A INQUISIÇÃO E A PROVA PERICIAL NO DIREITO PREVIDENCIÁRIO


A Inquisição foi oficialmente inaugurada pelo Papa Gregório IX, em 1233, ao anunciar a criação de um tribunal que deveria punir, com o máximo rigor, quaisquer indivíduos que cometessem heresias – estas entendidas ao bel-prazer dos inquisidores. “As vítimas – às vezes, dezenas de uma vez – eram amarradas a postes de madeira, em cujas bases colocavam piras de lenha e feixes de palha. A depender da sentença, a igreja, num gesto último de caridade, estrangulava o herege antes de lança-lo às chamas”.[1]

O que mais interessa à problemática é perceber que essa prática não era inédita: ela havia ocorrido isoladamente, geralmente sob o comando de um chefe militar e de forma discricionária. É importante a constatação de Chaïm Perelman, “de que o direito foi, durante séculos, dominado pelo ideal de uma justiça absoluta, concebida ora como de origem divina, ora como natural ou racional”.[2]

Em pleno Século XXI, o Superior Tribunal de Justiça confere aos juízes o poder de decidirem ao bel-prazer a necessidade (ou não) de prova pericial: “É que a prova constitui elemento de formação da convicção do magistrado, que possui, sob o pálio do livre convencimento motivado, a prerrogativa de avaliar a necessidade das diligências requeridas pelas partes.” Repetido ao infinito, esse discurso não mais aparece como justificação/fundamentação, mas ornamentação (como defende o Professor Lenio Streck). Os processos – às vezes, centenas de uma vez – são julgados improcedentes, sem que a perícia expressamente requerida seja autorizada.

Por outras palavras, o Superior Tribunal de Justiça está dizendo que o direito à prova depende da (boa) vontade do juiz. O juiz, por sua vez, fará uso da jurisprudência da Corte Cidadã para dizer que sua escolha é indiscutível. Seria este um preço razoável a se pagar pelo funcionamento do sistema? A atribuição desse tipo de poder aos juízes pode ser considerado democrático? A prova não é das partes ou do processo?

Ocorre que o CPC/2015 acabou com o livre convencimento (artigo 371) e, ainda, introduziu a exigência de coerência e integridade (artigo 926). A justificativa sugerida por Lenio Streck e acatada pelo Deputado relator foi a de que

embora historicamente os Códigos Processuais estejam baseados no livre convencimento e na livre apreciação judicial, não é mais possível, em plena democracia, continuar transferindo a resolução dos casos complexos em favor da apreciação subjetiva dos juízes e tribunais. Na medida em que o Projeto passou a adotar o policentrismo e coparticipação no processo, fica evidente que a abordagem da estrutura do Projeto passou a poder ser lida como um sistema não mais centrado na figura do juiz. As partes assumem especial relevância. Eis o casamento perfeito chamado ‘coparticipação’, com pitadas fortes do policentrismo. E o corolário disso é a retirada do ‘livre convencimento’. O livre convencimento se justificava em face da necessidade de superação da prova tarifada. Filosoficamente, o abandono da fórmula do livre convencimento ou da livre apreciação da prova é corolário do paradigma da intersubjetividade, cuja compreensão é indispensável em tempos de democracia e de autonomia do direito. Dessa forma, a invocação do livre convencimento por parte de juízes e tribunais acarretará, a toda evidência, a nulidade da decisão.[3]

O pedido de prova pericial deve ser analisado a partir de um padrão de dúvida relevante e de utilidade, vale dizer: com base nas evidências sérias do labor especial. Não necessariamente, a aposentadoria especial irá coincidir com as pessoas que recebem adicionais de remuneração, mas este será sempre um indício de exposição a agentes nocivos – capaz de justificar a necessidade de prova pericial. Nada disso é replicado nas decisões, o que significa a inexistência de critérios seguros e controláveis para a configuração do cerceamento de defesa.

Quando é negada a participação da parte no procedimento de contraditório, ela, na verdade, perde sua “qualidade de parte”, porque deixa de poder influir no resultado final. Na perspectiva dum processo democrático, quando não é permitida a participação da parte, no sentido de influir utilmente na decisão que poderá fazer coisa julgada contra ela, o que temos é um processo totalitário.

