ADI 6.254: O STF NÃO PODE “TORNAR O DIREITO MAIS INCOERENTE EM PRINCÍPIO DO QUE ELE JÁ É.”

 

Eis um trecho do voto do Ministro Luís Roberto Barroso, relator da ADI 6.254:

Ademais, não há um dever constitucional de dispensar tratamento igualitário a quem deixe de trabalhar em decorrência de um acidente de trabalho e a quem se incapacite por força de uma doença grave. Existe, é verdade, fundamento razoável para conferir tratamento mais favorável a esses dois grupos de servidores em relação aos que se aposentam de forma voluntária – quando atingem, por exemplo, a idade-limite –, o que denota a constitucionalidade da norma que foi revogada pela EC nº 103/2019. Reconhecer a validade dessa discriminação, porém, não a torna impositiva ao poder reformador. Há, aqui, espaço para opções políticas que são divergentes, porém igualmente legítimas.

Confesso que esse trecho me deixou empertigado e preocupado, sobretudo, considerando a possibilidade de tal lógica ser aplicada ao RGPS. Vou ser sincero. Desde o início, eu queria desmentir tal afirmação. Explico! São três as diferenças traçadas: a) entre benefícios por incapacidade, de caráter temporário e permanente; b) entre benefícios de natureza acidentaria e de qualquer natureza; e c) entre benefícios de natureza programada e não programada. Vou começar pela última, uma vez que esta dita a lógica do sistema de proteção social, o que parece ter sido ignorado pelo julgador.

Tanto a incapacidade para o trabalho, seja temporária ou permanente, está numa dimensão de “natureza” não programada, afinal, ninguém quer ficar inválido e, tampouco, depender da assistência de terceiros para as atividades do dia a dia (é com tristeza que lembrei do Tema 1095/STF). Por outro lado, todos esperam envelhecer - é algo diferente: é possível se estabelecer linearmente algo esperado, o que acarreta a clara visualização de uma relação entre custeio e benefício. Assim, existe uma diferença entre o trabalhador que obteve sua aposentadoria depois de contribuir a vida toda e aquele empregado que, ainda no primeiro dia de trabalho, sofreu um acidente, gerando uma invalidez para o resto da vida.

Essa diferenciação entre benefícios de natureza programada ou não programada é de extrema importância, não apenas do ponto de vista do debate acadêmico, porque diz muito sobre o princípio da solidariedade, vale dizer: sobre aquilo que faz emergir laços de solidariedade. A solidariedade, que é pressuposto para “a ação cooperativa da sociedade, sendo condição fundamental para a materialização do bem-estar social [...]”.[1] As contribuições sociais para a seguridade social “não se fundam unicamente no critério da referibilidade, ou seja, na relação de pertinência entre a obrigação imposta e o benefício a ser usufruído, pois ‘seus objetivos visam permitir a universalidade da cobertura e do atendimento’”[2]. Assim, a solidariedade entre trabalhadores impõe a todos o custeio preferencialmente de prestações de natureza não programada. Recentemente escrevi: O princípio da solidariedade superou a estrita vinculação entre contribuição e benefícios. Assim, contribuímos imaginando as muitas pessoas cujo bem-estar será garantido pelo dinheiro de nossas contribuições. O que nos motiva, portanto, é tornar a vida melhor para nós e para os outros.

Ao contrário do que possa parecer, a reforma da previdência reforçou o princípio da solidariedade, na seguinte lógica:

Quanto mais previsível for a prestação e quanto mais for o sistema vinculado ao tradicional sistema de seguro social, mais evidente será a relação jurídica única. Ao revés, quando maior a imprevisibilidade da prestação, e quanto maior a solidariedade do sistema, menor será a relação entre custeio e benefício, individualmente considerada.[3]

Após a promulgação da EC 103/2019, os segurados deverão contribuir mais e por mais tempo (e receber por menos tempo). Tais considerações ajudam-me a explicitar, a partir da diferença, o caminho inexplorado pelo Ministro.

