EFICÁCIA PRECLUSIVA DA COISA JULGADA X CAUSA DE PEDIR
O art. 503 do Novo
CPC deixa claro que “a decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem
força nos limites da questão principal expressamente decidida”. Por outro lado,
o art. 508, NCPC, estabelece que, “transitada em julgado a decisão de mérito,
considerar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e as defesas que a
parte poderia opor tanto ao acolhimento quanto à rejeição do pedido”.
É da interação – e
não conflito – entre esses dois dispositivos que se estabelecem os limites da
coisa julgada.
O art. 508 fala em
“todas as alegações que a parte poderia opor tanto ao acolhimento quanto à
rejeição do pedido”, ou seja, está se falando de algo que foi expressamente
pedido e decidido. O mais importante, possivelmente, é superar a ideia de que,
sendo o pedido de aposentadoria como pedido principal, todo o resto poderia ter
sido discutido no primeiro e único processo. Se concordarmos com a aplicação da
eficácia preclusiva da coisa julgada nesses casos, isto é, considerando apenas
o pedido de aposentadoria como principal, chegaríamos à seguinte conclusão
lógica: não é possível a revisão de fato (complementação ou transformação) de
nenhum benefício concedido na justiça, o que romperia com uma jurisprudência
consolidada durante décadas sobre o tema. Não. Cada período, de tempo especial
ou rural, constitui um pedido autônomo.
Tudo isso, até
aqui, parece bastante tranquilo. A questão mais difícil é, certamente,
clarificar o que poderia ter sido deduzido ao tempo da demanda (anterior), isto é, dentro
do mesmo pedido e, por isso, é atingido pela ficção da eficácia preclusiva da
coisa julgada.
Aqui é necessário
dar um considerável passo para além da ideia de pedido. Tomamos como exemplo a
rediscussão do mesmo período, porém, com fundamento em causa de pedir diversa.
Na demanda anterior, o autor deduziu o agente físico ruído, oferecendo um
formulário PPP com apenas este fator de risco. Suponhamos que o pedido de
reconhecimento, como tempo de serviço especial, do período foi julgado
improcedente, aplicando o julgador o Tema 694/STJ, que exige um ruído acima do
qual se assume o risco de surdez ocupacional. Este, portanto, constitui o
antecedente lógico utilizado para resolver a lide – o agente físico ruído
inferior ao limite de tolerância. Nesse processo, portanto, não se discutiu em
contraditório outro agente nocivo que não o ruído, ou seja, não houve
manifestação judicial sobre outros agentes nocivos como, por exemplo, químicos
ou periculosidade.
O STJ afirma que:
“A imutabilidade própria da coisa julgada alcança o pedido com a respectiva
causa de pedir. Não esta última, isoladamente, sob pena de violação do disposto
no art. 469, I, do CPC” (REsp. 11.315-0-RJ). Em poucas palavras, são como duas
faces da mesma moeda, na medida em que o pedido é uma consequência lógica da
causa de pedir. Assim sendo, na demanda anterior, a causa de pedir era o agente
físico ruído. Ali, portanto, foram deduzidas alegações e defesas que guardam pertinência
com a causa de pedir (o agente físico ruído).
Como efeito, o que
está acobertado pela eficácia preclusiva da coisa julgada são todas as alegações e
defesas relativas àquela causa de pedir. Assim, por exemplo, o autor deixou de
alegar que a empresa estava considerando no valor do ruído a curva de atenuação
supostamente promovida pela utilização de EPI, o que contraria o Tema 555/STF.
Deve ter ficado
claro, mas quando o art. 508 diz “todas as alegações que a parte poderia opor
tanto ao acolhimento quanto à rejeição do pedido”, o termo “pedido” não pode
ser lido isoladamente, quer dizer, este pedido é deduzido sobre uma causa de
pedir e, dentro dessa causa de pedir, “considerar-se-ão deduzidas e repelidas
todas as alegações e as defesas que a parte poderia opor tanto ao acolhimento
quanto à rejeição do pedido.” Embora cada relação adulterina autorize a
propositura do divórcio, o seu conjunto integra a mesma causa de pedir próxima,
“havendo cumulação de fundamentos de uma só causa petendi, não várias causas de
pedir. Essa consequência decorre do art. 508 do CPC, dispositivo a determinar a
irrelevância das alegações fáticas integrantes da mesma causa de pedir para a
modificação do que foi decidido.”[1]
Uma das fontes de
erro (com todo respeito) consiste, precisamente, em isolar o termo “pedido” e desolá-lo de sua
causa de pedir. O resultado disso é que tudo dentro do mesmo pedido poderia ter
sido deduzido, logo, aplica-se a eficácia preclusiva independentemente da causa
de pedir, o que significa presumir que o novo agente nocivo não examinado na
demanda anterior foi deduzido, discutido em contraditório e, consequentemente,
rechaçado no processo anterior.