No meu livro, “Aposentadoria especial e a nova previdência: os caminhos do direito (processual) previdenciário”, trabalhei com situações (bastante conhecidas) que justificam a necessidade/utilidade da prova pericial, na tentativa de racionalizar o conceito de “cerceamento de defesa”. A questão é racionar a contraditório enquanto garantia de influência e não surpresa em detrimento de uma subjetividade assujeitadora.

Enquanto defendermos o “livre convencimento”, nas faculdades, livros e na solução dos conflitos judiciais, nenhuma garantia processual será garantia de nada!

O desrespeito ao devido processo legal é gritante! Algumas decisões chegam a admitir que a empresa indicou de forma genérica os agentes nocivos, que o formulário não indica a concentração dos agentes, que existem divergências ou dúvidas, que o documento apresenta inconsistências, enfim, chegam a julgar improcedente o pedido ou, até mesmo, a extinguir o feito, sem resolução de mérito, com fundamento na ausência de dados que poderiam ser supridos, exatamente, pela prova testemunhal ou pericial.

Eu entendo, digo, o indeferimento da prova pericial não resulta de um desinteresse pela verdade, mas da convicção de que, para a esta chegar, adotar as informações do PPP "sem inconsistências" é o caminho mais seguro e, com muito maior razão, mais rápido. Ocorre que uma supervalorização do PPP, em desfavor do segurado, é uma opção claramente arriscada.

É importante lembrar que o princípio da primazia do julgamento de mérito permite ao juiz, em diversas fases do processo, sanar eventuais dúvidas, com a possibilidade de determinar a produção de provas, na forma dos arts. 370 e 938, § 3º, do CPC, a fim da decisão ter aptidão de formar coisa julgada material. O autor não pode ser prejudicado em razão da omissão da empresa, em razão da indicação genérica dos agentes nocivos. Verifica-se, com isso, um total desprezo com a chamada “verdade processual”, já que o mais perto que podemos chegar “dela” é por meio do esgotamento dos meios probatórios. Até mesmo no futebol, o juiz que deseja acertar consulta o VAR.

Se o direito garante e regula o procedimento probatório, indicando os meios de prova admitidos, a produção de prova não pode ser conduzida de acordo com a consciência do juiz. Então, o seu indeferimento somente é autorizado se ilícita ou se ela não guardar pertinência alguma com a questão controvertida. Nas ações em que são discutidos períodos de labor especial, a prova pericial só é irrelevante até que seja feita!

Negar o contraditório significa não apenas alijar um direito processual do autor, mas prejudicar o segurado/trabalhador, com a negativa do benefício postulado. Essa percepção deveria ser suficiente para o juiz compreender o que está em jogo. Não obstante, fica claro que o processo é visto como instrumento, e não garantia. Numa perspectiva meramente instrumental, "a ‘decisão judicial’ é gerada a partir da busca de um processo célere. O que importa é o resultado, e não os meios para se chegar ao resultado. A argumentação das partes tem, quando muito, um valor heurístico, mas de modo algum possui um caráter conclusivo. A convicção do juiz é sempre o que mais importa no processo de tomada de decisão."[4]

O processo visto como um instrumento permite a sua desumanização. Isso extrapola qualquer reflexão sobre o tecnicismo processual...

 

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Bah1: MELLER, Lauro. Iron Maiden: uma jornada através da história. 1. ed. Curitiba: Appris, 2018. p. 63-64.

Bah2: PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 9.

Bah3: STRECK, Lenio Luiz. O novo Código de Processo Civil (CPC) e as inovações hermenêuticas O fim do livre convencimento e a adoção do integracionismo dworkiniano. Ano 52 Número 206 abr./jun. 2015. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/.../52/206/ril_v52_n206_p33.pdf>. Acesso em: 13 mai. 2024.

Bah4: SOARES, Carlos Henrique. Coisa julgada constitucional: teoria tridimensional da coisa julgada: justiça, segurança jurídica e verdade. Coimbra: Edições Almedina, 2009. p. 159.


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