A CTPS COMO INÍCIO DE PROVA MATERIAL E A FINALIDADE DA PROVA TESTEMUNHAL NA COMPROVAÇÃO DO TEMPO DE SERVIÇO ESPECIAL

 


Conforme o art. 442 do CPC/2015, a produção de prova testemunhal é sempre admissível, não dispondo a lei de modo diverso. É emblemática a tese fixada no IRDR 17/TRF4: “Não é possível dispensar a produção de prova testemunhal em juízo, para comprovação de labor rural, quando houver prova oral colhida em justificação realizada no processo administrativo e o conjunto probatório não permitir o reconhecimento do período e/ou o deferimento do benefício previdenciário.”  

O novo CPC conferiu à prova testemunhal o status de “prova nova”, para fins de ação rescisória (art. 966, V). Esse, aliás, é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça: “No novo ordenamento jurídico processual, qualquer modalidade de prova, inclusive a testemunhal, é apta a amparar o pedido de desconstituição do julgado rescindendo. Doutrina”. (REsp 1770123/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/03/2019, DJe 02/04/2019).

Assim como a prova pericial, a prova testemunhal é plenamente discutida em contraditório: “Em matéria previdenciária, a prova pericial é condição de possibilidade, é certo que as únicas provas discutidas em contraditório são a prova pericial e testemunhal. O contraditório não se estabelece no que diz respeito ao formulário fornecido pela empresa (PPP), um documento criado fora dos autos, isto é, sem a participação do segurado, razão pela qual é possível reconhecer que houve o cerceamento do direito de defesa do Segurado.” (AgInt no AREsp 576.733/RN, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 25/10/2018, DJe 07/11/2018).

No que diz respeito à aposentadoria especial, a prova testemunhal não tem a finalidade de comprovar o labor especial, mas, e isso sim, confirmar/individualizar as atividades efetivamente exercidas pelo segurado e as condições de labor (e.g.: produtos manuseados-manipulados-utilizados no meio ambiente do trabalho), a fim de permitir a realização de prova pericial (in loco ou estabelecimento similar) ou de possibilitar a aplicação de laudos por analogia. Neste nível, a prova testemunhal se presta para preencher as lacunas nas hipóteses de função genérica (e.g.: "servente").

A CTPS, enquanto documento, sempre foi considerada como início de prova material, ou seja, capaz de ser complementada pela prova testemunhal, além das regras de experiência que interpelam o julgador. Centenas de audiências são realizadas todas as semanas, com este único propósito. Neste raro momento em contato com as partes, o juiz consegue demonstrar seu (des)interesse pelas partes - pessoas de carne, osso e história - e buscar a compreensão dos fatos. A busca pela compreensão tem como condição essa movimentação: do todo para a parte e da parte para o todo, com o julgador já suportando a circularidade, como deve proceder inclusive o perito, ouvindo testemunhas, obtendo informações, solicitando documentos etc. (CPC, art. 473, § 3º). A Súmula 106/TRF4 contempla situações em que a empresa se encontra desativada: “Quando impossível a realização de perícia técnica no local de trabalho do segurado, admite-se a produção desta prova em empresa similar, a fim de aferir a exposição aos agentes nocivos e comprovar a especialidade do labor”.   

Ocorre que a 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região assumiu uma nova orientação em relação à CTPS com anotação genérica da função e, consequentemente, a finalidade da prova testemunhal, o que tem repercussão no interesse de agir, já que a falta de documentos pode ser colocada como óbice para o exame do mérito (5002227-38.2016.4.04.7122). Segundo o novo entendimento, a CTPS não se presta como início de prova material.

