A JURISPRUDÊNCIA PREVIDENCIÁRIA PERDIDA EM PARADOXOS E CONTRADIÇÕES: O RESPEITO AO CONTRADITÓRIO COMO UMA ESCOLHA DO JULGADOR

 

Quais as razões para se crer nas informações estampadas no PPP; quais as razões para se duvidar de evidências sérias do labor especial?

Óbvio é aquilo sobre o qual não nos perguntamos mais. No entanto, tempos em tempos é importante lembrar que as empresas insistem em disponibilizar as melhores informações sobre o meio ambiente do trabalho, mormente por motivos fiscais (tributários). Existe, pois, um conflito de interesses já capturado por decisões judiciais, ou seja, a partir de uma linguagem pública, como se verifica no Tema 213/TNU:

5. Inexistência de presunção de veracidade das informações do P.P.P. A aferição da eficácia do EPI ocorre, em princípio, por meio das informações lançadas pela empresa no PPP, que, apesar da grande relevância probatória, não estão acobertadas por presunção de veracidade legal ou lógica. Não há presunção legal, pois em momento algum o legislador a estabelece. Não há presunção lógica, a lei cria um paradoxo: o direito do segurado à aposentadoria especial depende de uma prova produzida pela empresa que terá sua carga tributária majorada caso o direito seja reconhecido. Esse paradoxo impede o reconhecimento de uma presunção lógica de veracidade das informações contidas no PPP, especialmente aquelas sobre a eficácia do EPI. Por esses motivos, o PPP não é dotado de uma especial força probante. É um elemento a ser desafiado, ponderado, superado ou reafirmado pelo conjunto probatório que formará o convencimento do julgador sobre as condições especiais de trabalho.

[...]

52. Ocorre que, se a atividade exercida pelo segurado a serviço da empresa permitir a concessão de aposentadoria especial aos 15, 20 ou 25 anos, a alíquota da contribuição é acrescida de 12%, 9% ou 6%, respectivamente, incidente sobre a remuneração do segurado sujeito às condições prejudiciais à saúde ou à integridade física. Assim, por exemplo, se uma empresa tem uma alíquota básica de 2%, mas seus empregados trabalham com exposição a ruídos acima de 85 dB(A), será tributada em 8% (2%+6%).

53. O legislador cria um paradoxo: o direito do segurado à aposentadoria especial depende de uma prova produzida pela empresa que terá sua carga tributária majorada caso o direito seja reconhecido.

54. Esse paradoxo impede o reconhecimento de uma presunção lógica de veracidade das informações contidas no PPP, especialmente aquelas sobre a eficácia do EPI.

55. O PPP é um relevante elemento de prova das condições de trabalho necessárias à concessão da aposentadoria especial. Porém, não é dotado de uma especial força probante. É um elemento a ser desafiado, ponderado, superado ou reafirmado pelo conjunto probatório que formará o convencimento do julgador sobre as condições especiais de trabalho.

Na prática, contudo, o formulário PPP continua sendo tomado como prova absoluta da não exposição a agentes nocivos. Contradições ao infinito, quando a empresa está desativada, não é possível a prova pericial, o que viola a Súmula 106/TRF4; quando a empresa está ativa, igualmente, não é possível a prova pericial, tampouco a aplicação da laudos por semelhança. Fica fácil, perceber, que tudo não passa de um pretexto para não autorizar a prova pericial (a fundamentação é só um detalhe, logo, não se verifica tais contradições e/ou incoerências internas), ou seja, continua valendo, implicitamente, a orientação de que toda e qualquer inconformismo deve ser impugnado na esfera trabalhista ou, até mesmo, criminal, o que inviabiliza a demonstração do labor especial e fragiliza, sobremodo, a autonomia do processo previdenciário.

