A METALIGUAGEM E A (IM)POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO COMO ESPECIAL DO TEMPO DE SERVIÇO MILITAR JUNTO AO RGPS

 

Eu preciso construir uma metalinguagem para discutir o tempo de serviço militar como especial – o mundo do coração é diferente do mundo do cardiologista. Isso porque as decisões estão preocupadas apenas em dizer que a Constituição Federal não previa, e não prevê, o direito dos militares à aposentadoria especial. Não se está, pois, defendendo nem o direito a uma aposentadoria especial do militar nem o reconhecimento como tempo especial, para fins de aposentadoria militar.

O fato de inexistir legislação sobre as condições insalubres da atividade do soldado importam tanto quando o recebimento de insalubridade na esfera trabalhista, ou seja, nada. O que se deseja é que o tempo na condição de celetista, de servidor público ou de militar seja analisado à luz das regras do RGPS, que estabelecem critérios próprios para a caracterização do tempo de serviço especial. O recebimento de adicional de insalubridade na esfera trabalhista nem sempre coincide com a concessão de aposentadoria especial na esfera previdenciária. Aqui reside a diferença. Apesar do tempo de serviço se inter-relacionar de maneira prática, o tempo de serviço especial é analisado à luz das regras previdenciárias, enquanto a discussão sobre o direito à insalubridade deve observar a legislação trabalhista. O sujeito, dentro do quartel, trabalhava como mecânico, exposto, de modo habitual e permanente, a agentes nocivos, tais como hidrocarbonetos aromáticos.

Assim, voltando a questão da metalinguagem, em segundo nível (do lado de fora do regime militar) podemos descrever e analisar as atividades efetivamente exercidas pelo sujeito à luz das regras do RGPS. Nesse nível, pois, pouco ou nada importa o fato de o serviço militar ser regido por legislação própria. Até porque o que se pretende não é o reconhecimento desse tempo como serviço militar, ou melhor, para fins de cômputo no regime militar.

Eis que o paradoxo[2] é desfeito pela própria Lei de Benefícios, que, no seu art. 55, I, Lei 8.213/1991, permite o aproveitamento do tempo de serviço militar RGPS. A partir disso, cumpre perguntar: em sendo possível o cômputo do serviço militar junto ao INSS, o que impede o seu cômputo como especial, uma vez que as atividades prestadas pelo agora segurado do RGPS serão analisadas à luz das regras do RGPS. Com efeito, o argumento de que a aposentadoria especial é exclusiva do Regime Geral de Previdência, não podendo ser utilizada de forma híbrida em outro regime, quando há lei expressa no sentido de vedá-la, não possui qualquer relevância jurídica aqui. A intepretação como ato de conhecimento – que descreve, no plano de uma metalinguagem, as atividades à luz das regras do RGPS produz proposições que superam o fato de o regime ser celetista ou estatutário.

A questão (também) espatifa na dogmática. Os militares não são mais considerados, pelo texto constitucional (com as alterações trazidas pela Emenda Constitucional de 18/1998), servidores públicos, tendo sido criado um tratamento especial aos membros das Forças Armadas.[1] A referida emenda excluiu os militares da categoria de “servidores públicos”. Isso significa, por outras palavras, que antes disso eles podiam ser equiparados à servidores públicos, logo, possível a aplicação da Súmula 33/STF.

Convém anotar que, em decorrência do direito à contagem recíproca de contribuição previsto no art. 40, § 9º, e art. 201, § 9º, ambos da CF/88, o tempo especial deverá ser contado como tal em qualquer dos regimes a que estiver sujeito o servidor. Nesse sentido é perfeitamente possível que o tempo especial realizado na iniciativa privada seja averbado como especial no serviço público e vice-versa.[3]

O artigo 100 da Lei nº 8.112/90 (Estatuto dos Servidores Públicos da União) reconhece que o tempo de serviço prestado às Forças Armadas é tempo de serviço público federal, computado para todos os efeitos, de modo que, mediante o instituto da contagem recíproca, o artigo 3º da Lei 9.796/99 garante a compensação financeira ao Regime Geral de Previdência Social pela União Federal, ente público ao qual o militar estava vinculado.

Ainda, o serviço militar temporário não se destina ao ingresso na carreira militar, conforme determina o parágrafo único do art. 1º da Lei 4.375, de 17 de agosto de 1964 – Lei do serviço militar. A Lei 6.880, de 9 de dezembro de 1980, no seu art. 3º, § 3º, considera: “Os militares temporários não adquirem estabilidade e passam a compor a reserva não remunerada das Forças Armadas após serem desligados do serviço ativo.” Já o art. 63 do Decreto 4.375/64 garante que os convocados ao serviço militar contarão o tempo de serviço prestado nas Forças Armadas: “Os convocados contarão, de acordo com o estabelecido na Legislação Militar, para efeito de aposentadoria, o tempo de serviço ativo prestado nas Forças Armadas, quando a elas incorporados”. É possível, portanto, defender que a legislação própria não se aplica aos temporários?