Diante do novo entendimento, resta configurada a divergência jurisprudencial:

 

5ª Turma hoje

Tribunal

Não é possível considerar documento preenchido por sindicato, uma vez que se trata de prova unilateral, sem a participação da empresa. Destaca-se que a juntada de CTPS, com descrição de função genérica (serviços gerais, servente, auxiliar, ajudante ou outras similares), desempenhada em empresa inativa, não constitui início de prova material da atividade especial. Dessa forma, a prova testemunhal não supre a ausência do início de prova material. Nesse contexto, também não é possível a adoção de laudo similar. Portanto, há que ser reformada a sentença para que seja afastado o reconhecimento da especialidade para o período. (TRF4 5025264-28.2018.4.04.9999, QUINTA TURMA, Relator ADRIANE BATTISTI, juntado aos autos em 18/05/2021)

PREVIDENCIÁRIO. TEMPO DE SERVIÇO ESPECIAL.  FUNÇÃO GENÉRICA. INÍCIO DE PROVA MATERIAL. 1. A juntada de CTPS, com descrição de função genérica (serviços gerais, servente, auxiliar, ajudante ou outras similares), desempenhada em empresa inativa, não constitui início de prova material da atividade especial, não se podendo, em face disso, autorizar a produção de prova testemunhal para suprir a sua ausência. 2. Especialidade não comprovada. (TRF4, AC 5018142-67.2019.4.04.7108, QUINTA TURMA, Relatora GISELE LEMKE, juntado aos autos em 11/05/2021)

No caso, entendo que a juntada de CTPS com descrição de função genérica (serviços gerais, servente, auxiliar, ajudante ou outras similares), desempenhada em empresa inativa, não constitui início de prova material da atividade especial. 

Em face disso, entendo que não é possível acolher a utilização de laudo técnico por similaridade, tampouco declarações de testemunhas, em razão da ausência de início de prova material do tempo especial. 

(TRF4, AC 5005378-20.2017.4.04.7108, QUINTA TURMA, Relator ALTAIR ANTONIO GREGÓRIO, juntado aos autos em 15/06/2021)

 

Partindo-se dessa premissa, cumpre destacar que a juntada de CTPS, com descrição de função genérica (serviços gerais, servente, auxiliar, ajudante ou outras similares), desempenhada em empresa inativa, não constitui início de prova material da atividade especial, não se podendo, em face disso, utilizar prova testemunhal para suprir a sua ausência.

(TRF4, AC 5003783-41.2017.4.04.7122, QUINTA TURMA, Relator OSNI CARDOSO FILHO, juntado aos autos em 08/10/2021)

 

 

De fato, em se tratando de função genérica, tem-se entendido ser imprescindível a apresentação de formulário-padrão que descreva as atividades profissionais ou, não sendo possível a juntada deste porque a empresa está inativa, a colheita de prova oral hábil a esclarecer as funções do segurado. (TRF4, AC 0000827-86.2010.4.04.9999, SEXTA TURMA, Relator CELSO KIPPER, D.E. 03/05/2012)

 

Em se tratando de empresa extinta, os depoimentos das testemunhas é que constituem a prova hábil a demonstrar as funções do autor quando se trata de registro de atividade genérica em CTPS, como no caso. (TRF4, APELREEX 0001857-88.2012.4.04.9999, SEXTA TURMA, Relator CELSO KIPPER, D.E. 09/07/2014)

 

Impende salientar que a produção de prova testemunhal é admitida nos casos em que a parte autora apresenta apenas a cópia da CTPS, com anotação de função genérica (por ex.: serviços gerais), e a empresa estiver desativada, para fins de comprovação das atividades exercidas (funções e tarefas desempenhadas diariamente pela demandante, o setor em que trabalhava, as máquinas e/ou ferramentas porventura existentes no local ou que tenha sido utilizados no exercício das atividades profissionais, descrevendo as condições em que estas eram desempenhadas). [...] (TRF4, AC 5004363-55.2013.4.04.7108, SEXTA TURMA, Relator PAULO PAIM DA SILVA, juntado aos autos em 13/04/2015)

 

