NOTA MENTAL PARA 2022: COMO DESARMAR OS PRÉ-JUÍZOS INAUTÊNTICOS
Ante a natureza
social da demanda previdenciária, prejudicar um cidadão por uma prova mal
colhida durante o processo, é um “dano a toda uma visão social que merece
o Direito Previdenciário”. Vou insistir nas palavras de Néfi Cordeiro, quando
ainda desembargador do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Para o atual Ministro do Superior Tribunal de Justiça, não se
poderia prejudicar o segurado com fundamento numa atuação deficitária do seu
advogado, do juiz, enfim, de todos aqueles que estavam operando no processo.
Quando o julgador pondera a prova a qual deve prestar maior valor, às vezes, parte-se da equivocada premissa de que, necessariamente, uma deve prevalecer sobre a outra, isto é, a prova pericial deve prevalecer sobre a prova testemunhal ou documental, como se estas duas últimas não fossem igualmente importantes, no conjunto (lado a lado). As provas suplementam-se mutuamente e podem, além disso, reforçar umas às outras. De cara: “Cada um dos meios de prova tem, qualitativamente, pontos positivos e negativos, a sapiência está no seu manejo visando maximizar os resultados quando contribuam positivamente, procurando minimizar os efeitos negativos quando se apresentarem”.[1]
É
possível a prova testemunhal complementar a prova pericial, esclarecendo atividades
efetivamente exercidas, bem assim os produtos usados-manipulados-utilizados pelo
segurado e/ou presentes no meio ambiente do trabalho. Conforme o § 3º do art.
473 do CPC, o perito e os assistentes técnicos podem valer-se de
todos os meios necessários, ouvindo testemunhas, obtendo informações,
solicitando documentos que estejam em poder da parte, de terceiros ou em
repartições públicas, bem como instruir o laudo com planilhas, mapas, plantas,
desenhos, fotografias ou outros elementos necessários ao esclarecimento do
objeto da perícia.
Neste
nível, a prova testemunhal produzida em juízo pode – deve – ser considerada
pelo perito, auxiliando na apuração dos fatos, e, com muito maior razão, pelo
julgador, auxiliando na valoração da prova. Naqueles casos em que a prova
pericial é produzida antes da prova testemunhal, esta ainda pode – deve –
ser confrontada com os depoimentos, a fim de se avaliar a suficiência
do laudo. Há que se garantir o efetivo diálogo
judicial, como consequência do direito de influência e não surpresa.
Na medida em que o perito não pode postergar sua decisão
na espera por mais provas e/ou melhores informações, há que se ter maior
tolerância no que diz respeito à valoração do laudo.
A prova pericial não se interpõe entre as demais provas acostadas aos autos e a pretensão do autor, como se fosse uma terceira coisa. Não existe, necessariamente, um conflito entre as provas. Assim, por exemplo, a conclusão do laudo tende a convergir com alguma informação estampada no formulário fornecido pela empresa ou demais documentos oferecidos pela parte autora. A prova pericial é condição para a decodificação e construção técnica do sentido jurídico de risco, a fim de estabelecer a configuração do labor especial, por exemplo. Dentro disso, contudo, deve-se abrir espaço para uma dialética que, por meio do contraditório e uma visão holística do conjunto probatório, permita um aprofundamento.
O novo CPC deu à prova testemunhal a importância
devida, permitindo ao juiz ouvir um menor (art. 447, § 4º), bem assim conferiu
a ela status de “prova nova”, para fins de ação rescisória (art. 966, V).
Esse,
aliás, é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça: “No novo ordenamento
jurídico processual, qualquer modalidade de prova, inclusive a testemunhal, é
apta a amparar o pedido de desconstituição do julgado rescindendo. Doutrina”. (REsp
1770123/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em
26/03/2019, DJe 02/04/2019).
O mesmo que se disse sobre a prova pericial ou
documental vale para a testemunhal, ou seja, ela não pode ser tratada como uma terceira
coisa. Assim como a prova pericial, a prova testemunhal é plenamente discutida
em contraditório. Não obstante, alguns julgadores a tratam como uma terceira
coisa, presumindo a possibilidade de sua manipulação de acordo com os
interesses da parte, mormente quando decisiva para preencher lacunas (e.g.:
CTPS com anotação genérica da função).