Não é por acaso que essa diferenciação também (re)aparece na discussão sobre o critério de cálculo dos benefícios por incapacidade, notadamente na relação entre incapacidade temporária e permanente, acidentária ou de qualquer natureza. A fundamentação bem lançada pelo Juiz Federal Victor Roberto Corrêa De Souza, na sentença proferida nos autos do processo 5096240-93.2020.4.02.5101, estabelece as interrogações que devem ser postas pelo intérprete da lei (advogados, juiz, procurador, etc.):

Nesse momento a pergunta é inevitável: o que diferencia, a nível de requisitos e formas de tratamento, um benefício não-programável (como uma aposentadoria por invalidez) de outro programável (como uma aposentadoria por idade)?

Historicamente, a legislação previdenciária sempre deu atenção adequada aos requisitos para a concessão de um benefício não-programado, por perceber e compreender a imprevisibilidade do fato previdenciário para o segurado.

[...]

Com isso, a EC 103/2019 já nos trouxe uma primeira perplexidade: os auxílios por incapacidade temporária e/ou parcial, sempre calculados à base de 91% do salário-de-benefício (art. 72 do Decreto 3.048/99, já com as alterações do Decreto 10.410/2020), nos mesmos casos, estão causando uma incoerência sistêmica relevante, consistente no fato de que o benefício temporário poderá ser fixado em valor bem maior que aquele da aposentadoria na qual ele venha a ser convertido, para segurados com menos de 20 anos de contribuições, que é exatamente o que ocorreu com a parte autora, conforme se viu no relatório CNIS retro.[4]

No processo 0002554-62.2019.4.03.6323, que tramita no Juizado Especial Federal da 3ª Região, o Juiz Federal Mauro Spalding reconheceu a inconstitucionalidade do art. 26, §§ 2º e 5º, da EC 103, com fundamento na teoria da “antinomia de valoração”. Nessa decisão assim restou expresso:

A situação gerada pela EC 103/2019 no ordenamento previdenciário nacional pode ser diagnosticada, segundo a doutrina de Norberto Bobbio (Teoria do Ordenamento Jurídico. 2. ed. São Paulo: EDIPRO, 2014, pp. 92-93), como uma antinomia imprópria, especificamente a chamada ‘antinomia de valoração’, caracterizada, não pela incompatibilidade normativa, mas sim pela injustiça e, consequentemente, pela violação à isonomia. Não se verifica um tratamento isonômico o tratamento díspar dado pelo Estado através da Previdência Social, favorecendo financeiramente um segurado acometido de uma incapacidade parcial ou temporária em detrimento daquele acometido de uma limitação funcional total e definitiva.[5]

A aludida Emenda Constitucional não alterou a RMI do benefício de auxílio-doença, que continua sendo de 91% do salário de benefício, limitado à média aritmética simples dos últimos 12 salários-de-contribuição, nos termos dos arts. 61 e 29, § 10, da LBPS, mas determina, para a incapacidade permanente, a aplicação da regra geral (60% + 2% para cada ano que superar os 15 anos de contribuição, se mulher, e 20, se homem). Nesse caso, portanto, não se admitiu, pois, que o segurado acometido por uma incapacidade mais severa faça jus a um salário de benefício 31% menor que o acometido por uma incapacidade mais branda.

Na 4ª Turma Recursal do Rio Grande do Sul assumiu orientação semelhante, com fundamento nos princípios da irredutibilidade e da proporcionalidade:

Embora a legislação aplicável ao benefício seja a do momento da constatação do caráter permanente da incapacidade, o valor nominal do amparo previdenciário por incapacidade, após a sua conversão de auxílio-doença em aposentadoria por incapacidade permanente, sob as novas regras trazidas pela EC 103/2019, não pode ser reduzido, sob pena de afronta ao princípio da irredutibilidade, previsto no artigo 194, parágrafo único, inciso IV, da Constituição Federal de 1988, bem como ao princípio da proporcionalidade, ante o caráter definitivo da restrição laboral.[6]

Fábio Zambitte Ibrahim, focando na diferença entre benefícios de natureza acidentária e não acidentária, assevera que: “do ponto de vista protetivo, pouco importa se o evento determinante do benefício foi derivado do trabalho ou não. Não existe um ‘sobrevalor’ na incapacidade laboral. Este aspecto, inclusive, representa um dos retrocessos da EC 103/19, ao reinserir tratamento diverso em prestações acidentárias.”[7]