Em se tratando de função de genérica, por exemplo, serviços gerais, servente, auxiliar, ajudante, encarregado ou outras similares, é imprescindível a existência de formulário de atividade especial, preenchido pela empresa, que especifique as atividades efetivamente desempenhadas pelo segurado, ou, na falta deste, a colheita de depoimentos de testemunhas hábeis a descrever as tarefas atinentes à função desenvolvida pelo segurado. (TRF4, AC 0013841-35.2013.4.04.9999, SEXTA TURMA, Relatora para Acórdão VÂNIA HACK DE ALMEIDA, D.E. 25/07/2017)

 

No caso, entendo necessária produção de prova testemunhal quanto ao período de 08-03-84 a 18-11-85, porquanto o autor está registrado na CTPS com função genérica de "servente". Assim, a prova testemunhal deverá esclarecer quais as atividades efetivamente exercidas pelo demandante neste período. Também é de ser realizada a prova pericial com relação a todos os períodos recorridos, ainda que por similaridade, para que se possa decidir com maior grau de certeza a respeito da especialidade ou não das atividades realizadas pela parte autora. Cumpre ressaltar que as perícias realizadas por similaridade ou por aferição indireta das circunstâncias de trabalho têm sido amplamente aceitas em caso de impossibilidade da coleta de dados in loco para a comprovação da atividade especial. (TRF4, AC 5001095-62.2015.4.04.7127, SEXTA TURMA, Relator JOÃO BATISTA PINTO SILVEIRA, juntado aos autos em 31/05/2017)

 

Quanto aos períodos para os quais a sentença apontou apenas a existência de CTPS com função genérica e que  por isso seria inviável a produção de prova testemunhal, embora destoe da orientação desta Corte, pois a prova testemunhas se presta, justamente, para preencher as lacunas nas hipóteses de função genérica, a parte não requereu a produção de prova testemunhal, se limitando a requerer a anulação, sem indicar o interesse na produção e tampouco apresentar rol das testemunhal, provavelmente em razão do largo tempo decorrido da prestação do serviço, sem o que, todavia não como aproveitar laudos por similaridade e tampouco produzir prova pericial. Porém reputo que a extinção sem julgamento de mérito permitira, no caso de obter tais testemunhas. (TRF4, AC 5001890-45.2017.4.04.7112, SEXTA TURMA, Relator JOÃO BATISTA PINTO SILVEIRA, juntado aos autos em 17/06/2021).

 

Insiste-se: no Tribunal Regional Federal da 4ª Região sempre se aceitou a CTPS como início de prova material, com possibilidade de a prova testemunhal individualizar/confirmar as atividades efetivamente exercidas pelo segurado. Este, aliás, era o entendimento da própria 5ª Turma:

O indeferimento de produção de prova indispensável à solução do caso acarreta cerceamento de defesa. Cabível, nessas hipóteses, a anulação da sentença, com consequente retorno dos autos a instância originária, para reabertura da instrução processual. (TRF4, AC 5010255-71.2015.4.04.7108, QUINTA TURMA, Relator OSNI CARDOSO FILHO, juntado aos autos em 25/06/2018)

Na ausência de formulário preenchido pelo empregador, é possível a comprovação das atividades desempenhadas pelo segurado por outros meios como, por exemplo, a prova testemunhal; de modo a permitir a utilização de laudo de empresa similar ou a realização de perícia técnica por similaridade. (Acórdão Classe: APELREEX - APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO, Processo: 0003958-64.2013.404.9999, UF: RS, Data da Decisão: 06/09/2016, Orgão Julgador: QUINTA TURMA, Relator ROGER RAUPP RIOS)

Não restou comprovado o exercício de atividade em condições especiais, conforme a legislação aplicável à espécie, uma vez que, em se tratando de função genérica (operário), em que não é possível saber as tarefas desempenhadas pelo segurado, seria imprescindível a existência de formulário-padrão ou depoimento de testemunhas que comprovassem as atividades do autor.  (TRF4, AC 2009.71.99.004855-6, QUINTA TURMA, Relator ROGERIO FAVRETO, D.E. 30/11/2012)

