TEMA REPETITIVO 692/STJ: O DIREITO PREVIDENCIÁRIO NÃO ESTÁ IMUNE À FILOSOFIA

 

Antes de qualquer coisa: “A reforma da decisão que antecipa os efeitos da tutela final obriga o autor da ação a devolver os valores dos benefícios previdenciários ou assistenciais recebidos, o que pode ser feito por meio de desconto em valor que não exceda 30% (trinta por cento) da importância de eventual benefício que ainda lhe estiver sendo pago.”

A mudança de entendimento na jurisprudência impede a aplicação de precedentes que tenham operado alguma mudança na orientação antes seguida como consolidada. Decerto, há que se verificar se a tutela revogada foi concedida à luz da orientação anterior. Na questão envolvendo o Tema 975, por exemplo, o STJ está modulando os efeitos da decisão, caso a caso, reconhecendo a impossibilidade de novo julgamento para alinhamento com a atual jurisprudência:

PREVIDENCIÁRIO. RECURSO ESPECIAL. BENEFÍCIO. DECADÊNCIA. ENTENDIMENTO DO STF NO RE 626.489 EM REPERCUSSÃO GERAL. APLICAÇÃO DA DECADÊNCIA SOBRE QUESTÕES NÃO ANALISADAS PELA ADMINISTRAÇÃO. SITUAÇÃO DIVERSA DA DECIDIDA PELO STF. 1. Na hipótese dos autos, o acórdão recorrido assentou a seguinte tese: ‘O posicionamento do STJ é o de que, quando não se tiver negado o próprio direito reclamado, não há falar em decadência. Consoante se extrai dos autos, não houve indeferimento do cômputo do tempo de serviço especial, uma vez que não chegou a haver discussão a respeito desse pleito. Efetivamente, o prazo decadencial não poderia alcançar questões que não foram aventadas quando do deferimento do benefício e que não foram objeto de apreciação pela Administração’. 2. Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal, quando examinou o RE 626.489/SE (Tema 313), apontado como paradigma do juízo de retratação, assim decidiu: "O direito à previdência social constitui direito fundamental e, uma vez implementados os pressupostos de sua aquisição, não deve ser afetado pelo decurso do tempo. Como consequência, inexiste prazo decadencial para a concessão inicial do benefício previdenciário." 3. In casu, o acórdão do STJ não afrontou o que foi decidido no RE 626.489/SE. Este julgamento da Suprema Corte não analisou a aplicação do prazo decadencial quando a controvérsia não é objeto de exame pelo INSS no ato de concessão. A decisão paradigma do STF somente tratou da aplicação de direito intertemporal, a qual é distinta deste caso, qual seja, a não aplicação da decadência sobre questões não apreciadas pela Administração. 4. Recurso Especial, em juízo de retratação negativo, provido. (REsp 1572059/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 06/10/2020, DJe 18/12/2020)

Oportuna a citação do seguinte trecho:

Como facilmente se observa, o presente caso foi julgado em momento anterior à mudança de entendimento por esta Corte, o que impede seja rejulgado para alinhamento com a atual jurisprudência, em respeito ao princípio da segurança jurídica. [...]

Ante o exposto, alinho-me ao voto do eminente Ministro Herman Benjamin para proferir juízo de retratação negativo, não só em razão de o caso tratar de matéria diversa do objeto do RE 626.489/SE, mas, também, por sua natureza infraconstitucional, por observância do princípio da segurança jurídica e do disposto no art. 24, parágrafo único, da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro.

Mas vamos além. Pensemos na cobrança do INSS em sede de cumprimento de sentença:

PREVIDENCIÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA PELO INSS. VALORES RECEBIDOS POR FORÇA DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA DE TUTELA POSTERIORMENTE REVOGADA. DEVOLUÇÃO. PROCESSAMENTO NOS PRÓPRIOS AUTOS DA AÇÃO DE CONHECIMENTO. PREVISÃO NO TÍTULO EXECUTIVO. AJUIZAMENTO DE AÇÃO PRÓPRIA. 1. Em que pese a parte autora ter recebido valores em razão de tutela antecipada, posteriormente revogada, o título executivo não previu o respectivo ressarcimento ao INSS, razão pela qual não é possível que a autarquia dê início ao cumprimento de sentença. 2. Hipótese em que o INSS deve buscar a restituição dos valores em ação própria, com as garantias inerentes ao contraditório e ampla defesa. (TRF4, AC 5000376-67.2011.4.04.7112, QUINTA TURMA, Relator para Acórdão ALEXANDRE GONÇALVES LIPPEL, juntado aos autos em 01/09/2022)

O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Tema 1.011 do regime dos recursos especiais repetitivos, ao afastar da incidência da tese jurídica aqueles processos com sentença já transitada em julgado, reafirmou que o julgamento posterior da questão infraconstitucional pelo STJ, mesmo em recurso repetitivo, não tem aptidão para desconstituir a coisa julgada formada anteriormente em sentido contrário (AR 4.443/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, Rel. p/ Acórdão Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 08/05/2019, DJe 14/06/2019).