Seja como for, os princípios da igualdade, da dignidade [8], da proporcionalidade (no sentido de insuficiência de proteção de um direito fundamental), da solidariedade, da coerência e da integridade do direito, para citar apenas estes, tornam impositiva uma intervenção judicial, mormente quanto o parlamento adota um modelo salomônico para tratar de direitos fundamentais-sociais. Segundo Ronald Dworkin: “Esse modelo salomônico trata a ordem pública de uma coletividade como um tipo de mercadoria a ser distribuída de acordo com a justiça distributiva, um bolo que deve ser equitativamente dividido dando-se a cada grupo a parte que lhe cabe.”[9]

A título de curiosidade:

O Estado Democrático de Direito é uma conquista. É, portanto, um paradigma, a partir do qual compreendemos o direito. Quando propugno pelo cumprimento da Constituição e o direito fundamental à obtenção de respostas adequadas (à Constituição), quero com isso que, mesmo em face do Parlamento realizar amplas reformas e (visar a) desvirtuar a lei maior, ainda assim poderemos continuar a sustentar as mesmas teses”. Ou seja, a defesa que faço da Constituição não significa ‘qualquer Constituição’! Há uma principiologia constitucional que garante a continuidade da democracia, mesmo que os princípios não tenham visibilidade ôntica. Ora, o direito possui uma dimensão interpretativa. Essa dimensão interpretativa implica o dever de atribuir às práticas jurídicas o melhor sentido possível para o direito de uma comunidade política. A integridade e a coerência devem garantir o DNA do direito nesse novo paradigma. Para ser mais claro: quero dizer com isso que, em última ratio, levando em conta as inexoráveis possibilidades de o Parlamento aprovar leis ou emendas constitucionais ‘de ocasião’ (inconstitucionais), a jurisdição constitucional deve ser constituir na garantia daquilo que é o cerne do pacto constituinte de 1988![10] (Grifo nosso)

Assim, por exemplo, devemos perguntar: O que justifica – por princípio – um tratamento diferenciado entre auxílio-doença previdenciário e auxílio-doença acidentário? Entre o benefício por incapacidade de caráter temporário e permanente? A resposta não pode ser: “Um valor maior poderia estimular o segurado a permanecer inválido”. Pode parecer piada, mas o constituinte derivado apresentou, como uma das justificativas para a concessão da pensão por morte em percentual menor, o argumento de que, com a morte do instituidor da pensão, haveria redução de despesas no grupo familiar, o que justificaria pensão em percentual menor e até a redução de valores quando há acumulação de pensão com aposentadoria.

John Rawls, em sua obra Uma Teoria da Justiça, defende o “princípio da diferença”, segundo o qual as desigualdades sociais só se justificam se tiverem um resultado: que os membros em pior situação fiquem em melhor condição do que estariam antes. A reforma da previdência deixará os desfavorecidos em uma situação ainda pior.[11] Uma reforma da previdência social foi necessária e podemos concordar com alguns motivos e pontos, mas nenhum é suficiente para justificar o fim da aposentadoria especial, tampouco o critério de cálculo adotado para os benefícios por incapacidade permanente.

É verdade, o fato de a lei conferir um tratamento diferenciado para determinada situação não significa, por si só, violação do princípio da igualdade ou preconceito. Ademais, o tratamento jurídico pode ser diferenciado pelo fato de que as situações são diferentes. Na questão do benefício por incapacidade, não há circularidade em interpretar uma lei supondo que a invalidez permanente deva receber um tratamento pior do que a incapacidade temporária, tampouco é necessária a comparação com a aposentadoria voluntária (por idade). Aqui não tem essa de cada um deles ser o que o outro não é. As eventuais diferenças são resolvidas na esfera trabalhista, e não na previdenciária. Qualquer “meio-termo”, que significa a equidistância em relação aos extremos [12], sugere não apenas maior desigualdade, mas um tratamento pior ao mais vulnerável. Se 100% é o máximo e 60% o mínimo, este último não é intermediário. O meio-termo deve ser analisado em relação ao objeto, e não como uma proporção aritmética. Estamos falando de um benefício previdenciário que tem o condão de substituir a renda mensal – por ter caráter alimentar!

No julgamento do Tema 998, o colegiado do Superior Tribunal de Justiça considerou ilegal a distinção entre as modalidades de afastamento, feita pelo Decreto 3.048/1999, o qual prevê apenas o cômputo do período de gozo de auxílio-doença acidentário como especial.[13] Para nós, a distinção é tão arbitrária quando “criminalizar o aborto para as grávidas que nasceram em anos pares, mas não para as que nasceram em anos ímpares”, como sugere o exemplo de Dworkin!

