O DIREITO PREVIDENCIÁRIO IGNORA A CIÊNCIA E AS GARANTIAS PROCESSUAIS CONSTITUCIONAIS

 

No Direito Trabalhista, a prova pericial é condição de possibilidade para se atestar a insalubridade, ou não, das condições de trabalho. No Direito Ambiental, o direito analisa juridicamente as observações técnicas descritas nos laudos periciais, a fim de estabelecer a configuração do risco ou dano ambiental, que não está adstrito ao respeito aos limites fixados para a emissão de materiais ou substâncias. No Direito Previdenciário, alguns juízes entendem que um documento produzido fora do processo, pela própria empresa, é suficiente para declarar, de forma definitiva, a inexistência do direito. 

Isso revela que estamos ignorando o acoplamento estrutural que se dá entre a produção de laudos periciais (prova técnica) pela ciência e a configuração jurídica do risco potencial à saúde.  Sob um enfoque exclusivamente ambiental, Délton Winter de Carvalho explica: “O direito constrói observações e decisões formadas sobre a diferenciação entre validade e invalidade, enquanto os laudos periciais são confeccionados a partir de uma comunicação científica que tem por fundamento a distinção entre verdadeiro e falso.

A credibilidade do formulário sequer pode ser verificada, pois a presunção – a priori – de que o documento é suficiente vem antecipar a valoração do resultado de qualquer prova em sentido contrário, como é o caso da prova pericial, a qual estaria direcionada para a aquisição de conhecimento, até mesmo, sobre a capacidade do EPI absorver os impactos ambientais, em razão da tolerabilidade daquele agente nocivo presente no meio ambiente de trabalho. A presunção – em desfavor do destinatário das normas previdenciárias – ignora qualquer dúvida acerca das repercussões que determinado agente nocivo causa ao trabalhador.

O Direito Previdenciário praticado no dia-a-dia ignora a ciência, a evolução das investigações e pesquisas sobre determinados assuntos, dando ênfase ao processo, dentro do qual a complexidade é reduzida a quase zero, mormente no âmbito dos Juizados Especiais Federais. Como se a decisão não pudesse ser postergada na espera de maiores provas, alguns juízes apostam tudo na validade jurídica do formulário produzido fora do processo, sem, portanto, observar os princípios da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal (art. 5º, LIV e LV da CF).

O sistema jurídico parece que ainda não compreendeu a sua função na solução dos conflitos previdenciários (entre INSS, empresa e segurado), quer seja por tomar o dano como referência (esse é um problema para outro artigo); quer seja por ignorar o papel da prova pericial na análise dos riscos, com especial atenção para o contraditório enquanto garantia de influência (CPC, art. 369). A doutrina ambiental nos deixa com muita inveja: “Assim, a atribuição de sentido a um evento como dano (ou risco ambiental) dependerá, por evidente, de um processo de integração de informações multidisciplinares que, por sua vez, atuarão com condição de possibilidade probatório para a formação da convicção judicial.”

Em muitos casos, a demonstração do labor especial depende quase que de forma exclusiva da prova pericial e das informações trazidas pelo perito judicial. No entanto, há uma nítida orientação limitando a realização da prova pericial. Vale lembrar da fundamentação padrão no sentido de que todo e qualquer inconformismo deve ser impugnado na esfera trabalhista ou criminal. Isso fragiliza sobremodo a autonomia do direito previdenciário. Mesmo quando o formulário não observa os critérios analíticos determinados, normativa e tecnicamente, pela NHO-01 e/ou NR-15, a ponderação da credibilidade da informação fornecida é feita em prejuízo do segurado, e não como justificativa para a realização da prova pericial.

Na impugnação do formulário PPP, atacam-se questões (informações) não jurídicas, sobre as quais se tenta estabelecer o contraditório, em razão da omissão a agentes nocivos, a ineficácia do EPI etc. Nesse nível, a prova pericial, enquanto garantia de um devido processo (legal e previdenciário), é condição para a decodificação e construção técnica do sentido jurídico de risco, ou melhor, para a declaração do labor especial pelo magistrado.

A discussão vai muito além da visão solipsista de alguns juízes, que acreditam serem os únicos destinatários da prova – aqui se poderia falar do juiz (im)parcial que só indefere a prova pericial. Além de fornecer mais capacidade cognitiva ao julgador, a prova pericial serve para fornecer mais capacidade cognitiva ao próprio direito, para analisar as informações científicas e técnicas e, assim, atribuir uma valoração probatória aos formulários fornecidos pela empresa – permitindo a ponderação mais atenta sobre sua credibilidade, em face do conflito de interesses em jogo.

A essa altura, é possível não apenas a comparação, mas uma adaptação dos critérios procedimentais que Délton Winter de Carvalho defende para tornar mais equilibrado e sensível o convencimento judicial, com especial atenção para o que o autor denomina de contexto garantidor:

 

(i)            do direito de participação das partes e de terceiros interessados;

 

(ii)         do contraditório, abrindo-se a possibilidade de uma dialética que, por meio da contestação ou reflexão, permita um aprofundamento das análises técnicas,

 

(iii)       do devido processo legal, assegurando uma atenção ao rito previsto para processos de tomadas de decisão judicial ou administrativa;

 

(iv)       do devido processo ambiental, que, por sua vez, consiste na necessidade de ser assegurado a qualquer processo ou procedimento de produção ou instrução probatória uma orientação para a garantidora de um rito com a função de ser eficaz e temporalmente adequado para a ordem constitucional de assegurar às presentes e futuras gerações um meio ambiente ecologicamente equilibrado;

 

(v)         do devido processo científico que deve ser adotado sempre com o escopo de obtenção das melhores e mais atuais informações científicas.

 

O Direito Previdenciário tem muito a aprender com outros ramos do direito e outras áreas de conhecimento. Para isso, o direto não pode se fechar em si mesmo. Note-se que os problemas aqui descritos (ainda) gravitam em torno de riscos concretos (conhecidos), onde a prova pericial seria suficiente para declarar, de forma minimamente segura, a existência (ou não) do direito. O que dirá trabalhar com fatos para os quais não se possui previsão legal (riscos abstratos/desconhecidos)!

 

Escrito por Diego Henrique Schuster

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Bah: Este artigo é resultado de um diálogo com a doutrina: CARVALHO, Délton Winter de. Gestão jurídica ambiental. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2017. p. 443-452.

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