É verdade que cada caso é um caso (e isso vale para todos os casos), agora no direito não podem existir decisões isoladas, vale dizer: ad hoc. Com efeito, nada começa ou termina com uma decisão, sem compromisso com o passado. Verifica-se, assim, um descompasso entre enunciados jurídicos, o que ameaça a estabilidade do sistema. Neste ponto ganha destaque a noção de “romance em cadeia”, em Dworkin:

Cada juiz, então, é como um romancista na corrente. Ele deve ler tudo o que outros juízes escrevem no passado, não apenas para descobrir o que disseram, ou seu estado de espírito quando o disseram, mas para chegar a uma opinião sobre o que esses juízes fizeram coletivamente, da maneira como cada um de nossos romancistas formou uma opinião sobre o romance coletivo escrito até então. [...] Ao decidir o novo caso, cada juiz deve considerar-se como parceiro de um complexo empreendimento em cadeia, do qual essas inúmeras decisões, estruturas, convenções e práticas são a história; é seu trabalho continuar essa história no futuro por meio de que ele faz agora. Ele deve interpretar o que aconteceu antes porque tem a responsabilidade de levar adiante a incumbência que tem em mãos e não partir em alguma nova direção.[1]

A nova orientação causou surpresa e injustiça, pois havia justificada confiança na jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.  Em primeira instância, a ementa abaixo foi muito citada para justificar a necessidade de prova testemunhal: "AGRAVO DE INSTRUMENTO. PREVIDENCIÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. ATIVIDADE ESPECIAL, PROVA TSTEMUNHAL, PROVA PERICIAL. LAUDO POR SIMILARIDADE. Tendo em vista a ausência de Perfil Profissiográfico Previdenciário nos autos, e que somente a anotação na carteira de trabalho do autor não é suficiente para comprova o labor especial, é imprescindível, antes de produzir prova pericial, a produção de prova testemunhal para esclarecer sobre as reais atividades desenvolvida pelo autor." (TRF4, AG 5034537-60.2015.4.04.0000, SEXTA TURMA, Relator OSNI CARDOSO FILHO, juntado aos autos em 29/02/2016). Decerto, a mudança desorientou os indivíduos que compõem a relação processual.

O segurado não deixa de apresentar prova documental para a prova testemunhal dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa. Infelizmente, a CTPS, acompanhada de prova da baixa da empresa, constitui o único documento ainda existe. Estivesse a empresa ativa ou, ainda, fosse dado aos sindicatos algum crédito – considerando o seu papel para a criação e regulação das relações trabalhistas, mormente preocupadas com o meio ambiente do trabalho –, talvez se poderia juntar um formulário preenchido pelo órgão. O dito carrega consigo o não dito: a nova orientação deixa entrever que a parte autora deseja se beneficiar da própria torpeza, além de insinuar uma atuação deficitária do advogado, isto é, como se isso pudesse justificar um prejuízo ao segurado. Na verdade, o único a se beneficiar da própria torpeza é o INSS, que deixou de fiscalizar as empresas hoje desativadas.

É necessário, portanto, submeter a nova orientação assumida pelo 5ª Turma aos princípios da coerência (igual consideração diante de casos semelhantes) e integridade do direito (compatibilidade entre os enunciados), conforme o art. 926 do CPC. Segundo Eduardo Tornaghi: “Nada há mais escandalizante e comprometedor da ordem jurídica do que a variação, a incoerência e a contradição dos julgados. Toda a segurança desaparece onde os indivíduos ficam à mercê dos entendimentos pessoais: cada cabeça é uma sentença e a justiça um jogo lotérico”.

As decisões ousadas e humanas deram ao tribunal a fama de “tribunal de vanguarda”. No entanto, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região está passando por mudanças. A dúvida sobre se o lugar faz bem à pessoa ou a pessoa ao lugar encontra nesse modo de agir uma resposta frustrante, já que fica claro que não existe um “espaço mágico”. 

 

Escrito por Diego Henrique Schuster



[1] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 238.


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