Sem rodeios, a nossa preocupação é com o Poder Judiciário, quando se transforma num instrumento do positivismo, reproduzindo as incoerências do legislador e, por vezes, deixando o direito – que não cabe na lei – ainda mais incoerente e mais distante do mundo prático. Mas, e se a realidade do dia a dia não conseguir se adaptar a essa “realidade ideal”? A resposta não pode ser: pior para a realidade, como já ouvi dizer o Professor Lenio Streck.

Ao escrever livros e artigos que defendem os direitos fundamentais-sociais, a bondade das pessoas, enfim, aquilo no qual acreditamos, você encontra diversos desafios, como é o caso da EC 103/2019 e, agora, o voto do Ministro. 

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Bah1: Nesse sentido: “A solidariedade é a justificava elementar para a compulsoriedade do sistema previdenciário, pois os trabalhadores são coagidos a contribuir em razão da cotização individual ser necessária para a manutenção de toda a rede protetiva, e não para a tutela do indivíduo, isoladamente considerado”. IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de direito previdenciário. 15. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p.70-71.

Bah2: AI 764794 AgR, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 20/11/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-248 DIVULG 18-12-2012 PUBLIC 19-12-2012.

Bah3: IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de direito previdenciário. 15. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010, p. 48.

Bah4: Por fim, o magistrado analisou o novo critério de cálculo à luz dos princípios da seletividade e da universalidade, declarando, no exercício da prerrogativa de controle difuso de constitucionalidade, a inconstitucionalidade da interpretação literal restritiva do art. 26, §3º, II, in fine, da EC 103/2019, por limitar a fixação de um percentual de 100% para as aposentadorias decorrentes de acidente de trabalho, de doença profissional e de doença do trabalho. A decisão colaciona a doutrina de ponta (que aqui deixo de transcrever, com todo respeito, a fim de reservar esta parte apenas para a análise dos questionamentos feitos pelo julgador), trazendo elementos que vinculam efetivamente o intérprete, baseados na reconstrução dos institutos e de uma conformação com a pré-compreensão sobre o tema.

Bah5: Processo nº 0002554-62.2019.4.03.6323, que tramita no Juizado Especial Federal da 3ª Região, o Juiz Federal Mauro Spalding, de 04.08.2020.

Bah6: 5015021-19.2019.4.04.7112, QUARTA TURMA RECURSAL DO RS, Relatora MARINA VASQUES DUARTE, julgado em 05/07/2021.

Bah7: IBRAHIM, Fábio Zambitte. A lei 14.297/22 e a cobertura acidentária dos entregadores mediante aplicativo: O retorno à Teoria do Risco Profissional. 2022. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/.../a-lei-14-297-22-e-a...>. Acesso em: 11 jan. 2022.

Bah8: Para Ingo Wolfgang Sarlet, o conceito de dignidade da pessoa humana é calcado no substrato axiológico e conteúdo normativo, dividido em quatro princípios, quais sejam o da igualdade, o da integridade física e moral, o da liberdade e o da solidariedade. SARLET, Ingo Wolfgang. Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 123.

Bah9: DWORKIN, Ronald. O império do direito. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 217.

Bah10: Conversa com o Professor Lenio Streck. Revista Parahyba Judiciária, v. 9, n. 9, p. 17-50, 2016.

Bah11: DUPRÉ, Ben. 50 ideias de filosofia que você precisa conhecer. Tradução: Rosemarie Ziegelmaier. 1. ed. São Paulo: Planeta, 2015.p. 187.

Bah12: ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 5. ed. São Paulo: Martin Claret, 2011. p. 43.

