RURAL ANTES DOS 12 ANOS DE IDADE: DO SENTIDO DO LIMITE AO LIMITE DO SENTIDO...

 

A procura por critérios seguros e controláveis para o reconhecimento do tempo de serviço rural antes dos 12 anos de idade visa, certamente na visão do INSS, separar o joio do trigo, o que é legítimo. Existe, também, uma preocupação macro com as consequências de várias decisões. E daí as objeções feitas à utilização da mesma prova exigida para o reconhecimento posterior aos 12 anos. A autodeclaração, na via administrativa, reduz a quase zero a discricionariedade administrativa, quando apresentado razoável início de prova material.

Toda e qualquer exigência pode ser pensada como um “gap”, uma expressão usada no metrô para alertar os passageiros sobre o vão entre o trem e a plataforma. O “gap” pode significar vão, lacuna, brecha, defasagem, distância ou diferencia. Em termos práticos, este espaço não pode ser tão curto, a ponto de inviabilizar a passagem do trem; nem tão largo, que coloque em risco os passageiros. O problema envolvendo a caracterização e comprovação do rural antes dos 12 anos de idade exige os mesmos cuidados ...nem tão rígida, sob pena de inviabilizar o seu reconhecimento; nem tão fácil, no sentido de permitir a qualquer pessoa com documentos rurais em nome dos pais o aproveitamento do rural desde criança. Não é segredo pra ninguém, mas adoro Engenheiros do Hawaii:

Nem tão longe que eu não possa ver

Nem tão perto que eu possa tocar

Nem tão longe que eu não possa crer

Que um dia chego lá

Nem tão perto que eu possa acreditar

Que o dia já chegou

O primeiro ponto a ser superado diz respeito ao risco que queremos e/ou podemos correr. As razões que justificam a “aceitação” estão relacionadas a como queremos distribuir o custo de possíveis erros (no Direito Penal, por exemplo, considera-se ser mais grave condenar um inocente do que absolver um culpado, razão pela qual o grau de suficiência exigido deve ser maior). No caso do menor que trabalhou na roça, fala-se numa dupla punição. Estamos falando de traumas, ou seja, de uma experiência que marcou não apenas na pele. Dia sim, outro também, escuto minha mãe falando, com voz embargada, sobre como era difícil "carregar os baldes de água, do arroio para...”.

A questão também passa pela análise dos conceitos empregados pela Lei de Benefícios, desde trabalho “indispensável” à “colaboração”. Precisamos desanuviar o horizonte interpretativo. É fundamental perceber que tais conceitos não são criteriais, mas, e isso sim, interpretativos. Ou seja, não há como “medir” o quão “indispensável” era o trabalho da criança ou qual o tamanho de sua “colaboração”. Aqui é que entra a hermenêutica, afinal, qual o sentido do limite ao limite do sentido? O que é “indispensável” ou “imprescindível”? O pandeiro é imprescindível para um bom samba?

Apesar de o “indispensável” significar aquilo que não pode ser deixado de lado, ele não é, por si só, suficiente. Isso porque o regime de economia familiar pressupõe colaboração entre duas ou mais pessoas do mesmo grupo. A colaboração significa o trabalho feito em comum ou mais pessoas, com cooperação, ajuda, auxílio e, sobretudo, divisão de tarefas. Assim, por exemplo, enquanto a criança ordenhava as vacas, o pai fazia o arado com bois, o que tornava possível a dispensa de um terceiro/empregado. Foi necessário um grande esforço hermenêutico para se compreender que o trabalhado da mulher, ainda que conectado a atividades domésticas, era indispensável para o sustento da família. Nenhum trabalho é, por si só, uma atividade de sobrevivência. É como na música: “Nada disso é tudo; tudo isso é fundamental” (Humberto Gessinger). 

O deslocamento da discussão para uma realidade diferente, a realidade de uma criança, exige algo proporcional ao tamanho e à força de uma criança. É por isso que a compleição física não pode ser tratada como um obstáculo para o reconhecimento do direito, mas parte da aplicação do direito. Tanto na Ação Civil Pública como no Tema 219/TNU essa questão restou superada – precedentes de observação obrigatória. Agora, é necessário o manejo de “noções”, como lembra Eros Grau, existem limites, no nosso caso, físicos para uma criança exercer determinados tipos de serviços. É certo que essa linha, ainda que turva, não gravita em torno dos 12 anos de idade – numa espécie de dualismo cartesiano “tudo ou nada”. Deixamos de lado as caricaturas, a força física de uma criança com menos de 5 anos não lhe permite um trabalho que se configure indispensável, então, precisamos encontrar um “meio-termo”. Aqui encontra espaço o pensamento complexo de Edgar Morin. Parafraseando o pensador, o “todo” (o todo é a unidade complexa = equipe) deve ser maior do que a soma de suas “partes constituintes”. É isso que acontece no regime de economia familiar.

Com isso se pretende sustentar que o juiz não pode simplesmente utilizar tal argumento para limitar o trabalho rural antes dos 12 anos de idade, como uma espécie de álibi retórico, uma fundamentação utilizada para fazer deduções e deixar de fora o caso concreto, com o julgamento de centenas de recursos. O mesmo vale para a frequência escolar, outro pretexto comumente utilizado pelos juízes. Cumpre perguntar: estudar e trabalhar na agricultura antes dos 12 anos de idade não é pior do que depois? A frequência escolar nunca foi tratada como um obstáculo para o reconhecimento do tempo de serviço após 12 anos de idade.

Como já se viu, e sobre isso já existe um certo consenso, a legislação previdenciária exige a comprovação da atividade rural, e não a exploração do trabalho infantil (algo como trabalhos em minas de carvão ou coisa parecida). Na verdade, a exploração fica presumida no momento em que admitida a atividade rural, afinal, ao invés de brincar e estudar, a criança ajudava sua família na agricultura.

Do ponto de vista da prova material, não há como exigir algo diferente, sob pena de criamos uma singularidade excludente. Isso sugere um “peso” maior para a prova testemunhal, desde a Justificativa Administrativa até a audiência realizada em juízo (se necessário for), com a adoção de um roteiro pormenorizado ou, até mesmo, inspeção na localidade em que ocorreu o alegado labor. A prova, em todas as esferas, deve produzida com pleno contraditório, ou seja, com a participação das partes. A apuração dos fatos e a valoração da prova precisa observar um contexto histórico, cultural, informacional, econômico e regional. Na década de 60, por exemplo, famílias rurais tinham muitos filhos, o que significava mais mão de obra para o trabalho rural (quanto mais, melhor). Hoje, diferentemente, filhos são sinônimos de despesa, o que justifica a queda vertiginosa na taxa de natalidade. 

Seja como for, busca-se, como já dito, um “meio-termo”.[1] O meio-termo entre excesso e falta pode ser falso. Se dez é demais e dois é pouco, nem sempre seis será o meio-termo. O meio-termo deve preservar a confiança, admitindo-se, como início de prova material, documentos em nome dos pais, desde que espontâneos – e não produzidos para essa finalidade. Aqui, deve ficar claro, não estamos nos inclinando no sentido do excesso ou da falta para atingir o meio-termo. No entanto, quando o que se busca é compensar a pessoa em razão de uma situação de desvantagem no passado, o que fazemos é forçar um dos lados, como quando se tenta endireitar uma madeira empenada.

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Bah1: CF. Livro II de ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 5. ed. São Paulo: Martin Claret, 2011.


Comentários

  1. as vezes perco a fé, outras, a fé me conduz, penso que a força vem das minhas experiencias, então, volto a luta! otimo texto, professor querido, colega muito estimado!

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