ADI 6.309 E O FUTURO DA APOSENTADORIA ESPECIAL ENQUANTO TÉCNICA DE PROTEÇÃO DO TRABALHADOR

 

No dia 17/03/2023, iniciou o julgamento da ADI 6.309, que versa sobre a idade mínima e o critério de cálculo na aposentadoria especial, além da (im)possibilidade de conversão do tempo de serviço especial em comum após a edição da EC 103/2019.

O Min. Relator Roberto Barroso, relator, apresentou voto pela improcedência da ação, com a fixação da seguinte tese de julgamento: “ Não ferem cláusula pétrea os dispositivos da Emenda Constitucional nº 103/2019, relativos ao Regime Geral de Previdência Social, que (i) estabelecem idades mínimas para a aposentadoria especial por insalubridade (art. 19, § 1º, I), (ii) vedam a conversão de tempo especial em comum (art. 25, § 2º) e (iii) modificam a forma de cálculo dos proventos de aposentadoria especial por insalubridade (art. 26, § 4º, IV)”.

A contextualização dos motivos da reforma da previdência, tais como o aumento da expectativa de vida, o suposto déficit, a saída prematura do mercado de trabalho, enfim, não possui relevância jurídica no contexto da ADI 6.309, já que se discute a finalidade do benefício de aposentadoria especial. Fosse assim, poderíamos problematizar outras tantas abordagens como a criação de novas demandas em razão da idade mínima: a) novos empregos serão necessários, para absorver uma faixa etária que encontra sérias dificuldades no mercado de trabalho; e b) prolongar o tempo de trabalho insalubre, penoso ou perigoso aumenta a probabilidade de danos à saúde e/ou à integridade física. Faltam estudos de impacto social, econômico, enfim, o que dizer das idades de 55, 58 e 60 anos para a aposentadoria especial (de onde se tirou isso)?

Com efeito, não há como se comparar a aposentadoria especial com os demais benefícios, no sentido de seguir “o mesmo objetivo do estabelecimento de uma idade mínima para a aposentadoria voluntária dos segurados do regime geral de previdência social: impedir a saída prematura do mercado de trabalho e a sobrecarga do sistema com o pagamento de benefícios por prazos demasiadamente longos.” Uma coisa é a aposentadoria por idade, outra, muito distinta, é a aposentadoria especial, que traz consigo uma presunção de incapacidade absoluta, com se verifica no voto do Ministro Dias Toffoli, relator no julgamento do Tema 709: “Trabalha-se com uma presunção absoluta de incapacidade decorrente do tempo do serviço prestado, e é isso que justifica o tempo reduzido para a inativação.”[1]

Ainda, o voto do Ministro Luís Roberto Barroso parte da premissa de que “a exigência de idade mínima para passar à inatividade de forma precoce – isto é, antes do tempo exigido dos trabalhadores em geral – não é uma exclusividade brasileira”, quando o que discute é retirar o trabalhador mais cedo do trabalho, a fim de evitar o dano e, como muito maior razão, atenuá-lo. Como já se viu, o que está em jogo é o trabalho que “[...] pode fazer com que as pessoas venham a morrer prematuramente, isto é, ‘antes da hora’” [...]”, por causas distintas daquelas “esperadas” (por agravos que ocorrem excessivamente em algumas categorias).[2]

Ao perquirir a finalidade do benefício, o Supremo Tribunal Federal assim concluiu: “[...] deve-se indagar: qual a finalidade da previsão constitucional do benefício previdenciário da aposentadoria especial? Por óbvio, é a de amparar, tendo em vista o sistema constitucional de direitos fundamentais que devem sempre ser perquiridos – vida, saúde, dignidade da pessoa humana -, o trabalhador que laborou em condições nocivas e perigosas à sua saúde, de forma que a possibilidade do evento danoso pelo contato com os agentes nocivos levam à necessidade de um descanso precoce do ser humano, o que é amparado pela Previdência Social.”[3]

A idade mínima não apenas potencializa o risco causado pelos agentes nocivos, mas obriga o segurado a permanecer no trabalho após o cumprimento do tempo de efetiva exposição a agentes nocivos. No julgamento do Tema 709, o Supremo Tribunal Federal foi, uma vez mais, categórico: “A norma se presta, de forma razoável e proporcional, para homenagear o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como os direitos à saúde, à vida, ao ambiente de trabalho equilibrado e à redução dos riscos inerentes ao trabalho.” A conclusão: “É vedada a simultaneidade entre a percepção da aposentadoria especial e o exercício de atividade especial, seja essa última aquela que deu causa à aposentação precoce ou não.”

Então: por que o percipiente de aposentadoria especial não pode permanecer ou retornar ao trabalho insalubre, perigoso ou penoso? A resposta só pode ser: porque isso contraria a finalidade do benefício, qual seja, evitar o dano e, com muito maior razão, atenuá-lo, mediante a redução do tempo de trabalho (com contribuição) sob condições prejudicais à saúde e à integridade física/mental. Isso vale para idade mínima.

