REVISÃO DA VIDA TODA: O STF NÃO PODE ERRAR (DEPOIS DE ACERTAR)!
A frase “o STF tem o direito de errar por último” é
mais uma daquelas falas banalizadas, uma falácia que se manifesta através do
senso comum. São rótulos que assumem uma dimensão ideológica e, por vezes,
acabam instigando o próprio comportamento que nos incomoda (é isso que
estudamos no curso de Comunicação Não Violenta). É o que parece estar
acontecendo no julgamento da “Revisão da Vida Toda”!
Tudo começou com uma decisão do Tribunal Regional
Federal da 4ª Região, que, contrário à Revisão da Vida Toda, decidiu: “O
benefício da parte autora enquadra-se na regra do artigo 3º, § 2º, da Lei
9.876/99, que estabelece o início do período contributivo apenas em julho de
1994, não havendo previsão nem possibilidade de utilização de salários
anteriores a essa competência.”
Vamos apelar para a velha dogmática, afinal, tudo
espatifa nela. Quando o acórdão proferido por tribunal de segunda instância
tiver fundamento constitucional e legal, a parte interessada deve interpor
simultaneamente recurso especial e extraordinário, na linha do que dizem os
enunciados n. 126 e n. 283 da súmula da jurisprudência dominante do STJ e do
STF, respectivamente.
Pois bem. O interessado interpôs dois recursos,
especial e extraordinário. O recurso especial, em síntese, versa sobre a
adequada compreensão-interpretação-aplicação do art. 29, I da Lei 8.213/91;
enquanto que no recurso extraordinário, arts. 5º, caput, 201, caput, § 1º, da
CF/1988, que dão concreção aos princípios constitucionais do equilíbrio
financeiro e atuarial, da legalidade, do direito adquirido, da razoabilidade e
proporcionalidade.
Havendo interposição conjunta de recursos, o art.
1.031 do CPC determina, como regra geral, que os autos sejam remetidos, em
primeiro lugar, ao STJ. Somente após a conclusão do julgamento no âmbito do STJ
é que os autos serão encaminhados ao STF para apreciação do recurso
extraordinário, se este não estiver prejudicado pelo julgamento anterior do
recurso especial.
O STJ, analisando questão infraconstitucional,
firmou a seguinte tese: “Aplica-se a regra definitiva prevista no art. 29, I e
II da Lei 8.213/1991, na apuração do salário de benefício, quando mais
favorável do que a regra de transição contida no art. 3o. da Lei 9.876/1999,
aos segurados que ingressaram no Regime Geral da Previdência Social até o dia
anterior à publicação da Lei 9.876/1999.”
A partir daqui a coisa começa a ficar legal.
Note-se que o ministro relator do STJ não considerou o recurso extraordinário
prejudicial em relação ao recurso especial sob o seu exame (CPC, art. 1.031, §
2º). É importante lembrar que uma questão constitucional discutida no recurso
extraordinário pode surgir como prejudicial em relação ao julgamento do recurso
especial.
Tudo isso, até aqui, parece bastante tranquilo.
Ocorre que não foi o recurso extraordinário
interposto pelo segurado o apreciado pelo STF (Tema 1.102). Não. O recurso
apreciado pelo STF foi interposto pelo INSS, nos autos do recurso especial. O
STF, por sua vez, negou provimento ao recurso, fixando a seguinte tese: “O
segurado que implementou as condições para o benefício previdenciário após a
vigência da Lei 9.876, de 26/11/1999, e antes da vigência das novas regras
constitucionais, introduzidas pela EC em 103/2019, que tornou a regra
transitória definitiva, tem o direito de optar pela regra definitiva, acaso
esta lhe seja mais favorável”.
Não obstante, o que vem tomando conta dos
noticiários e dos grupos de whatsapp é voto do Min. Cristiano Zanin, que, em
sede de embargos, está acolhendo a alegação de que o STJ violou cláusula de
reserva de plenário (CF, art. 97), devendo, por isso, o processo retornar ao
STJ para uma nova análise – cumpre perguntar: à luz de qual legislação?
Contradições ao infinito, este, pois, é mais um capítulo da novela envolvendo a
Revisão da Vida Toda.
Deve ter ficado claro, se o tribunal de segunda
instância negou a revisão da vida toda apenas com base na lei
infraconstitucional, cabia, sim, ao STJ analisar a matéria. A questão mais
difícil é, certamente, clarificar a possibilidade de o STJ, de forma incidental,
analisar questão constitucional. O que não pode é o STJ analisar questão
constitucional decidida em acórdão de tribunal de segunda instância, sob pena
de usurpação de competência do STF[1].
Apesar do STJ ter analisado a questão com enfoque
exclusivamente na lei infraconstitucional (é importante sublinhar), é possível
questão constitucional surgir no próprio recurso especial. É isso que, ao fim e
ao cabo, justificou a admissão do recurso extraordinário interposto pelo INSS,
confere? A questão que subjaz diz respeito ao papel do STJ no interior de um
Estado Democrático de Direito. Afinal, o STJ pode fazer controle difuso de
inconstitucionalidade, devendo, pois, seguir as regras do art. 97, como qualquer
outro Tribunal da República.