Ocorre que é
possível ao autor deduzir diferente causa de pedir para o mesmo pedido, dentro
da qual, novas alegações e defesas serão problematizadas. Sobre o ponto, cabe
destacar que o artigo 1.072 do novo Código de Processo Civil revogou o §4º, do
artigo 98 da Lei nº 12.529/80 – Lei do CADE, que dizia que não poderia ser
deduzido o mesmo pedido sobre diferentes causas de pedir, o que, certamente,
reforça o entendimento de que a coisa julgada não abrange outras causas de
pedir que, porventura, sirvam de fundamento para o mesmo pedido. Ou seja, um
pedido pode ter mais do que uma causa de pedir.[2]
Desenha-se aqui uma distinção entre um pedido novo e uma nova causa de pedir (para o mesmo pedido). No primeiro exemplo temos um pedido novo (acompanhado, por óbvio, de uma causa de pedir); no segundo, uma nova causa de pedir justificando o mesmo pedido. No primeiro, discute-se, no mesmo nível, a diversidade de apenas um dos elementos (tríplice identidade); no segundo, fatos de idêntica natureza ou essenciais capazes (ou não) de justificar o mesmo pedido. A diversidade de um só elemento acarreta diferença de ação. Façamos um balanço de tudo isso:
Decerto, as alegações e defesas que a parte poderia opor tanto ao acolhimento quanto à rejeição do pedido estão intimamente ligadas à causa de pedir. Dum ponto de vista hermenêutico, não há uma cisão entre causa de pedir e pedido, porém, é possível deduzir diferentes causas de pedir para o mesmo pedido, o que permite a formulação de um desdobramento, que tem como fundamento a diferença entre fatos essenciais e fatos da mesma natureza:
Causa de pedir (agente físico ruído): alegações e defesas que a parte autora poderia opor na relação direta com a causa de pedir - que justifica o pedido, o qual pode ser acolhido ou rejeitado;
Mesmo pedido <
Causa de pedir (agentes químicos): alegações e defesas que a parte autora poderia opor na relação direta com a causa de pedir - que justifica o pedido, o qual pode ser acolhido ou rejeitado.
Alexandre Freitas
Câmara reconhece que faz coisa julgada apenas “aquilo que foi deduzido no
processo, por conseguinte, objeto de cognição judicial”.[3] Para Egas Moniz de
Aragão, o efeito preclusivo da coisa julgada ocorre apenas na lide julgada, mas
não em outra lide, objeto de novo processo, nada impedindo ao interessado
deduzir a alegação ou defesa omitida em um novo processo, em que outra seja a
lide.[4] A leitura desses autores é ainda mais ampla.
Em matéria
previdenciária, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já confirmou constituir o novo agente nocivo um “fato essencial”, e não da “mesma natureza”:
EREsp11264894/PR, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial,
DJe18.11.2015; AgInt no REsp 1.663.739-RS, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe
07/12/2017; STJ, REsp nº 1.603.399/RS, Primeira Turma, Rel. Min. Napoleão Maia
Filho, DJ de 05/02/2020, para citar apenas estes. Na mais recente delas, o
Ministro destacou: “10. Na presente ação, embora o período seja o mesmo já
analisado em ação diversa, a causa de pedir não está fundada no reconhecimento
da submissão ao agente nocivo ruído, mas, sim, na submissão de agentes químicos
nocivos.”