Infelizmente, quando a prova testemunhal é requerida
com a finalidade de preencher lacunas deixadas pela ausência/insuficiência de
provas documentais, alguns julgadores focam nas fragilidades da prova
documental, sugerindo uma atuação deficitária do advogado. Alguns, não
contentes em apenas julgar improcedente o pedido, sugerem que o advogado quer
se beneficiar da própria torpeza, algo como: você deixa de apresentar prova
documental para a prova testemunhal dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa. O
dito carrega consigo o não dito, isto é, o juiz está presumindo a má-fé. Tratam-se,
pois, de pré-juízos inautênticos. Na verdade, o único a se beneficiar da própria
torpeza é o INSS, que deixou de
fiscalizar as empresas hoje desativadas.
De fato, a função “serviços
gerais” pode ser qualquer coisa. Agora, não no interior de uma empresa de
calçados, no setor de produção, onde o contato com colas e solventes é indissociável
da produção do bem. Aqui ganha importância as regras de experiência (CPC, art.
375), que são presunções comuns, também “conhecidas por simples ou de homem,
são as que a lei não estabelece, mas se fundam naquilo que ordinariamente
acontece. São aquelas em que o juiz, baseado em coisas ou atos que geralmente
acontecem ou se realizam, ou em fatos acontecidos, delas tira a verdade do caso
sub-judice.”[2]
Decerto, precisamos arrancar o particular do universal e suportar a circularidade, o mundo já está aí e você precisa lidar com isso, logo, os sentidos construídos e consolidados na tradição devem interpelar o julgador. Existe uma linguagem pública construída na intersubjetividade, na experiência compartilhada. Desse modo, até mesmo na literatura: “Supunha – já que a via algumas vezes com as mãos sujas de óleo e munida de uma chave inglesa – que tivesse uma função de caráter mecânico em alguma das máquinas romanceadoras.”[3] Nesse sentido: "À luz das regras da experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece (art. 375 do novo CPC), tais materiais tóxicos consistem, possivelmente, em óleos e graxas típicos da atividade de mecânico (hidrocarbonetos aromáticos)". (5002906-57.2014.404.7009, TURMA RECURSAL SUPLEMENTAR DO PR, Relator Marcus Holz, julgado em 29/06/2016); “É notório que a atividade de pintor envolve o uso de hidrocarbonetos, como tintas e solventes.” (TRF4, AC 5006551-32.2019.4.04.7101, QUINTA TURMA, Relator OSNI CARDOSO FILHO, juntado aos autos em 04/10/2021), para citar apenas estas decisões.
Em matéria previdenciária,
portanto, a prova testemunhal assume um importante papel, uma vez que tem como
finalidade confirmar/individualizar as atividades efetivamente exercidas pelo
segurado/beneficiário, a fim de, para se aferir os agentes nocivos aos quais
ele estava exposto, de modo habitual e permanente, permitir a realização de
prova pericial (in loco ou estabelecimento similar) ou de
possibilitar a aplicação de laudos por analogia. A Súmula 106/TRF4 contempla situações em que a empresa encontra-se desativada.
A jurisprudência
do Egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região admite a comprovação da
especialidade por meio da produção de prova testemunhal, complementada pela
prova pericial: “Na ausência de formulário preenchido pelo
empregador, é possível a comprovação das atividades desempenhadas pelo segurado
por outros meios como, por exemplo, a prova testemunhal; de modo a permitir a
utilização de laudo de empresa similar ou a realização de perícia técnica por
similaridade.” (Acórdão
Classe: APELREEX - APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO, Processo:
0003958-64.2013.404.9999, UF: RS, Data da Decisão: 06/09/2016, Orgão Julgador:
QUINTA TURMA, Relator ROGER RAUPP RIOS).
Escrito
por Diego Henrique Schuster
[1] FERREIRA, William Santos. Princípios fundamentais da
prova cível. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 76.
[2] SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e comercial,
vol. I, 2. ed., correta e atualizada. São Paulo: Max Limonad, 1952. p. 84.
[3] ORWELL, George. 1984. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 20.
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