Temos, até aqui, dois bons motivos para refutar a cobrança de valores em razão de tutela antecipada revogada: (i) a tutela foi conceda antes da afetação do Tema 692/STJ; (ii) o título judicial não previu o respectivo ressarcimento ao INSS.

Talvez esses argumentos sejam irritantemente óbvios. Contudo, não mais óbvios do que defender o caráter alimentar das prestações, já que o benefício tem o condão de substituir os rendimentos do trabalhador. Sim, as parcelas recebidas de boa-fé têm caráter alimentar. No julgamento do Embargos Declaratórios do Tema 709, o STF, ao modular os efeitos da tese de repercussão geral, foi categórico no sentido de que não se questiona a irrepetibilidade dos valores de natureza alimentar, recebidos de boa-fé, sobretudo quando vinham sendo depositados por força de ordem judicial.

Os indivíduos que vinham auferindo o benefício previdenciário em razão de pedidos deferidos pelo Poder Judiciário - ou mesmo voluntariamente pela Administração - encontram-se isentos de qualquer obrigação de devolução dos valores recebidos até a proclamação do resultado deste julgamento. 

Vamos agora à crítica, afinal, o Direito Previdenciário não está imune à filosofia.

É interessante pensar que a decisão do STJ permite que o segurado acesse a justiça com um problema (incapacidade para o trabalho) e saia com outros dois, quais sejam, a devolução dos valores e a perda desse tempo (para fins de contribuição). Por sorte, no Tema 245, a TNU firmou a seguinte tese: “A invalidação do ato de concessão de benefício previdenciário não impede a aplicação do art. 15, I da Lei 8.213/91 ao segurado de boa-fé.”

No entanto, o que mais perto interessa à problemática é verificar a ação do tempo e do próprio benefício implantando por força de tutela antecipada. Nas ações de concessão de benefício por incapacidade, o afastamento pode ter como fundamento tanto a efetiva incapacidade para o trabalho, como a prevenção (em sentido lato sensu), servindo o afastamento do trabalho como parte do tratamento da moléstia.

É possível se presumir que, no curso do processo, o segurado acaba, muitas vezes, recuperando a capacidade para o trabalho. O contrário, contudo, não é possível, quer dizer, não podemos presumir que o segurado ajuizou a ação previdenciária sem interesse de agir, ou seja, não é possível a presunção de má-fé.

Acrescente-se a essa tendência (de recuperação com o passar do tempo), o afastamento do trabalho, proporcionado pela implantação de um benefício em sede de tutela antecipada. Nessa perspectiva, a tutela antecipada é vítima do seu sucesso – assim como as vacinas! Isso porque o afastamento do trabalho proporciona uma recuperação mais rápida do segurado. Ressalta-se que é possível o segurado trabalhar mesmo estando incapaz para o trabalho. Tanto é assim que o STJ, no julgamento do Tema Repetitivo 1.013, reafirmou a tese fixada na Súmula 72 da TNU: "É possível o recebimento de benefício por incapacidade durante período em que houve exercício de atividade remunerada quando comprovado que o segurado estava incapaz para as atividades habituais na época em que trabalhou.”

Tomamos como um exemplo um caso em que a prova pericial foi realizada um (01) ano após a cessão do benefício por incapacidade. Cumpre perguntar: O que teria acontecido com o segurado durante esse tempo? É possível se afirmar a capacidade para o trabalho desde a cessão do benefício na via administrativa?

