FORMA SEM FUNÇÃO: O QUE DEVEMOS PROTEGER?


Tem coisas que só são ditas nos autos de um processo judicial, pois, fora dele, sofreriam um forte constrangimento. No processo, por exemplo, o fato de o formulário PPP, preenchido por profissional habilitado, não indicar o critério utilizado para o cálculo do ruído (“NR-15” ou “NHO-01”) significa a utilização de técnica nenhuma.

Sim, no JEF, o INSS conseguiu transformar esse detalhe num obstáculo para o reconhecimento do direito. Incrivelmente, o Poder Judiciário transformou isso num vício a ser suportado pelo segurado, poupando os verdadeiros responsáveis pela emissão e fiscalização do formulário, empresa e INSS. Agora, o INSS pode se beneficiar da própria torpeza, acenando com falhas técnicas documentos antes aceitos sem nenhuma inconsistência na via administrativa, mormente quando ultrapassada a fase de instrução.

O documento, comprovando a exposição do trabalhador ao agente físico acima do limite de tolerância, é, não raras vezes, desprezado sem qualquer intimação da empresa ou sem dar ao segurado a oportunidade de esclarecer tal informação. Quem o INSS e/ou a justiça pretende proteger? Quem é o destinatário das normas previdenciárias? É o que chamamos de forma sem função!

Mas é possível sofisticar a nossa crítica. Como? Quando dizemos que a causa de um incêndio foi o cigarro que jogamos no bosque, estamos tacitamente pressupondo que estão presentes outras condições sem as quais o efeito não teria ocorrido (por exemplo, a presença de oxigênio no ar). O que determina o que pode ser presumido ou não? O elemento (a)normalidade no contexto. “É a normalidade ou anormalidade no contexto que aponta para um elemento como a causa e nos permite priorizá-lo em relação ao resto das condições.”[1]

A normalidade nos diz que o profissional habilitado (sempre) observa os métodos/técnicas para medir o nível de pressão sonora ao qual esteve exposto o trabalhador durante sua jornada de trabalho (então, não vou presumir o contrário). O profissional foi contratado para elaborar um documento previdenciário (LTCAT), por óbvio, ele deve observar os critérios exigidos pela legislação previdenciária. Vamos ilustrar com o seguinte exemplo. Mesmo constituindo o relatório elemento essencial da sentença, no JEF (em que ele é dispensado), eu não vou presumir que o processo não foi lido - a sua finalidade é, exatamente, permitir que as partes possam verificar que, de fato, o processo foi lido pelo julgador.

A observação dos critérios estabelecidos na NR-15 e/ou na NHO-01 é condição para se chegar ao resultado estampado no documento – representativo da jornada de trabalho. Tanto é assim que o formulário – vale dizer “devidamente preenchido por profissional habilitado” – costuma ser suficiente para negar o direito do autor. Vamos ser sinceros (como se deve ser), a questão da “NR-15” ou “NHO-01” só é um problema quando o formulário padrão traz estampado um nível de ruído acima do limite de tolerância. Não se verifica, na jurisprudência, o mesmo esforço e/ou preocupação com a técnica/metodologia naqueles casos em que o segurado impugna o formulário, com fundamento, por exemplo, na não observação da “NHO 01”, mais vantajosa para o trabalhador.

Ou será que a partir de agora: Será possível ao segurado impugnar o formulário que não indicar “NR-15” e/ou “NHO-01”, isto é, quando o ruído estiver abaixo do limite de tolerância? O documento será considerado suficiente para negar o direito? Será autorizada a prova pericial para sanar a dúvida? Se fosse assim, acho que todos concordaríamos com a tese.

O mesmo vale para o Tema 317/TNU: “A menção à técnica da dosimetria ou ao dosímetro no PPP é suficiente para se concluir pela observância das determinações da Norma de Higiene Ocupacional (NHO-01) da FUNDACENTRO e/ou da NR-15, nos termos do Tema 174 da TNU”. A própria NHO-01 faz referência ao uso do dosímetro, como técnica. É inegável, desde a divulgação da NHT 06 – NHT 07 – NHT 09 publicadas a partir de 1985, a FUNDACENTRO vem tentando instruir os profissionais sobre a importância da dosimetria de ruído. Isso porque um levantamento de ruído com medidores integradores e dosímetros permitem maior exatidão dos resultados. A avaliação de ruído utilizando equipamentos integradores (dosímetros) é a forma mais adequada para se obter um laudo de ruído mais preciso.[2]

O dosímetro faz a integralização dos diferentes níveis de ruído num volume só. Ele é bastante utilizado na elaboração de documentos como, por exemplo, o PPRA, PCMAT, PGR, LTCAT, entre outros. A NHO 01 dá preferência para a dosimetria de ruído, quando utilizado o dosímetro de ruído. Na ausência do dosímetro você pode fazer a medição pontual (decibelímetro), utilizando um medidor de nível de pressão sonora, desde que, ao fim e ao cabo, seja feito o cálculo da dose, que consta tanto na NHO 01 quanto no Anexo 1 da NR 15. Na verdade, o critério técnico vigente no país é o Anexo I da NR-15, o que significa dizer que a NHO-01 é uma recomendação técnica, que, como já se viu, é mais vantajosa para o trabalhador, porquanto menos tolerante ao risco. 