É só pensar nos adicionais de insalubridade ou periculosidade. A partir da Lei 9.732/1998, que emprestou nova redação ao art. 58, da Lei 8.213/91, tem-se a exigência de que o Laudo Técnico de Condições Ambientais do Trabalho (LTCAT), com base no qual é preenchido o Perfil Profissiográfico Previdenciário (PPP), a ser fornecido pelo segurado, como um dos meios de prova da atividade especial, observe os termos da legislação trabalhista, como é o caso da Norma Regulamentar (NR) 15, expedida pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Para José Antonio Savaris, a insalubridade previdenciária parece coincidir agora com a insalubridade trabalhista, ainda que a doutrina previdenciária possa ter uma leitura diferente daquela operada pela trabalhista.[1]

Decisões vêm levando os "adicionais de suicídio" a sério, seja para confortar a especialidade do labor: “[...] considerada também a percepção de adicional de periculosidade (evento 1, CTPS6, p. 4 e 11-12), merece ser mantida a especialidade reconhecida em sentença”. (TRF4, AC 5007228-92.2020.4.04.7112, DÉCIMA PRIMEIRA TURMA, Relator VICTOR LUIZ DOS SANTOS LAUS, juntado aos autos em 09/08/2024); seja para confirmar a não exposição a agentes nocivos: “Ademais, conclui pela ausência de direito ao adicional de insalubridade considerando que a atividade não se insere como de risco.” (TRF4, AC 5009118-11.2020.4.04.7001, DÉCIMA PRIMEIRA TURMA, Relatora para Acórdão ELIANA PAGGIARIN MARINHO, juntado aos autos em 23/10/2024). Não vou analisar, aqui, o acerto de cada decisão - não é isso o que interessa no presente artigo.

O que me interessa compartilhar é que o recebimento de adicionais pode ser um critério de dúvida relevante. Um critério de desempate? Não. Não necessariamente, o tempo especial irá coincidir com as pessoas que recebem adicionais de remuneração, mas este será sempre um indício de exposição a agentes nocivos – capaz de justificar a necessidade de prova pericial.

De um lado, o juiz consciente do bem fundamental em jogo. Este considera o adicional como uma evidência séria do labor especial, devendo, por isso, a dúvida ser computada em favor do segurado, com a autorização da prova pericial ou aplicação de laudo por semelhança. Ele sabe que procurar o verdadeiro não é procurar o desejável, mas, sim, afastar a dúvida, para o bem ou para o mal. O indeferimento da prova pericial não é um problema única e exclusivamente do processo, mas, principalmente, do direito material. Não se trata apenas de alijar um direito processual do autor, mas prejudicar o reconhecimento do seu direito a um benefício previdenciário. Do outro, o juiz que só lembra do adicional para legitimar um resultado que pretende de antemão, qual seja, apostar no PPP como prova absoluta da não exposição a agentes nocivos. O julgador escolhe no que acreditar.

O mesmo vale para a indicação dos códigos "01" e "04" no campo da GFIP, bem assim a abreviação “IEAN” no CNIS: “A importância de dito documento, CNIS, com a indicação de possível atividade especial, poderia ou deveria ter o condão de sugerir ao magistrado uma condução processual compatível com esse, ao menos, indício da existência de atividade especial reconhecida posteriormente pela própria empresa.” (TRF4, ARS 5040858-04.2021.4.04.0000, TERCEIRA SEÇÃO, Relator MÁRCIO ANTÔNIO ROCHA, juntado aos autos em 08/11/2022).

No acórdão que nega o direito, a preliminar de cerceamento de defesa é afastada sob o seguinte fundamento: “os PPPs que serviram de base para a sentença foram preenchidos sem inconsistências, bem como foram devidamente assinados pelos responsáveis.”. Ora, em poucos segundos, dá para encontrar na jurisprudência do TRF4 coisas como “a adoção de procedimento diverso, principalmente quando a prova existente é unilateralmente elaborada, convém anotar, fragiliza a eficácia material do devido processo legal, acarretando, ainda, cerceamento de defesa”. Essa decisão não merece observância?

Num suposto conflito entre as informações do PPP e o laudo pericial, o tribunal dá preferência a este último, porquanto produzido com pleno contraditório, vale dizer: já que prova pericial conta com a participação das partes, mediante a formulação de quesitos/perguntas; ao mesmo tempo, na maioria dos processos, não se autoriza a prova pericial, prevalecendo o PPP (produzido fora do processo), sem que isso seja considerado uma afronta às garantias processuais, entre elas, o efetivo contraditório!

A jurisprudência previdenciária está perdida em paradoxos e contradições, ficando o segurado à própria sorte. Tudo vai depender do juiz, do rito, da turma, enfim. O respeito à dúvida, ao contraditório, continua sendo tratado como uma opção/escolha do julgador, que acha que pode conduzir o processo conforme a própria consciência.


Bah1: SAVARIS, José Antonio. Direito processual previdenciário. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2011. p. 255.

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