As chances de o Poder Judiciário acertar são maiores quando ele aplica o princípio da prevenção, em favor do destinatário das normas previdenciárias, o qual encontra campo fértil nas ações previdenciária. Paulo Afonso Brum Vaz adverte:

[...] as ações previdenciárias, acidentárias e assistenciais, máxime as tendentes à concessão e restabelecimento de benefícios, tratamentos de saúde e obtenção de medicamentos, apresentam-se como campo fértil para a antecipação de tutela, sito em razão da invariável hipossuficiência da parte autora, do caráter alimentar da prestação pretendida, dos prejuízos que decorrem da demora na tramitação dos processos desta natureza e da orientação institucional abusiva e protelatória das entidades ancilares.[1]

Não obstante, o Tema Repetitivo 692 trabalha com a presunção de que o segurado poderia ter sobrevivido de outra forma. Sobre a presunção muitas vezes utilizada no Poder Judiciário:

Hoje em dia, parte-se de uma presunção que chega a ser absurda: se o sujeito conseguiu sobreviver durante esse período todo, o crédito não tem natureza alimentar (isto é, o valor que foi acumulado não teria cunho alimentar). No entanto, quantas vezes a pessoa, para sobreviver durante esse período, teve que fazer empréstimos, reduzir a sua alimentação, comprar remédios, submetendo-se a restrições, que são restrições ligadas à própria essência do ser humano? Portanto, esses valores, uma vez recuperados em momento futuro, ainda que acumulados, continuam a ter natureza alimentar, porque vão resgatar a deficiência nutricional que essa pessoa teve durante esse período. Irão ser usados para pagar aqueles que, num momento de dificuldade, a socorreram [...]. Portanto, a verba não tem natureza indenizatória. Na verdade, ela tem uma única natureza: serve ao resgate daquela humanidade que lhe foi suprimida durante um período. Portanto, continua a ter natureza alimentar nesse sentido de sobrevivência, de subsistência. Não é riqueza acumulada, tendo sido valor, denegado, muitas vezes, por falta de adequada diligência [...]. Ele é direito de personalidade e não direito patrimonial.[2]

A concessão do benefício por incapacidade, em sede de tutela posteriormente revogada, constitui um minus em relação ao risco de o próprio Poder Judiciário deixar o segurado desamparado. Trata-se de um risco tolerável, ou seja,  o Poder Judiciário deve corrê-lo, como preço da demora e, sobretudo, considerando o bem da vida em questão. A frase do escritor e filósofo iluminista francês Voltaire muito bem traduz um juízo de valor aplicável na hipótese, qual seja, é “menos pior” para a sociedade ter um culpado solto (salvo) nas ruas do que submeter um inocente ao cárcere.

O prejuízo com a frustração da convicção de incapacidade para o trabalho não é maior do que eventual desamparo ao trabalhador. Por outras palavras, o STJ deve considerar o valor das vidas salvas ou danos evitados (com o afastamento do tempo de trabalho), e não apenas o custo do benefício concedido sob o manto da dúvida e que posteriormente é revogado.

Ademais, a tutela antecipada é concedida a partir do atendimento de critérios seguros e controláveis. É disso que não podemos abrir mão!

O Tema 692/STJ nos dá uma ideia do perigo dos princípios gerais, como no caso da “boa-fé objetiva”, uma espécie de “cláusula aberta”, que dá ao juiz o poder, pelos menos assim ele acredita, de dizer que o benefício concedido em sede de tutela antecipada agora se compara a um contrato de empréstimo: “Não é suficiente, pois, que a verba seja alimentar, mas o titular do direito o tenha recebido com boa fé-objetiva, que consiste na presunção da definitividade do pagamento.”

Ocorre que até mesmo num contrato de empréstimo tem-se os deveres de informação e consentimento, para citar apenas estes, o que não foi observado no caso concreto, uma vez, como já se viu, a decisão que concedeu a tutela antecipada foi anterior à mudança na jurisprudência do STJ. Quem estuda hermenêutica combate a utilização das cláusulas gerais, uma vez que é contra a discricionariedade-arbitrariedade!

Dali em diante é construída uma fundamentação, que ironicamente se apoia no princípio da dignidade humana, para dizer que o INSS poderá fazer o desconto em folha até 30% da remuneração dos benefícios previdenciários em manutenção do mesmo assegurado até a satisfação do crédito. A menção ao conceito ou princípio da dignidade humana - intimamente imbricado com a faticidade humana e relacionado com os benefícios previdenciários -, contudo, aponta para uma solução diametralmente oposta!

 

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Bah1: VAZ, Paulo Afonso Brum. Tutela antecipada na Seguridade Social, São Paulo: LTr, 200. p. 165.

Bah2: CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Interpretação do Direito da Segurança Social. In: ROCHA, Daniel Machado; SAVARIS, José Antonio (Coords.). Curso de Especialização em Direito Previdenciário. Curitiba: Juruá, 2005. p. 266-267.


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