É importante ter em mente, contudo, que a NHO-01 é apenas um critério, entre outros, para se fazer o cálculo. O profissional vai dizer para o instrumento os parâmetros a serem observados. Assim, por exemplo, quando se pede para definir a "técnica" observada, se NR-15 ou NHO-01, o que está em jogo são os critérios de avaliação, entre os quais, o principal é o fator de dobra:  q=3 (NHO-01) ou q=5 (NR-15).

A dosimetria é apresentada como uma técnica mais precisa do que a medição pontual, o que diminui os erros praticados por um técnico que não domina a metodologia de avaliação do profissional responsável pela elaboração do laudo e, consequentemente, as chances de erro. Vale sublinhar: chances de erro, e não fraude.

Na sua manifestação, o INSS aduz que: “em alguns aparelhos, além da configuração da NR-15 e da NHO-01, também se permite que o avaliador estabeleça manualmente seus próprios parâmetros de avaliação, podendo se distanciar dos padrões normativos”. Onde o INSS quer chegar com isso? Sabendo disso, o profissional poderia utilizar qualquer critério e, somente no laudo ou PPP, indicar “NR-15” e/ou “NHO-01”. Não?

A linguagem utilizada sugere uma total inversão das presunções, com a violação dos princípios do in dubio pro ambiente-operário, da prevenção, da proteção do trabalhador, da proporcionalizada e da razoabilidade, para citar apenas estes –, a jurisprudência dos tribunais vem respondendo de outra forma:

9 - Não merece acolhida a alegação no sentido de que não se poderia reconhecer como especial o período trabalhado, em função de a técnica utilizada na aferição do ruído não ter observado a Instrução Normativa 77/2015. O segurado não pode ser prejudicado por eventual equívoco da empresa no particular. Ressalte-se que, em função do quanto estabelecido no artigo 58, da Lei 8.213/91, presume-se que as informações constantes do PPP são verdadeiras, não sendo razoável nem proporcional prejudicar o trabalhador por eventual irregularidade formal de referido formulário, eis que ele não é responsável pela elaboração do documento e porque cabe ao Poder Público fiscalizar a elaboração do PPP e dos laudos técnicos que o embasam. (TRF 3ª Região, 7ª Turma, ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL - 5000617-03.2017.4.03.6128, Rel. Desembargador Federal INES VIRGINIA PRADO SOARES, julgado em 16/08/2022, DJEN DATA: 25/08/2022)

Para os profissionais da área, a discussão soa como um pleonasmo, uma vez que a dosimetria observa as determinações da Norma de Higiene Ocupacional (NHO-01) da FUNDACENTRO e/ou da NR-15.

Com efeito, o único elemento anormal no referido contexto (para o INSS) é o fato de o documento comprovar a exposição do trabalhador ao agente físico ruído. O dito carrega consigo o não dito, isto é, fica clara a desconfiança que gravita em torno dos formulários que comprovam a especialidade do labor. Assim fazendo, o INSS joga para um segundo (terceiro, quarto...) nível qualquer preocupação com a saúde do trabalhador. A discussão agora diz respeito a indicação (ou não) das abreviaturas “NR-15” e/ou “NHO-01” no formulário PPP, uma discussão que (a meu ver) é meramente verbal ou falsa, porquanto distante da finalidade do benefício. A discussão confirma a impressão de que a forma tem maior peso do que eventual dano à saúde, causado pela prolongada exposição ao agente físico ruído.

É impensável, ultrapassada a via administrativa, que se coloque em dúvida questões que dizem respeito ao procedimento técnico. Não se pode cair na cilada/tentação de colocar tudo em dúvida. O que vem depois? Vamos discutir se o profissional observou o prazo de validade do dosímetro? Se o dosímetro estava calibrado? Os valores foram medidos na zona auditiva do trabalhador, como é exigido pelos procedimentos técnicos?

Enfim, o Poder Judiciário está se imiscuindo em questões por demais técnicas e, com suas decisões, transferindo vícios formais dos documentos (formulários e laudos técnicos) para o segurado, poupando os verdadeiros responsáveis pela sua emissão e fiscalização, empresa e INSS.

Não sem razão, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Tema 555, deixou registrado, no item 11, que, em caso de divergência ou dúvida acerca da real eficácia do Equipamento de Proteção Individual, "a premissa a nortear a Administração e o Judiciário é pelo reconhecimento do direito ao benefício da aposentadoria especial." Isso nada mais é - e, por isso, muito -, do que aplicar os princípios do in dubio pro ambiente-operário, da prevenção, da proteção do trabalhador, da proporcionalizada e da razoabilidade, para citar apenas estes. 

