ENCHENTES NO RIO GRANDE DO SUL E O INÍCIO DE PROVA MATERIAL EM MATÉRIA PREVIDENCIÁRIA: O QUE É ISTO: “MOTIVOS DE FORÇA MAIOR E OU CASO FORTUITO”?

 

No último balanço divulgado pela Defesa Civil, as chuvas no Rio Grande do Sul já causaram a morte de 107 pessoas, com 425 municípios atingidos, enquanto 164 mil pessoas seguem desalojadas. O número de pessoas desaparecidas também é significativo (136), logo, se você estiver lendo isso agora, é possível que o tamanho da tragédia seja ainda maior – na verdade os números não traduzem o que está acontecendo aqui.[1]

Trata-se de um verdadeiro desastre ambiental. Sim, seja ele natural, antropogênico ou misto, o resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem sobre um ecossistema vulnerável, causando danos humanos, materiais ou ambientais e consequentemente prejuízos econômicos e sociais. A intensificação das chuvas, associada a instabilidade atmosférica severa, vem causando enxurradas, enchentes, inundações e deslizamentos em boa parte do território gaúcho, com a decretação de situação de emergência ou estado de calamidade em vários municípios.

Isso tudo tem uma relação direta com o Direito Ambiental. No entanto, o que se busca, aqui, é estabelecer pontos de contato com o Direito Previdenciário. Numa visão macro, as condições econômicas dos beneficiários da previdência social (segurados e dependentes), o aumento das vulnerabilidades físicas, sociais, econômicas e ambientais, vai exigir muito mais da Seguridade Social. Não se pretende, contudo, seguir por esse caminho. Aliás, não sem antes sublinhar que a solução para um possível colapso da Previdência Social (algo bastante provável em razão da desoneração da folha, da redução das contribuições, etc.) passa, necessariamente, por uma reordenação do seu financiamento. Vou sugerir a utilização de recursos naturais. No Alaska, quando foram descobertas enormes reservas de petróleo no estado, no final dos anos 1960, o governador decidiu que esse petróleo pertencia aos alasquianos e propôs depositar todos os lucros num fundo comunitário.

O que mais perto interessa à problemática são os impactos e consequências desses eventos na vida das pessoas. Isso porque a tragédia no Rio Grande do Sul poderá, ou melhor, já está afetando a saúde de milhares de pessoas, mormente psicológica. Outra preocupação que exsurgiu durante os debates e eventos solidários é a questão da prova em matéria previdenciária, já que a Lei de Benefícios, com comandos voltados para atuação do INSS e Poder Judiciário, trabalha com a ideia de prova tarifada  conforme 55, § 3º, da Lei 8.213/1991.

Este é um ponto delicado, sobretudo, na perspectiva hermenêutica. A solução para diminuir a discricionariedade quanto à determinação da suficiência do grau de confirmação consiste em voltar a provas (legal e jurisprudencialmente) tarifadas ou a mecanismos similares. Na prática, contudo, deparamo-nos, por vezes, com a excessiva rigidez da prova tarifada, mormente em contextos de escassez de documentos. Esse problema agora será potencializado com a situação de segurados que perderam suas casas, móveis e, no meio de tudo isso, documentos importantes documentos que traduzem o histórico laboral de uma pessoa ou a vida em comum com outra pessoa.

Desde a prova tempo de serviço comum ou rural até a união estável exige início de prova material contemporânea, o que significa que não é admitida a prova exclusivamente testemunhal, exceto na ocorrência de motivos de força maior e ou caso fortuito. Eis a questão, vale sublinhar: exceto na ocorrência de motivos de força maior e ou caso fortuito (Lei 8.213/1991, arts. 16, § 5º; 21, II, “e”; 55, § 3º). Tratam-se de institutos que aparecem em vários diplomas legais. Agora, onde encontramos a definição de tais conceitos?

O Código Civil, sem fazer distinção entre os termos, adotou a seguinte definição no art. 393, parágrafo único: “O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”. Na prática, o caso fortuito é o evento que não se pode prever e que não podemos evitar; já os casos de força maior seriam os fatos humanos ou naturais, que podem até ser previstos, mas da mesma maneira não podem ser impedidos.[2] Sem pestanejar, podemos afirmar que a situação dos segurados gaúchos, que perderam tudo nas enchentes e inundações, é contemplada por esta definição.