No centro de tudo
está o conceito de causa de pedir. Após defender que a causa de pedir é formada
pelo conjunto de fatos essenciais (acontecimentos concretos da vida)
contemplados na situação de vantagem objetiva que servem de base à obtenção de
consequências jurídicas pretendidas pela parte no processo em um determinado
momento no tempo e no espaço, Darci Guimarães Ribeiro explica: “[...] uma vez
mudado o fato constitutivo do qual a parte extrai as consequências jurídicas
necessárias para configurar a situação de vantagem jurídica, estaremos diante
de uma diversa causa de pedir e, consequentemente, de uma diversa pretensão
processual”.[5]
Não por
coincidência, mas a teoria da substanciação reaparece na discussão. O CPC adota
a teoria da substanciação mitigada, de modo que a indicação de fato
constitutivo diverso caracteriza nova demanda, não sendo relevante a
qualificação jurídica realizada pelo autor (fundamentos jurídicos).[6] A
substanciação faz com que cada fato constitutivo represente uma causa de pedir.
Assim, cada agente nocivo configura um fato autônomo, vale dizer: capaz de
gerar consequências jurídica/enquadramento num decreto – incidente num suporte
fático. Nesse sentido, pode-se categorizá-los como fatos essenciais, cuja
ocorrência isolada permite a caracterização do tempo de serviço especial.
Compreende-se
a preocupação de quem entende que isso poderá trazer instabilidade às relações
jurídicas, uma vez que, com a constante descoberta de novos agentes nocivos, o
segurado poderia renovar o pedido ilimitadamente. No entanto, isso é, quase
certamente, um exagero. O que se tem são riscos concretos (conhecidos) e
inerentes à função desempenhada pelo autor, e não riscos desconhecidos e
futuros (abstratos), como aqueles que pairam sobre o trabalhador que manipula
nano partículas, ou seja, cujos efeitos (ainda) não são cientificamente
conhecidos. Em muitos casos o autor apostou em apenas um agente nocivo por
conta da justificada confiança na jurisprudência do tribunal (e.g.: a questão
envolvendo o ruído acima de 85 decibéis – vide redação revogada da Súmula
32/TNU).
Assim, uma valoração realista e contextualizada do caso concreto pode ser suficiente para superar o pré-juízo (in)autêntico de que o advogado pretende ajuizar tantas ações quanto forem os agentes nocivos, numa tentativa de ampliar suas chances, mesmo sabendo das implicações que isso tem (demora, decadência, prescrição e, sobretudo, coisa julgada!).
Este é um ponto de
vista objetivo e neutro da solução tomada pela jurisprudência previdenciária.
Acrescente-se a isso o Tema 629/STJ, no sentido de que a prova nova vem suprir
a ausência ou insuficiência de provas no processo anterior.
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Bah1: SILVA, Ricardo Alexandre da. A nova dimensão da coisa julgada. São
Paulo: Thomson Reuters, 2019. p. 185.
Bah2: Nesse sentido: “Em respeito ao direito fundamental de ação, ao
devido processo legal e ao contraditório, insertos no art. 5º, XXXV, LIII e LV,
CF, ora se perfilha a corrente majoritária, segundo a qual com a formação da
coisa julgada preclui a possibilidade de rediscussão dos argumentos e razões
que digam respeito, tão somente, à causa de pedir deduzida pelo autor. A
eficácia preclusiva da coisa julgada, não poderia, jamais atingir todas as
outras causas de pedir que pudessem servir para embasar aquela mesma pretensão,
sob pena de grave ofensa ao direito fundamental de ação, o devido processo
legal e o contraditório”. DIDIER JÚNIOR, Fredie; BRAGA, Paulo Sarno; OLIVEIRA,
Rafael. Curso de direito processual civil. Salvador: Juspodivm, 2012. v. 2. p.
439.
Bah3: CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 24.
ed., São Paulo: Atlas, 2013. p. 532.
Bah4: ARAGÃO, Egas Moniz de. Sentença e coisa julgada. Rio de Janeiro:
AIDE, 1992.
Bah5: RIBEIRO, Darci Guimarães. Análise epistemológica dos limites
objetivos da coisa julgada. In: STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo;
ENGELMANN, Wilson (Org.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do Programa de
Pós-graduação em Direito da UNISINOS: mestrado e doutorado: n. 9. Porto Alegre:
Liv. do Advogado; São Leopoldo: UNISINOS, 2012, p. 81-86.
Bah6: SILVA, Ricardo Alexandre da. A nova dimensão da coisa julgada. São
Paulo: Thomson Reuters, 2019. p. 185.
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