No que diz respeito ao critério de cálculo, colocou-se a aposentadoria especial no mesmo nível dos demais benefícios, prejudicando, ainda mais, o segurado que trabalhou sujeito a agentes nocivos durante 15, 20 ou 25 anos. Ao revés do argumento de que “não é verdadeira a afirmação de que esses trabalhadores receberão valor menor de proventos que o segurados que laboram em condições normais.”, o que se tem é o famoso “dar com uma mão e tirar com a outra”. Não se pode aceitar como “benesse” a redução do tempo de contribuição e idade mínima, em razão da efetiva exposição a agentes nocivos (durante 15, 20 ou 25 anos), se, por outro lado, o valor do benefício sofrerá uma redução muito maior do que na aposentadoria por tempo de contribuição - será proporcional ao tempo de contribuição. Alguém com 25 anos de efetiva exposição a agentes nocivos fará jus a um coeficiente de apenas 70% sobre o salário-de-benefício.

Ao lado desses enganos muito difundidos, tem-se ainda que a vedação da conversão constitui uma opção legislativa legítima, que confere maior peso, dadas as circunstâncias atuais, à necessidade de restabelecer o equilíbrio financeiros e atuarial do sistema previdenciário. No Tema 942 (RE 1014286), contudo, o Supremo Tribunal Federal confirmou que o fator de conversão nada mais é – e, por isso, muito – do que um ajuste da relação de trabalho, com a proteção daquele que exerce trabalhos insalubres, independentemente de por quanto tempo.

Com a devida vênia, mas não é possível que argumentos funcionalistas tenham preferência sobre argumentos normativos, o que, no caso concreto, leva ao sacrifício de direitos fundamentais.[4] Direitos fundamentais não são garantia de nada, quando a Suprema Corte decide por política ou com fundamento em argumentos econômicos, e não por princípios. Onde está a responsabilidade política do juiz ...a força normativa da Constituição? Segundo Lenio Streck: “Decidir por princípio significa não ser consequencialista nos moldes da análise econômica do direito (AED) ou da análise moralista do direito (AMD).”[5]

Precisamos enfrentar o argumento que coloca os recursos orçamentários como limite à proteção do trabalhador. Sobra realidade nas comparações com outros países, que, ao revés do Brasil, apostam na eliminação dos riscos no meio ambiente do trabalho. No Brasil se aposta em "representações ideais", que, na sequência, são aplicadas por mimetismo à realidade.

A reforma da previdência ultrapassou os limites que desafiam a previdência social de oferecer proteção social, com especial atenção para a saúde do trabalhador. Com um discurso endereçado para o futuro, negamos, hoje, proteção adequada. No seu voto, o Min. Roberto Barroso expressa a lógica do governo, atribuindo mais valor a números do que à ordem normativa vigente e à faticidade humana.

É estranha, inclusive do ponto de vista moral, essa condenação do benefício de aposentadoria especial, por evidenciar e confirmar a impressão de que não é considerado o valor das vidas salvas ou danos evitados (com a redução do tempo de trabalho), mas tão somente o custo do benefício e/ou a praticidade de se conceder uma aposentadoria por invalidez ao trabalhador já incapacitado para o trabalho ou, na sua ausência, a pensão por morte aos seus dependentes. Embora sem trazer elementos estatísticos é possível se estabelecer uma relação de custo-benefício, considerando o custo com doenças e acidentes do trabalho. O tratamento diferenciado, seja qual for seu preço, é defensável precisamente onde o preço da igualdade (formal) tem sido o adoecimento ou a morte de trabalhadores. 

A decisão do Ministro Relator segue numa defesa genérica da reforma da previdência social, sem, contudo, perquirir a compatibilidade das regras com a Constituição Federal (entendida, à toda evidência, no seu todo principiológico), além das Convenções que diretamente tratam da saúde do trabalhador: Convenções 18 e 42 (sobre enfermidades profissionais), Convenção 115 (sobre proteção contra radiação), Convenção 121 (sobre acidentes do trabalho), a Convenção 136 (sobre o benzeno), a Convenção 139 (sobre o câncer profissional), a Convenção 148 (sobre o meio ambiente do trabalho, a Convenção 155 (sobre a segurança, saúde ocupacional e meio ambiente do trabalho), a Convenção 161 (sobre serviços de saúde ocupacional), a Convenção 162 (sobre o amianto), a Convenção 167 (sobre seguridade e saúde na construção) a Convenção 170 (sobre produtos químicos), a Convenção 174 (sobre a prevenção de acidentes industriais) e a Convenção 177 (trabalho em domicílio).

É importante lembrar que o Brasil ratificou as Convenções da OIT a respeito do trabalho forçado: tanto a n. 105, que trata de sua abolição, quanto a n. 29 que designa como “trabalho forçado ou obrigatório” todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu por espontânea vontade. No seu art. 21: “Não se aplicará o trabalho forçado ou obrigatório para trabalhos subterrâneos em minas”.