Mas vamos lá. Isso não resolve o problema da prova. A primeira coisa que devemos considerar é que no Direito Previdenciário trabalhamos com presunções. As presunções não são meio de prova, é verdade, mas a presunção opera no plano da distribuição do ônus da prova. Neste nível, a situação precisa sempre ser contextualizada. Para ficarmos na doutrina ambiental, Paulo Affonso Leme Machado sustenta que “quem alegar o caso fortuito e a força maior deve produzir a prova de que era impossível evitar ou impedir os efeitos do fato necessário – terremoto, raio, temporal, enchente”.[3]

Na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça encontramos um acórdão desafiando os limites do conceito de “caso fortuito”. No caso concreto, foi reconhecido pela própria Administração a impossibilidade de comprovação material por conta da negligência do Estado em armazenar tais documentos. Assim sendo, uma vez comprovada a hipótese de caso fortuito, permitiu-se a por tempo de serviço ancorada, tão somente, em prova testemunhal. (AgRg no AREsp n. 82.633/AP, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 1/3/2016, DJe de 9/3/2016.)

A catástrofe ambiental no Rio Grande do Sul não configura simplesmente um acidente ou ato de Deus, mas envolve “o fracasso do sistema legal ao enfrentar eficazmente os riscos.”[4] As enchentes, inundações, enxurradas e deslizamentos são riscos já conhecidos, para os quais o Poder Público deve operar medidas preventivas. Estamos falando de eventos e situações já experimentadas, com um alto grau de consenso acerca de sua ocorrência. Talvez não fosse possível prever os detalhes, o momento exato e, com maior razão, a magnitude, mas estamos longe de um caso de falta de evidências sobre a ameaça – já não é mais uma questão de se, mas de quando.[5] Seja como for, o tamanho da tragédia ultrapassou qualquer previsão, uma cheia com níveis recordes e ou inéditos.

Ademais, nas lides previdenciárias, é considerada a hipossuficiência informacional do segurado, então, a esse não se pode imputar o dever de evitar ou impedir a destruição dos documentos, quando este não foi possível salvar nem mesmo os móveis e ou a casa.

A situação é complexa, mas precisamos dar o primeiro passo em direção ao enfrentamento de mais um problema envolvendo a prova previdenciária. Chega de “surpresas previsíveis”! Quanto mais nos avizinhamos da possibilidade de denegarmos proteção social a alguém (hoje muito mais vulnerável), com maior clareza começam a brilhar os caminhos e tanto mais questões devem ser feitas: Quais as provas que não permitem segunda via (é importante a busca nos cartórios, inclusive para certificar a eventual perda de informações, isto é, pela destruição de livros físicos ou eletrônicos)? O segurado deve individualizar os documentos perdidos? A inspeção in loco seria uma alterativa (CPC, art. 481)? Fotografias da casa e Boletim e Ocorrência podem ajudar na apuração dos fatos?  

Na perspectiva do Direito Ambiental (dos Desastres), a Seguridade Social é vista como uma espécie de medida preventiva de destrates e de compensação, mormente a partir de benefícios assistenciais. Como assim? A partir da redução das vulnerabilidades físicas, sociais, econômicas e ambientais. A gravidade de um evento climático vai depender do grau de vulnerabilidade da comunidade impactada, da capacidade de enfrentamento e assimilação.[6] Oferecer condições materiais de vida digna e inclusa significa, ao mesmo tempo, aumentar as chances de recompor-se, de buscar alternativas, enfim.

Para finalizar eu gostaria de acrescentar mais uma coisa ...gostaria de agradecer toda a ajuda enviada ao Estado do Rio Grande do Sul. É emocionante essa corrente de solidariedade. Isso nos enche de energia!

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Bah1: CASA MILITAR. Defesa Civil RS. Disponível em: <https://www.defesacivil.rs.gov.br/defesa-civil-atualiza...>. Acesso em: 09 mai. 2024.

Bah2: Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Disponível em: <https://www.tjdft.jus.br/.../caso-fortuito-e-forca-maior....>. Acesso em: 09 mai. 2024.

Bah3: MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. P. 424-425.

Bah4: CARVALHO, Délton Winter de; DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. Direito dos desastres. Porto Alegre: Livraria do advogado Editora, 2013. p. 79.

Bah5: WUCKER, Michele. O rinoceronte cinza: como reconhecer os riscos óbvios que ignoramos e agir de maneira eficaz. São Paulo: Citadel, 2021.

Bah6: CARVALHO, Délton Winter de; DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. Direito dos desastres. Porto Alegre: Livraria do advogado Editora, 2013. p. 56.


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