O QUE ESPERAR DO ENSINO JURÍDICO?

 

Cada país tem a justiça que produz e merece, basta olhar para o ensino jurídico no Brasil. Não é de estranhar que a literatura mais representativa seja aquela que se propõe, acima de tudo e sobretudo (e quase exclusivamente), dar repostas prontas (manuais fáceis e com modelinhos).

Cursinhos e mais cursinhos. Não digo que isso seja ruim. Digo, simplesmente, que é assim. Qualquer alteração no sistema normativo ou na jurisprudência e lá vai o pessoal consumir novos cursinhos, quando uma leitura em voz alta da nova lei ou acórdão, para se ouvirem falando, seria o suficiente. Isso não é bom. Acontece que as palavras agora estão subordinadas às imagens e esquemas do PowerPoint – o que vale é o mínimo esforço intelectual.

Não é casual o fato de uma boa crítica ser algo raro. O vazio deixado pela crítica possibilitou que, sem qualquer constrangimento, juízes transformassem o Direito naquilo que eles dizem que é. Neste nível, imprescindível o curso de como interpretar verbetes (enunciados, súmulas e o escambau) – o que aniquila qualquer expectativa crítica sobre o sentido das coisas, já que se parte de uma interpretação da interpretação. Em nossos dias, cinco ou mais anos de faculdade não são suficientes para se entender como uma lei não tem força de lei, enquanto há força de lei em um Enunciado do FONAJE – muitas vezes, contrário à lei.

O objetivo de (alg)uns professores é manter os alunos atualizados; nessa perspectiva, não há dúvida de que estão conseguindo. E, nesse jogo, vale tudo para facilitar a memorização e divertir. A docência pode ser algo diferente, algo que contribuía para a formação de juristas, e não meros espectadores ou reprodutores do conhecimento. Mas é claro que isso depende, necessariamente, dos alunos, que não podem se contentar com “dicas” e modelos de petição.

O problema é quando “representarmos nossos conhecimentos na superfície do espelho, dando-nos a ilusão de atravessá-lo” [1]. A pessoa que se isola na sua especialidade costuma não perder tempo com o que acontece ao seu redor, com outras disciplinas do Direito (Constitucional, Ambiental, Trabalhista, Família, etecetera) e, muito menos, com outras áreas do conhecimento, que poderiam ajudá-lo a compreender a complexidade das realidades e deixar ingressar no Direito Previdenciário uma nova concepção. Em poucas palavras, o seu conhecimento não conecta, não proporciona um salto de significado.

Os doutrinadores, por outro lado, não devem se privar da capacidade de revolucionar a vida do leitor [2]. A reflexão deve durar mais que o tempo da leitura. A reprodução de verbetes e doutrina local, que se relativiza e se aceita reciprocamente, está chata! O papel da doutrina é fiscalizar as decisões dos juízes e provocar o estranhamento [3]. A doutrina não pode ser caudatária, ela precisa ser a primeira a deixar o novo dizer algo novo e mostrar, de forma responsável e inteligente – o que não pressupõe redução da ousadia –, para onde aponta a pré-compreensão do fenômeno. Nem sempre a crítica será útil – não se conformar basta.

Cabe, pois, a pergunta: por que o professor (ou manual), ao invés de ficar repetindo conceitos abstratos e vazios de concretude, sem sequer questionar os fins e propósitos das leis e/ou qual(is) o princípio(s) que fundamenta(m) a regra, – isso tudo a partir de métodos quase matemáticos–, não trabalha as condições para a compreensão do fenômeno (é possível interpretar/argumentar sem compreender)? A ausência da filosofia no Direito é a marca dessa crise de compreensão.

Toda generalização é falaciosa, e não se pode pôr todos no mesmo saco. Ainda, graças a isso – não há mal que não venha para o bem – essa crítica enriquece o debate. As intenções críticas são sérias.

Ainda sobre os modelos de petição, lembrei que Marshall B. Rosenberg defende que devemos concentrar nossa atenção onde teremos maior probabilidade de achar o que procuramos. Aqui vale aquela história: um homem que estava agachado sob a luz de um poste, à procura de algo. Um policial passa e lhe pergunta o que está fazendo. “Procurando as chaves do meu carro”, responde o homem, que parece ligeiramente bêbado. “Você as perdeu aqui?”, pergunta o policial, “Não, perdi no beco.” Vendo a expressão intrigada do policial, o homem se apressa em explicar: “é que a luz está muito melhor aqui”.[4]

Se o que procuramos é compreender o Direito – que é complexo – , essa resposta não encontraremos em modelos e respostas prontas.

 

Escrito por Diego Henrique Schuster

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Bah1: RANDON, Michel. Território do olhar. In: SOMMERMANN, Américo; MELLO, Maria F. de; BARROS, Vitória M. de. Educação e transdisciplinaridade II. São Paulo: TRIOM, 2002,p. 32.

Bah2: VARGAS, LLSA, Mario. A civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 84.

Bah3: Lenio Streck é um crítico nesse ponto: “[...] parte considerável da doutrina reproduz a posição dos tribunais, quer uma espécie de versão positivista de ‘discursos de fundamentação prévia’. Isso é feito através de uma estandardização da cultura jurídica (verbetes, ementas, súmulas, etc.)”. (STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006,p. 143 e 205).

Bah4: ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. São Paulo: Ágora, 2021. p. 20.


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