Houvesse alguma preocupação com o trabalhador, toda e qualquer dúvida deveria ser solvida mediante a aplicação dos princípios da colaboração, do contraditório e, sobretudo, da prevenção (em sentido lato sensu) – já escrevi muito sobre isso no meu livro. Não sem razão, no Tema 1083, o Superior Tribunal de Justiça manifestou sua preocupação:

Tal interpretação denota a adoção de raciocínio que, na realidade, beneficia o segurado, visto que não impõe a este a obrigatoriedade de providenciar a correção no formulário, mas permite que a atividade especial seja demonstrada nos próprios autos da ação previdenciária.

[...]

Não se olvida que, de acordo com o art. 5º da LINDB, c/c o art. 8º do CPC/2015, o juiz, ao aplicar a lei, atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum, e, como é cediço, a finalidade da norma previdenciária é a proteção social do trabalhador. Contudo, a aplicação do ordenamento jurídico deve ser pautada pela observância do cumprimento dos requisitos legais para o exercício do direito previdenciário por seu titular.

Mas voltando à questão de fundo. Mesmo existindo orientação no sentido de que o formulário PPP é suficiente, porquanto preenchido com base em laudo técnico (Pet. 10.262/STJ), o que não impede o INSS de suscitar dúvida objetiva e idônea quanto a congruência entre os dados do PPP e do laudo que o embasou, o que se pretende agora é cavar mais fundo e colocar em dúvida o próprio laudo. Na justiça, por vezes, esses detalhes são levados às últimas consequências. Assim, persistindo a dúvida, esta é solvida em favor do INSS, a quem cabia a fiscalização. Os advogados ainda são instados a assumir, além dos danos sofridos pelo segurado, a culpa pela atuação deficitária.

No Direito Penal, tem sido frequente que a pessoa flagrada com uma quantidade de drogas, com medo de ser enquadrada como traficante, facilite a identificação de outra, referindo ter adquirido a droga daquela para desviar a investigação em sua direção, desaparecendo, posteriormente, a fim de impedir a ratificação daquilo que foi dito no boletim de ocorrência. Aqui a valoração da prova é desviada para o laudo que fundamentou o PPP, numa tentativa de impedir o reconhecimento do labor como especial, contando o INSS com a possibilidade de a empresa não existir mais, do laudo não registrar a metodologia utilizada e assim por diante. Dessa forma, o INSS consegue aumentar significativamente a probabilidade de o segurado não conseguir demonstrar o labor especial.

Qualquer pessoa entende que a confirmação do critério utilizado é mais exigente do que qualquer outra coisa, inclusive, mais exigente do que a prova clara do ruído acima do limite de tolerância. O que se está estabelecendo é um maior grau de exigência, o que vem sendo transformado num obstáculo para o reconhecimento do direito.

É compreensível que, quanto mais importante for a questão, mais sérias podem ser as consequências, necessitando o julgador de mais segurança nas crenças que orientam sua decisão. No entanto, o julgador precisa se contentar com o menor dos males. As razões que justificam essa “aceitação” estão relacionadas a como queremos distribuir o custo de possíveis erros (no Direito Penal, por exemplo, considera-se ser mais grave condenar um inocente do que absolver um culpado, razão pela qual o grau de suficiência exigido deve ser maior). O formulário PPP, com indicação do agente físico ruído (acima do limite de tolerância) constituiu um standard de prova (uma prova minimamente informativa). Até mesmo a habitualidade e permanência é presumida, mesmo não havendo um campo específico no formulário, com base apenas na profissiografia (Enunciado 25). Isso porque se considera o agente nocivo ali estampado como representativo da jornada de trabalho.

Infelizmente, os temas supramencionados estão sendo estudados e aplicados de modo acrítico, como um pretexto para afastar a especialidade do labor, sem observância do contraditório enquanto garantia de influência e não surpresa, contra os destinatários das normas de proteção previdenciária. O pior de tudo é ver que isso não é um problema no TRF3 ou TRF4, para citar apenas estes, o que só aumenta o abismo entre o rito ordinário e o JEF.

Escrito por Diego Henrique Schuster

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Bah1: Cf.: LAGIER, Daniel González. Uaestio Facti: ensayos sobre prova, causalidade e ação. São Paulo: Editora Juspodivm, 2022. p. 53.

Bah2: REGAZZI, Rogério Dias; ARAÚJO, Giovanni Moraes de. Critérios para avaliação do ruído: divergências entre a NR 15 e a NHO 01 (Fundacentro). Instruptemp. Disponível em: https://instrutemp.com.br/criterios-para.../sem-categoria/>. Acesso em 13 de mar. 2024.

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