JEF: UM LUGAR (IN)COMUM PARA FAZER A FRASE FEITA E SENTIR OS EFEITOS COLATERAIS

 

Alguns juízes se escondem atrás de frases feitas ...escondem o caso concreto de si mesmos para mirar na quantidade. Existe no JEF um “combo” de frases que têm como finalidade fazer deduções e deixar de fora as individualidades e as particularidades do caso concreto. Ao mesmo tempo “buscam aliviar o juiz da carga representada pelos problemas da fundamentação da norma [...], porque este ‘problema’ já vem resolvido por um discurso de fundamentação (anterior)”.[1]

Assim, por exemplo, temos: “dada a diversidade de atividades realizadas pelo autor, a exposição aos alegados agentes nocivos ocorria de forma intermitente”; “o mero contato com cimento não caracteriza a atividade especial”; "o PPP não apresenta inconsistências”, para citar apenas estas (que não dão alternativa para o autor). Sobre esta última a 5ª Turma do TRF4 confirmou: “A expressão 'sem inconsistências' não se caracteriza como ‘conceito jurídico’ [...]” (TRF4, AC 5005331-34.2017.4.04.7112, QUINTA TURMA, Relator ADRIANE BATTISTI, juntado aos autos em 25/05/2022).

Algumas são irritantemente contraditórias, mormente quando apresentadas na mesma decisão: “dispensável a prova pericial, por já constar dos autos elementos suficientes para o julgamento da lide”; “o PPP é o documento hábil a comprovar a especialidade da atividade e não havendo, no formulário trazido aos autos, informação acerca de agentes nocivos vinculados à atividade, inviável o reconhecimento do período como especial”. Mesmo quando ciente de que a prova pericial se apresenta como condição de possibilidade, já que a empresa não possui nenhum compromisso com a indicação do nível de tensão (acima de 250 volts): “em relação a alegada periculosidade, não restou comprovado o nível de voltagem”. Ao passo que se nega a prova testemunhal, “não havendo informações acerca das atividades desempenhadas pela parte autora, impossível a utilização de laudo técnico de outra empresa ou realização de perícia judicial.”

Note-se bem – bem mesmo: o juiz atribui ao segurado o ônus da prova (CPC, art. 373, I), mas nega a prova testemunhal; se recusa a aplicar os laudos por semelhança, até mesmo laudos  resultantes de perícia judicial na mesma empresa, sendo, portanto, possível se aferir aos agentes nocivos, em razão do mesmo ramo de empresa, setor, atividades, condições e local de trabalho; e, simultaneamente, julga improcedente o pedido, sem determinar a realização da prova pericial expressamente requerida.

Estava escrevendo (outro dia) uma crítica às posturas analíticas, em razão da doutrina previdenciária se contenta (assim como seus leitores) com um olhar descritivo, apostando (quase) sempre numa abordagem dogmática - o que retroalimenta a ideia de que o Direito é o que os tribunais dizem que é. Concordava eu: Devemos atribui um caráter funcional aos conceitos de direito. Exemplifico: só se pode compreender adequadamente o termo “hospital” se considerado para que serve um hospital; descrever um estabelecimento como um hospital implica em reconhecer a promessa de cuidado.[2] Não é o mesmo com a aposentadoria especial, que talvez prometa, no mínimo, uma promessa de prevenção contra danos à saúde e/ou à integridade física?

Seria engraçado se não fosse triste, mas as frases supramencionadas têm como finalidade negar o direito, custe o que custar! Assim, o JEF se transformou no lugar perfeito para se fazer a frase feita e sentir os efeitos colaterais de uma jurisdição que conduz o processo ao arrepio dos mais comezinhos princípios constitucionais processuais. Afinal: “Sem contraditório, tudo é possível”[3].

Dentro dos seus muros, sedimentados pela subjetividade assujeitadora de (alg)uns julgadores, as garantias processuais e o direito dos segurados não encontram abrigo eficaz, por falta de uma pré-compreensão do que seja uma jurisdição constitucional e/ou sua função no interior de um Estado Democrático de Direito. Se é possível admitir a dificuldade de definir o que é “justiça”, é fácil identificar um espaço no qual essa ideia está ausente. O que falta nesse espaço é sempre o respeito às garantias processuais e ao direito fundamental em jogo.

Acho que já escrevi mais de mil páginas sobre o tema (vide o capítulo 5 do meu livro “Direito Previdenciário do Inimigo”), sempre acreditando na possibilidade de um dia o JEF ser um lugar diferente. Isso por acreditar em alguns juízes comprometidos com a causa. Não obstante, a diferença entre o que se pensa e o que se faz; entre o que se fala nos livros/salas de aula/palestras e a forma como se decide enquanto juiz, às vezes, nos faz perder as esperanças. Não há sequer honestidade intelectual. Infelizmente, muitos juízes não acreditam no Direito ...são céticos e, por isso, o que fazem é impor sua “opinião” aos "desafortunados litigantes”.

Não custa nada repetir: O direito (o processo previdenciário) só é capaz de cumprir com a sua função se observados alguns princípios que lhe dão condição de possibilidade, como é caso do contraditório enquanto garantia de influência. Oferecido o PPP, uma prova pré-constituída, o segurado deve ter condições de impugná-lo, explicá-lo, trazer outra prova que desqualifique ou que dê contexto. Ao autor precisa ser garantida a participação no processo e o poder de influência. O juízo precisa da instrução para verificar a ocorrência dos fatos alegados.

 

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Bah1: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 8.

Bah2: WALDRON, Jeremy. Legal and political philosophy. In: COLEMAN, Jules L; HIMMA, Kenneth E; SHAPIRO, Scott J. The Oxford Handbook of Jurisprudence and Philosophy of Law. Oxford: Oxford University Press, 2004. P. 371.

Bah3: NEVES, José Roberto de Castro. Medida por medida: o Direito em Shakespeare. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019. p. 304.


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