A COMUNICAÇÃO NÃO VIOLENTA NO DIREITO (PROCESSUAL) PREVIDENCIÁRIO: "NO DIFÍCIL EXERCÍCIO DE VIVER EM PAZ" (HG)

 

Quem me conhece sabe que sou adepto da "comunicação não violenta", o que coincide com a intenção de criar uma qualidade de vínculo necessário ao atendimento das necessidades de todos, sem rótulos ou termos que ameassem, nos autos do processo judicial, a autonomia do juiz, do perito, enfim.

A Des. Taís Schilling Ferraz expressou sua preocupação com a linguagem violenta empregada no curso do processo:

A litigiosidade a que aqui se faz referência revela-se, dentre outros elementos, no grande volume de casos novos que, a cada ano, aportam no Poder Judiciário, bem como no intenso confronto que se estabelece no curso do processo, evidenciado especialmente nas taxas de recorribilidade e na linguagem violenta empregada nas manifestações das partes, do juiz e de eventuais intervenientes. Tais fatores combinados exteriorizam um grau de beligerância e de intolerância que parece só encontrar precedentes no próprio modelo brasileiro de judicialização.[1]

Não é tarefa fácil. Isso precisa ser exercitado todos os dias. Precisamos enxergar a humanidade do outro: “ver no outro um outro eu”. Assim, por exemplo, não é legal esse apelo à consciência do juiz, como se ele não tivesse consciência - o dito carrega consigo o não dito (ninguém vai morrer por causa do juiz – não se pode ver isso como um dilema moral, mas como uma decisão). Alguns advogados querem transformar a decisão numa questão moral e fazer o juiz não dormir! A questão é tomar consciência das necessidades e preocupações de cada um, inclusive dos problemas de ordem prática (e.g.: elevado número de processos ou recursos possíveis, o baixo número de juízes, etc.).

É difícil conciliar o “constrangimento epistemológico” de que fala Lenio Streck, decorrente da linguagem pública construída na intersubjetividade, e a utilização da comunicação não violenta, pois criticar uma decisão - uma crítica fundamentada - sempre gera algum desconforto no destinatário, exatamente, porque vai de encontro à subjetividade do juiz como critério último de decisão. A crítica não pode ser recebida como um ataque, mas como uma contribuição sincera para o Direito. É por isso que não podemos deixar a linguagem privada se sobrepor à pública. A melhor justificativa será aquela que articule coerentemente todos os elementos (regras, princípios, precedentes, etc.).  

Mesmo ciente de tudo isso, os conflitos acontecem, quiçá por falta de uma pré-compreensão adequada do papel de cada uma das partes. Entramos, mesmo sem querer, em lutas pelo poder sempre que alguém se convence de que está certo ou no controle da situação. Pedidos convertem-se em exigências e, por vezes, numa ameaça à autonomia do perito, do juiz, do advogado, etc. Neste nível, muita energia é investida em autodefesa ou contra-ataque.[2] Em determinadas turmas, argumentos de autoridades revelam que o juiz ainda se vê como o único destinatário das provas, o que pode se manifestar de diferentes formas, quase sempre, com base na equivocada ideia de “livre convencimento”.

Abre-se aqui um parêntese para referir que o CPC/2015 acabou com o “livre convencimento” (artigo 371) e, ainda, introduziu a exigência de coerência e integridade (artigo 926). A justificativa sugerida por Lenio Streck e acatada pelo Deputado relator foi a de que

embora historicamente os Códigos Processuais estejam baseados no livre convencimento e na livre apreciação judicial, não é mais possível, em plena democracia, continuar transferindo a resolução dos casos complexos em favor da apreciação subjetiva dos juízes e tribunais. Na medida em que o Projeto passou a adotar o policentrismo e coparticipação no processo, fica evidente que a abordagem da estrutura do Projeto passou a poder ser lida como um sistema não mais centrado na figura do juiz. As partes assumem especial relevância. Eis o casamento perfeito chamado ‘coparticipação’, com pitadas fortes do policentrismo. E o corolário disso é a retirada do ‘livre convencimento’. O livre convencimento se justificava em face da necessidade de superação da prova tarifada. Filosoficamente, o abandono da fórmula do livre convencimento ou da livre apreciação da prova é corolário do paradigma da intersubjetividade, cuja compreensão é indispensável em tempos de democracia e de autonomia do direito. Dessa forma, a invocação do livre convencimento por parte de juízes e tribunais acarretará, a toda evidência, a nulidade da decisão.[3]

A prova é das partes/processo. Mas voltando à violência empregada no diálogo judicial. Desde "os seus argumentos são risíveis", passando por petições com linguagem truculenta ou desesperada (e.g.: com fonte 40 e destaque em amarelo!), até aquele juiz que intima as partes sobre o interesse de manter os embargos de declaração, vale dizer: sob pena de multa, o que fica claro é um comportamento motivado pelo medo, pela raiva, pela culpa, etc. Precisamos tentar entender os sentimentos e necessidades por trás de tudo isso, a fim de restabelecer a confiança e o respeito mútuo entre as partes. As partes devem agir e interagir entre si com boa-fé e lealdade, na busca da correta aplicação das normas previdenciárias ao caso concreto. O processo previdenciário não se resume a declarar um vencedor ou perdedor. Então, admitir erros, pedir desculpas, se afastar de lutas pelo poder - nada disso é derrota.[4]  

O outro não precisa ser “aquele cujos desejos se opõem aos meus, cujos interesses chocam com os meus, cujas ambições se erguem contra as minhas, cujos projectos contrariam os meus, cuja liberdade ameaça a minha, cujos direitos usurpam os meus.” Jean-Marie Muller alerta: “O outro não me quer forçosamente mal; talvez até me queria bem, mas não o sei.”[5] Em tempos de guerra, precisamos apostar no diálogo. Palavra é "pá-que-lavra". Recomendo à advocacia jovem o estudo da Comunicação Não Violenta. Antes de qualquer outra coisa, essa é uma lição de humildade.

 

Escrito por Diego Henrique Schuster

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Bah1: FERRAZ, Taís Schilling. O excesso do acesso à justiça e a insistente aposta nos sintomas como forma de dar tratamento à litigiosidade. Interesse Público [Recurso Eletrônico]. Belo Horizonte, v.23, n.128, jul./ago. 2021. Disponível em: https://dspace.almg.gov.br/handle/11037/41776. Acesso em: 24 set. 2021.

Bah2: CF.: ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. São Paulo: Ágora, 2021.

Bah3: STRECK, Lenio Luiz. O novo Código de Processo Civil (CPC) e as inovações hermenêuticas O fim do livre convencimento e a adoção do integracionismo dworkiniano. Ano 52 Número 206 abr./jun. 2015. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/.../52/206/ril_v52_n206_p33.pdf>. Acesso em: 26 jan. 2022.

Bah4; Conforme a psicologia de Alfred Adler.

Bah5: MULLER, Jean-Marie. O princípio de não-violência. Lisboa: Instituto Piaget, 1995. p. 16.


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