Sobre possibilidade de ser reconhecer o serviço militar como tempo especial, tem-se o acórdão proferido no Recurso Cível nº 5006428-04.2019.4.04.7208/SC, no qual o voto (vencedor) do juiz federal João Batista Lazzari conforma e demonstra a viabilidade desse entendimento. Não obstante, recentemente, a Turma Regional de Uniformização da 4ª Região, deu provimento ao incidente de uniformização regional apresentado pela União. Ali, apesar da correta distinção, no sentido de não se tratar de atividades e/ou funções tipicamente desempenhadas nas Forças Armadas, prevaleceu a orientação de que “É inviável o reconhecimento da especialidade da atividade de médico, com base na Lei nº 8.213/91, quando essa atividade for desempenhada no âmbito do serviço militar, porquanto os militares estão sujeitos às normas legais específicas que regem as Forças Armadas”. Com efeito, entendeu-se que os militares não se enquadram na categoria de servidores públicos. Ou seja, ficou-se no primeiro andar, vale dizer: em os militares são titulares de regime jurídico distinto.

Tal entendimento acaba deixando o sujeito num limbo, pois, nem militar, nem servidor e nem segurado. Ao fim e ao cabo, o tempo reconhecidamente especial não pode ser aproveitado, como tal, em nenhum regime, já que, ao tempo da prestação do serviço militar, o sujeito não era nem servidor público nem segurado do INSS. Por outro lado, militar ou não, este tempo não será aproveitado junto ao regime militar, porque ele não seguiu carreira militar.

A questão precisa ser trabalhada a partir de oposições/paradoxos, para levar ao limite a orientação assumida pela jurisprudência (defensiva). O problema é que para muitos o paradoxo sequer se colocou. A jurisprudência está partindo de premissas, a meu ver, equivocadas, o que, logicamente, leva a uma conclusão mais equivocada ainda. Somos vítimas de julgamentos precipitados, que dão pouco valor à argumentação e as individualidades e as particularidades do caso concreto. Temos que cuidar com o que está fora de nossa visão, como a formiga, que consegue ver pequenos objetos, mas não enxergar os grandes.

Em tempos de “metaverso”, a metalinguagem interessa mais, por oferecer soluções para problemas como esse. Kelsen fez isso, elaborando, pois, um topos científico de inteligibilidade do Direito: “uma coisa é o Direito, outra bem distinta é a ciência do Direito. O Direito é a linguagem-objeto, a ciência do Direito a metalinguagem: dois planos distintos e incomunicáveis.”[4] É por isso que Kelsen não pode ser confundido com um positivista exegético.

O artigo pretende ensinar, mas pressupõe algum conhecimento preliminar sobre a ideia de metalinguagem. Um leitor atento poderia argumentar que, na verdade, existe apenas uma linguagem. Acontece que é (só) por meio de abstrações como a proposta nesse artigo que se consegue produzir os juízos necessários para se compreender. O enfoque que costuma ser recusado se constitui explicitamente como uma crítica à abordagem dogmática.

Dentro da metaliguagem é possível trabalhar com categorias, como “militar” e “serviço militar”. É com isso que estamos brincando. Esta distinção permite verificar que, o objeto do nosso artigo é o tempo de serviço militar, e não o militar. O RGPS traduz um modelo através do qual chegamos ao conhecimento do tempo de serviço militar como tempo de serviço especial, já que o RGPS é regido por leis que lhe são próprias. 

 

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Bah1: CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 15. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 111. Outras categorias de agentes das Forças de Segurança, tais como Polícia Federal, Polícia Civil, Guardas Municipais, entre outras, não são considerados servidores militares, justamente por que não estão organizados com base na hierarquia e disciplina, nos termos dos arts. 42 e 142 da CF.

Bah2: O paradoxo de Epiménides é um enigma sem resposta que forma um paradoxo semelhante ao paradoxo do mentiroso. Epiménides, que era cretense, disse: “Todos os cretenses são mentirosos”. Portanto, o enunciado é verdadeiro se for falso e é falso se for verdadeiro, pois quem o enuncia é um cretense mentiroso.

Bah3: CAMPOS, Marcelo Barroso Lima Brito de. Regime próprio de previdência social dos servidores públicos. 3. ed., Curitiba: Juruá, 2011.

Bah4: STRECK, Lenio Luiz. A pureza do direito kelseniana. Estado da Arte. Disponível em: <https://estadodaarte.estadao.com.br/pureza-kelsen-streck/>. Acesso em 15 set. 2022.


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