Seja como for, no julgamento da vida toda não foi
necessário ao julgador se sobrepor à lei, ou seja, a decisão não deixa de
aplicar uma lei ou dispositivo de lei para reconhecer o direito do segurado de
poder escolher a regra mais vantajosa, vale dizer: cumpridos os requisitos
ensejadores do benefício.
A Corte Cidadã, à luz da legislação
infraconstitucional, nada mais fez - e, por isso, muito - do que confirmar a
possibilidade de o segurado que preencher, simultaneamente, os requisitos da
regra de transição e da regra permanente, optar pela mais vantajosa. Simples
assim. Agora, mesmo quando o julgador pensa estar aplicando – exclusivamente –
uma regra, há sempre um princípio sendo homenageado ou violado. Não há como se
deixar a Constituição de fora da aplicação do Direito. As regras devem estar em
consonância com os princípios que as fundamentam.[2]
Na questão da Revisão da Vida Toda, qualquer
violação a preceito constitucional é oblíqua ou reflexa. Lenio Streck, tratando
da prescrição, explica:
É verdade que sempre haverá fumaça constitucional nos atos normativos
infraconstitucionais. Porém, disso não se extrai que se pode abrir as portas da
Corte Constitucional para que se interprete legislação de cunho
infraconstitucional, nos casos em que a questão constitucional — senão
inexistente — é, no máximo, reflexa. Aliás, o STF não admite considerar
questões em que a constitucionalidade aparece como meramente reflexa (tema
660). É disso que se trata, aqui. Não estou vinculado ao mérito sobre prescrição.
Discuto jurisdição. E questiono a panjurisdição constitucional.
[...]
Claramente há condicionantes institucionais que limitam o exercício da
atividade interpretativa, inclusive, a do STF. Pois se ao STF for permitido se
pronunciar por último também sobre a lei federal (sempre), estaríamos então
como que diante de uma espécie de poder de dicta. Sempre que provocado, o
Soberano pode reivindicar o seu poder de dicta para afirmar sua interpretação
soberana da lei?
Se tudo é constitucional, nada mais é. Porque isso abre uma caixa de
pandora que fragiliza a função autêntica da Suprema Corte: e a de guardiã da
Constituição.
[...]
Numa palavra convidativa para o debate: só quando existir uma
interpretação objetivamente arbitrária do STJ é que o STF pode redefinir ou
fixar interpretação (tese) em caso de HC. No mais, tem de apenas julgar o writ
a partir do sentido fixado na jurisprudência do STJ.
Ou seja, somente no caso de uma arbitrariedade interpretativa é que o
STF poderá transformá-la em uma questão constitucional por violação do artigo
que trata da legalidade na Constituição Federal. São as condicionantes
institucionais.
Em termos sistêmicos, vingando a tese do STF, a partir de agora,
qualquer matéria decidida pelo STJ poderá ser alterada pelo STF, mesmo que não
contenha uma ‘questão constitucional’. E todos correrão ao STF. O STJ será rito
de passagem. A ver se vale o risco.[3]
Então, não se verifica qualquer violação à cláusula
de reserva de plenário. Mesmo admitindo que o STJ tenha analisado questão
constitucional, essa ocorreu de modo incidental, o que autorizou o próprio
recurso extraordinário ao STF. Ademais, no julgamento do recurso
extraordinário, o STF afastou expressamente o argumento de violação à cláusula
de reserva de plenário, logo, não há omissão a ser sanada.
O nó górdio é usado como metáfora de um problema
insolúvel (desatando um nó impossível) resolvido facilmente por ardil astuto ou
por uma quebra de paradigma. Discorrer sobre o que aconteceu no caso da Revisão
da Vida Toda é suficiente para deslindar o caso e "cortar o nó
górdio", ou melhor, basta ao STF admitir que essa questão já fora superada
- expressamente no acórdão.
Na verdade, a situação está mais para o paradoxo de
Epiménides. Epiménides, que era cretense, e disse: “Todos os cretenses são
mentirosos”. Portanto, o enunciado é verdadeiro se for falso e é falso se for
verdadeiro, pois quem o enuncia é um cretense mentiroso. Neste nível, se a
questão é constitucional, como já disse o próprio STF, o STJ não precisa mais
analisar a questão (de novo à luz da lei infraconstitucional), e, se for
infraconstitucional, o STF não poderia ter reconhecido a repercussão geral.
A frase “o STF tem o direito de errar por último”
não pode ser aceita, tampouco transformada numa tragédia anunciada! Apesar da
violação oblíqua ou reflexa à Constituição, o STF acertou no mérito!
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Bah1: CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Coisa julgada & questões prejudiciais: limites objetivos e subjetivos. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 196-197
Bah2: Assim, a despeito de o
artigo 20, XI, da Lei n. 8.036/90 não prever tal hipótese, o STJ autorizou o
levantamento do FGTS de uma mãe que pretendia utilizá-lo em benefício de seu
filho portador do vírus da AIDS, e isso com fundamento nos direitos fundamentais
à saúde, à vida e a dignidade, bem assim em função do caráter social do FTGS
(STJ, REsp n. 249026-PR). Exemplos são muitos e colocam o problema da escolha.
Bah3: STRECK, Lenio Luiz.
Prescrição: Quem é o guardião da lei ordinária? STJ ou STF? Revista Consultor
Jurídico, São Paulo, 13 fev. 2020. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/.../lenio-streck-agora-apostar...>.
Acesso em: 30 nov. 2023.
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