
pretensão processual), sendo que o novo regime de formação dinâmica da coisa
julgada resolve o problema, alcançando (a coisa julgada) também aquelas
questões prejudiciais levantadas ao longo do processo, enfim, todo o objeto do
debate via contraditório. Se eu posso ampliar a causa de pedir, isso resolve o
problema da reafirmação da DER, ou melhor, de quem entende que os fatos
supervenientes devem guardar pertinência com a causa de pedir, já que a
atualização de um período especial é congruente ao direito material (ao verbo
que o traduz) e à vontade manifestada desde a petição inicial.
Após o trânsito em
julgado, sustentamos que fatos essenciais (eg.: agentes nocivos
diversos) não discutidos em contraditório na demanda anterior interferem na
caracterização de nova causa de pedir, o que autoriza uma nova ação. Assim se
poderia acabar com a necessidade de relativizar a coisa julgada, o que coloca
nas mãos do juiz a escolha sobre respeitar, ou não, a garantia constitucional.
Neste nível, “o que não
existe não precisa ser relativizado”, ou seja, a substituição por outro
conjunto de fatos transforma a ação primitiva em outra.[3] Exemplos em matéria
previdenciária não faltam, mormente quando o juiz indefere a prova pericial e
lança seu juízo de cognição apenas sobre as informações prestadas pela empresa
no formulário para requerimento da aposentadoria especial.
A ficção da eficácia
preclusiva da coisa alcança somente as defesas e alegações que poderiam ter
sido deduzidas na demanda anterior, e não questões de fato que não foram
produzidas. No julgamento da Apelação Cível 5017094-37.2014.4.04.7112/RS, de relatoria da Des. Taís
Schilling Ferraz, essa questão foi enfrentada a partir de uma argumentação
jurídica superlativa na construção e justificação dos novos fundamentos que
embasam a mudança jurisprudencial. No caso, a nova causa de pedir tinha como
fundamento um fato novo, qual seja, a exposição a agentes químicos. Esta
exposição não foi objeto de alegação nem de análise na ação anterior. Com
efeito, ao judiciário cabia analisar uma nova questão, e não incursionar sobre
questões de fato objeto da demanda anterior.
A medida bem se ajusta ao
art. 503 do Código de Processo Civil, que limita o alcance da coisa julgada,
quer dizer, o alcance da imutabilidade da sentença anterior, ao limite das
questões que decidiu. Tudo isso foi resumido na ementa:
PREVIDENCIÁRIO E
PROCESSUAL CIVIL. COISA JULGADA. EFICÁCIA PRECLUSIVA. CAUSA DE PEDIR NÃO
EXAMINADA EM DECISÃO ANTERIOR. PRINCÍPIOS DA SUBSTANCIAÇÃO DA DEMANDA E DA
FUNDAMENTAÇÃO QUALIFICADA DAS DECISÕES. Questões de fato que não foram
deduzidas na ação anterior, mas que guardam autonomia relativamente às que
foram alegadas, não ficam cobertas pela preclusão, porque seu exame, para fins
de procedência ou improcedência do pedido no novo processo, não significará
tornar sem efeito ou mesmo rever a justiça da decisão dada na primeira demanda
sobre as alegações que lá foram lançadas e resolvidas. Outros fatos serão
examinados, ainda que com vistas a um mesmo pedido. Estender-se a eficácia
preclusiva da coisa julgada para além da questão de fato suscitada na demanda
anterior, de forma a alcançar outras questões de fato que, individualmente,
poderiam levar ao reconhecimento do mesmo direito, é violar o princípio da
substanciação da demanda, o princípio da demanda e a própria garantia de acesso
ao Poder Judiciário em caso de lesão a direito. Entendimento que vem reforçado
no novo Código de Processo Civil, ao estabelecer como princípios a
fundamentação qualificada e o contraditório efetivo. Incidência do art. 503 do
Código de Processo Civil que limita o alcance da coisa julgada às questões
decididas no processo anterior. Se, na demanda anterior, houve pronunciamento
quanto à exposição do autor a ruído, a alegação, em nova ação, de que foi
exposto no mesmo período a agentes químicos, ainda que com vistas ao mesmo
pedido - reconhecimento da especialidade do tempo de serviço - não implica em
violação da coisa julgada ou na sua eficácia preclusiva. Ao decidir sobre o
fato ora sob apreciação, não haverá incursão sobre as questões de fato objeto
da ação anterior e sobre as conclusões delas decorrentes. (TRF4, AC
5017094-37.2014.4.04.7112, Sexta Turma, Rel. Taís Schilling Ferraz, j. aos
autos 05.07.2018, grifo nosso)
Em outro processo, a
Desembargadora Tais Schilling Ferraz identificou, de forma pormenorizada os
fatos não examinados na demanda anterior:
Acompanho
o ilustre relator com ressalva de fundamentação.