Além disso, a decisão não observa o dever de coerência e integridade do direito. A coerência significa dizer que, em casos semelhantes, "deve-se proporcionar a garantia da isonômica aplicação principiológica". Ou seja, somente "haverá coerência se os mesmos princípios que foram aplicados nas decisões o forem para os casos idênticos; mas, mais do que isto, está assegurada a integridade do direito a partir da força normativa da Constituição". Já a integridade "é uma forma de virtude política. A integridade significa rechaçar a tentação da arbitrariedade".[6] 

Seja qual for a abordagem, a solução do conflito passa, necessariamente, por uma leitura/interpretação integrada dos arts. 7º, XXIII; 170; 193; 200, VIII; 201, § 1º; e 225, caput e V, para citar apenas esses. A norma que solucionará o conflito será fruto da interpretação desses artigos, sendo que o sentido atribuído aos seus textos deve ser construído sob a inspiração dos princípios que os fundamentam. A Constituição de 1988 – antecipando a promulgação da Convenção 155 da Organização Internacional do Trabalho pelo Decreto 1.254, de 29 de setembro de 1994 – conferiu ao cidadão o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, nele compreendido o meio ambiente laboral (art. 225); e determinou, como direito fundamental social dos trabalhadores, a “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” (art. 7º, inc. XXII), com vistas a conservar a “existência digna” do trabalhador (art. 170, caput), bem assim a condição da dignidade humana e a justiça social (art. 193), devendo, até mesmo o SUS, “colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido do trabalho” (art. 200, inc. VIII). Isso tudo deságua no art. 201, § 1º, II, da CF.

Os artigos supramencionados conferem concreção aos princípios da prevenção, da igualdade, da proteção social, da vida, da saúde, da prevenção/precaução, da proporcionalidade (no sentido de insuficiência na proteção de um direito fundamental-social), da dignidade da pessoa humana, vedação do retrocesso, para citar apenas estes – que não foram revogados da Constituição. Uma vez atingindo um determinado nível de proteção do trabalhador/segurado, esse nível não pode ser diminuído.[7] Toda e qualquer redução na ordem de prevenção – contra acidentes e doenças laborais –, contida nos preceitos normativos vigentes, configura um retrocesso.

Os princípios da solidariedade, da seletividade e da distributividade permitem escolhas direcionadas para a prevenção e a proteção de determinadas categorias. As empresas são obrigadas, por lei, a contribuírem para o financiamento do benefício da aposentadoria especial, a partir dos acréscimos de 6%, 9% ou 12%, vale sublinhar: incidentes sobre a remuneração dos trabalhadores. Não se pode admitir o risco somente para fins arrecadatórios (SAT), e não para concessão da aposentadoria especial. É como já disse José Antônio Savaris: “Mas uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo”. Esquecem-se que o agrupamento das atividades por grau de risco tem, como base, as estatísticas de acidente do trabalho, apuradas em inspeção (Lei 8.212/91, art. 22, § 3º).[8]

Não se trabalha apenas com a solidariedade prevista no art. 3º, I, da CF/1988, mas é, como defende Ingo Wolfgang Sarlet, um desdobramento do princípio da dignidade da pessoa humana. Para o autor, o conceito de dignidade da pessoa humana é calcado no substrato axiológico e conteúdo normativo, sendo que propõe um desdobramento da dignidade em quatro princípios, quais sejam o da igualdade, o da integridade física e moral, o da liberdade e o da solidariedade.[9]

No espaço dos direitos fundamentais, é importante o controle constitucional das novas regras, mormente quando os atos de poder parecem não coincidir com as reinvindicações da sociedade, razão pela qual o Brasil ocupa o quarto lugar no ranking mundial de acidentes de trabalho.

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Bah1: RE 791961, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 08/06/2020, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-206 DIVULG 18-08-2020 PUBLIC 19-08-2020.

Bah2: MENDES, René. Saúde e segurança no trabalho: acidentes e doenças ocupacionais. In: FERNANDES, Reynaldo (Org.). O trabalho no Brasil no limiar do século XXI. São Paulo: LTr, 1995. p. 201.

Bah3: ARE 664335, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 04/12/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-029 DIVULG 11-02-2015 PUBLIC 12-02-2015.

Bah4: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do direito. Belo Horizonte: Letramento, 2017. p. 116.

Bah5: STRECK, Lenio Luiz. O que é decidir por princípios? A diferença entre a vida e a morte. Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 06 ago. 2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/.../senso-incomum-decidir...>. Acesso em 21 mar. 2023.

Bah6: STRECK, Lenio Luiz. Por que agora dá para apostar no projeto do novo CPC! Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 21 out. 2013. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/.../lenio-streck-agora-apostar...>. Acesso em: 21 mar. 2023.

Bah7: AYALA, Patryck de Araújo. Deveres de proteção e o direito fundamental a ser protegido em face dos riscos de alimentos transgênicos. 2009. f. 264. Tese (Doutorado em Direito) – Curso de Pós- -Graduação em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis-SC.

Bah8: SAVARIS, José Antônio. Direito processual previdenciário. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2011. p. 81.

Bah9: SARLET, Ingo Wolfgang. Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 123.


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