Bah13: A decisão assim restou ementada: PREVIDENCIÁRIO. RECURSO ESPECIAL ADMITIDO COMO REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 1.036 DO CÓDIGO FUX. POSSIBILIDADE DE CÔMPUTO DO TEMPO DE SERVIÇO ESPECIAL, PARA FINS DE APOSENTADORIA, PRESTADO NO PERÍODO EM QUE O SEGURADO ESTEVE EM GOZO DE AUXÍLIO-DOENÇA DE NATUREZA NÃO ACIDENTÁRIA. PARECER MINISTERIAL PELO PROVIMENTO PARCIAL DO RECURSO. RECURSO ESPECIAL DO INSS A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. Até a edição do Decreto 3.048/1999 inexistia na legislação qualquer restrição ao cômputo do tempo de benefício por incapacidade não acidentário para fins de conversão de tempo especial. Assim, comprovada a exposição do Segurado a condições especiais que prejudicassem a sua saúde e a integridade física, na forma exigida pela legislação, reconhecer-se-ia a especialidade pelo período de afastamento em que o Segurado permanecesse em gozo de auxílio-doença, seja este acidentário ou previdenciário. 2. A partir da alteração então promovida pelo Decreto 4.882/2003, nas hipóteses em que o Segurado fosse afastado de suas atividades habituais especiais por motivos de auxílio-doença não acidentário, o período de afastamento seria computado como tempo de atividade comum. 3. A justificativa para tal distinção era o fato de que, nos períodos de afastamento em razão de benefício não acidentário, não estaria o Segurado exposto a qualquer agente nocivo, o que impossibilitaria a contagem de tal período como tempo de serviço especial. 4. Contudo, a legislação continuou a permitir o cômputo, como atividade especial, de períodos em que o Segurado estivesse em gozo de salário-maternidade e férias, por exemplo, afastamentos esses que também suspendem o seu contrato de trabalho, tal como ocorre com o auxílio-doença não acidentário, e retiram o Trabalhador da exposição aos agentes nocivos. Isso denota irracionalidade na limitação imposta pelo decreto regulamentar, afrontando as premissas da interpretação das regras de Direito Previdenciário, que prima pela expansão da proteção preventiva ao Segurado e pela máxima eficácia de suas salvaguardas jurídicas e judiciais. 5. Não se pode esperar do poder judicial qualquer interpretação jurídica que venha a restringir ou prejudicar o plexo de garantias das pessoas, com destaque para aquelas que reinvindicam legítima proteção do Direito Previdenciário. Pelo contrário, o esperável da atividade judicante é que restaure visão humanística do Direito, que foi destruída pelo positivismo jurídico. 6. Deve-se levar em conta que a Lei de Benefícios não traz qualquer distinção quanto aos benefícios auxílio-doença acidentário ou previdenciário. Por outro lado, a Lei 9.032/1995 ampliou a aproximação da natureza jurídica dos dois institutos e o § 6o. do artigo 57 da Lei 8.213/1991 determinou expressamente que o direito ao benefício previdenciário da aposentadoria especial será financiado com os recursos provenientes da contribuição deque trata o art. 22, II da Lei 8.212/1991, cujas alíquotas são acrescidas conforme a atividade exercida pelo Segurado a serviço da empresa, alíquotas, estas, que são recolhidas independentemente de estar ou não o Trabalhador em gozo de benefício. 7. Note-se que o custeio do tempo de contribuição especial se dá por intermédio de fonte que não é diretamente relacionada à natureza dada ao benefício por incapacidade concedido ao Segurado, mas sim quanto ao grau preponderante de risco existente no local de trabalho deste, o que importa concluir que, estando ou não afastado por benefício movido por acidente do trabalho, o Segurado exposto a condições nocivas à sua saúde promove a ocorrência do fato gerador da contribuição previdenciária destinada ao custeio do benefício de aposentadoria especial. 8. Tais ponderações, permitem concluir que o Decreto 4.882/2003 extrapolou o limite do poder regulamentar administrativo, restringindo ilegalmente a proteção exclusiva dada pela Previdência Social ao trabalhador sujeito a condições especiais que prejudiquem a sua saúde ou a sua integridade física. 9. Impõe-se reconhecer que o Segurado faz jus à percepção de benefício por incapacidade temporária, independente de sua natureza, sem que seu recebimento implique em qualquer prejuízo na contagem de seu tempo de atividade especial, o que permite a fixação da seguinte tese: O Segurado que exerce atividades em condições especiais, quando em gozo de auxílio-doença, seja acidentário ou previdenciário, faz jus ao cômputo desse mesmo período como tempo de serviço especial. 10. Recurso especial do INSS a que se nega provimento. (REsp 1759098/RS, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 26/06/2019, DJe 01/08/2019).


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