Em relação ao
reconhecimento da coisa julgada, verifico que na ação anterior houve o
afastamento do reconhecimento da natureza especial não só pelo ruído, mas
também por quaisquer outros agentes físicos, químicos e biológicos, como se
compreende do trecho da sentença a seguir transcrito:
‘Também não reconheço
como atividades especiais os períodos laborados de 02/02/1998 a 12/06/2001 e de
04/07/2001 a 31/12/2003 na empresa Calçados Azaléia S/A, pois o autor exercia
suas funções no setor "injetora de eva" e ficava exposto a ruídos
considerados salubres pela legislação aplicável na época, eis que inferiores a
85 decibéis, conforme se analisa nas DSS8030 e laudo das fls. 25, 27 e 38-40.
Além disso, segundo tais documentos, não foram encontrados outros agentes de
natureza física, química ou biológica nesses períodos.’
Não há como se
admitir que a questão seja agora rejulgada, reconhecendo-se a especialidade
pelos mesmos agentes agressivos antes afastados.
Contudo, cabível o
afastamento da coisa julgada e reconhecimento da natureza especial dos períodos
em questão pelo enquadramento na Súmula n. 198 do extinto TFR, tendo em vista a
constatação de que o trabalho exercido pela parte autora se dava em ambiente
onde havia armazenamento de líquidos inflamáveis, a tornar o trabalho
periculoso. Na demanda precedente nada foi dito com relação à periculosidade
existente no local em que o demandante desempenhava suas tarefas diárias.
(TRF4, AC 5002237-27.2016.4.04.7108, SEXTA TURMA, Relator JOÃO BATISTA PINTO
SILVEIRA, juntado aos autos em 19/10/2018)
O que há de comum nesses
casos? Estamos diante de fatos autônomos com relevância jurídica capaz de dar
vida a uma nova petição, uma nova causa de pedir e, consequentemente, uma nova
pretensão processual. Não sem razão, Crisanto Mandrioli assevera: “A
identidade, de fato, ou é total ou não é identidade”.[4]
Os limites da coisa
julgada alcançam unicamente as consequências jurídicas pretendidas pela parte
no processo, e não às normas jurídicas que tenham sido invocadas, tampouco a
entidade fenomênica dos fatos em si mesmos considerados, como fica claro no
art. 504 do CPC. Darci Guimarães Ribeiro explica que a irrevogabilidade e
a indiscutibilidade “[...] se dá sobre estas consequências
jurídicas afirmadas no processo, e não sobre fatos fenomicamente considerados,
tanto é assim que a força da coisa julgada material alcança unicamente o efeito
declaratório”.[5]
Aqui se reforçou, uma vez
mais, que para exercer sua função de transformar a realidade social, o Poder
Judiciário precisa olhar para os fatos, sem desconsiderar as garantias
constitucionais.
Escrito por Diego
Henrique Schuster
___________________________________
Bah1:
RIBEIRO, Darci Guimarães. Análise epistemológica dos limites objetivos da coisa
julgada. In: STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo; ENGELMANN, Wilson (Org.). Constituição,
sistemas sociais e hermenêutica: anuário do Programa de Pós-graduação em
Direito da UNISINOS: mestrado e doutorado: n. 9. Porto Alegre: Liv. do
Advogado; São Leopoldo: UNISINOS, 2012, p. 81-86. Francisco de Paulo Baptista
afirma que a causa de pedir é “o fato ou ato de que resulta direta e
imediatamente o direito, ou a obrigação, que constitui o objeto da ação ou
execução”. BAPTISTA, Francisco de Paulo. Teoria e prática do processo civil e
comercial, p. 135-136.
Bah2:
SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de processo civil: Processo
cautelar (tutela de urgência). Rio de Janeiro: Forense, 2007, v. 2, p. 491.
Bah3:
HIDALGO, Daniela Boito Maurmann. Relação entre direito material e
processo: uma compreensão hermenêutica: compreensão e reflexos da afirmação
da ação de direito material. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 234.
Bah4:
MANDRIOLI, Crisanto. Corso di diritto processuale civile, Torino:
Giappichelli, 2000, v. I, nº 29, p. 100.
Bah5: RIBEIRO, Darci Guimarães. Análise
epistemológica dos limites objetivos da coisa julgada. In: STRECK, Lenio
Luiz; ROCHA, Leonel Severo; ENGELMANN, Wilson (Org.). Constituição,
sistemas sociais e hermenêutica: anuário do Programa de Pós-graduação em
Direito da UNISINOS: mestrado e doutorado: n. 9. Porto Alegre: Liv. do
Advogado; São Leopoldo: UNISINOS, 2012, p. 87.
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