DIREITO PROCESSUAL PREVIDENCIÁRIO: O “PRIVILÉGIO COGNITIVO DO JUIZ”

 


    Ingressamos em um processo já sabendo o que é um mecânico (e.g.: de carros). Tal pré-compreensão é condição de possibilidade para a compreensão e atribuição de sentido, bem assim para a valoração da prova. No entanto, o comportamento processual faz com que alguns ocultem de si mesmos tal questão, apostando o juiz, única e exclusivamente, na prova exigida por lei, como se esse fosse o único caminho para o conhecimento da “verdade”.

    Lenio Streck denuncia a aposta na figura do processo, o que acaba sendo uma espécie de delegação em favor do “Privilégio Cognitivo do Juiz”. É possível se visualizar algo parecido no processo previdenciário, quando, ao mesmo tempo que se reconhece o contato do mecânico com óleos e graxas, como algo inerente à função, mas não se abre mão de dar ao juiz o poder de indeferir o pedido de prova pericial e/ou admitir como suficiente o formulário PPP produzido pela empresa, como se a ele fosse possível conduzir a produção de provas conforme sua consciência e, pior ainda, negar não apenas uma linguagem pública sobre as garantias do contraditório, da ampla defesa e do devido processo (legal ou previdenciário), mas o mundo prático. Assim, mesmo sem plena correspondência fática, o formulário “sem inconsistências” é adotado como prova absoluta da não exposição do mecânico a agentes químicos.

    A questão que se coloca é: como preservar e comprovar os fatos alegados diante desse tipo de postura, que visa justificar tão-somente a autoridade do juiz (seus poderes instrutórios), sem compromisso com os princípios da coerência e integridade do direito? Alguns magistrados simplesmente ignoram o mundo no qual estão imersos (as evidências sérias do labor especial), criando no processo uma realidade paralela, dentro da qual é possível dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa. O CPC não diz para o juiz rejeitar provas materiais que seus olhos e ouvidos lhe oferecem.

    Interessante a forma como Rudolf von Ihering aborda a ruptura com o pensamento logico-forma em “O Paraíso dos Conceitos Jurídicos” (1884). Para se entrar no paraíso dos conceitos, os candidatos tinham que antes passar por uma “quarentena”. Isso funcionava como uma “limpeza” do ar atmosférico, na medida em que, para entrar em contato com os conceitos no paraíso, não admitir-se-ia qualquer contato com o mundo real.[1] Por analogia, parece que alguns juízes também foram submetidos a essa “quarentena”, a ponto de esquecerem como são as atividades de um frentista, de um mecânico, enfim.

    Existe uma linguagem pública construída na intersubjetividade, na experiência compartilhada. Desse modo, até mesmo na literatura: “Supunha – já que a via algumas vezes com as mãos sujas de óleo e munida de uma chave inglesa – que tivesse uma função de caráter mecânico em alguma das máquinas romanceadoras.”[2]

 

    Escrito por Diego Henrique Schuster

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Bah1: Cf.: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento, 2017. p. 106.

Bah2: ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 20.


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