COISA JULGADA PREVIDENCIÁRIA: PAREM DE FALAR EM “RELATIVIZAÇÃO” DA COISA JULGADA!

Como já dito alhures, não sou a favor das teses de relativização/flexibilização da coisa julgada. Não mesmo. Se ainda não me fiz entender, sempre defendi que a coisa julgada tem como objetivo conferir segurança às relações jurídicas que foram objeto de decisão pelo Poder Judiciário. Neste nível, não cabe ao juiz escolher respeitar, ou não, tal garantia constitucional.

No entanto, o que se vê na práxis jurídica é uma verdadeira banalização do tema, com efeitos nefastos para a Justiça Previdenciária. As teses de relativização da coisa julgada surgem como resultado de um conflito (uma situação de tensão permanente) entre o valor da segurança jurídica e o ideal de justiça, logo, a sua desconstituição exige (quase) sempre uma ponderação de valores e, consequentemente, a discricionariedade/arbitrariedade. Por outras palavras, a relativização da coisa julgada aparece como uma possibilidade de se colocar a segurança jurídica em segundo plano, com fundamento num "discurso adjudicador", como defende Lenio Streck.

Acontece que justiça e segurança jurídica são dois lados da mesma moeda, logo, quando se fala em desconstituição da coisa julgada, mormente em matéria previdenciária, o que está em jogo é o fim material do processo.

Não há que se falar em coisa julgada (ou da segurança jurídica que dela advém) se essa não tiver como ser desconstituída (rescindida), quer seja para o enfrentamento de decisões que ostentem vícios graves em sua constituição, quer seja a partir de uma prova nova (inédita), capaz de assegurar um pronunciamento favorável ao autor. Não se pode exigir segurança jurídica, no sentido de estabilidade, sem antes decidir o que pode ser estabilizado, por meio de um procedimento constitucionalmente adequado, sem restrições provatórias e limites à cognição, conforme preconiza o art. 503, § 2º, do CPC/2015.

O adjetivo “injusto” adquire realmente sentido só em referência ao que defendemos, mormente durante o processo de conhecimento, como devido processo legal/previdenciário. A possível desconstituição não decorre de uma pretensão de correção moral da decisão e/ou do direito. Existem instrumentos – alguns limitados – capazes de relativizar a força da coisa julgada no ordenamento jurídico brasileiro, quais sejam, a ação rescisória, a ação anulatória, a impugnação nos cumprimentos de sentença, a impugnação de sentença inconstitucional, a coisa julgada secundum eventum probationis nas demandas coletivas. Enfim, os critérios para se resolver a questão estão no sistema.

O problema é que a coisa julgada e seus efeitos (quase) sempre são analisados no reino da pura abstração, um raciocínio abstrato que protege uma segurança jurídica meramente formal. O problema é restringir e centrar a discussão sobre a coisa julgada à análise do princípio da tríplice identidade. O problema, como já se viu, são as expressões como “injustiça”, “grave injustiça”, “séria injustiça”, “sentença abusiva”, e assim por diante.

Aqui, portanto, se concorda com Ovídio Araújo Baptista da Silva:[1] “Pretender que a coisa julgada seja desconsiderada quando a sentença seja ‘injusta’, não é, seguramente, um ideal da modernidade”. Segundo o autor, "a 'injustiça da sentença'' nunca foi e [...] nunca poderá ser, fundamento para afastar o império da coisa julgada". Essa perspectiva significa que o instituto da coisa julgada constitui um produto de injustiças, pois ao imutabilizar a sentença, sempre frustrará uma das partes, que se sentirá injustiçada[2], ou seja, não há aqui uma resposta para a questão levantada, mas a certeza de que a estabilidade da demanda não pode ser flexibilizada por argumentos de inconformismo. [3]

A maior parte das “injustiças” oriundas de julgados poderia ser corrigida pela fundamentação de inexistência de coisa julgada no caso concreto, nas palavras de Daniela Boito Maurmann Hidalgo: “o que não existe não precisa ser relativizado”[4].

Veja-se que, ‘considerando os fatos, ou o conjunto de fatos como integrantes da causa petendi, de modo que a sua substituição por outro conjunto de fatos transformaria a ação primitiva em outra’, poder-ser-ia, da análise da demanda – ou seja, dos três elementos que, na verdade, seriam um só (fato, pedido e causa de pedir) – reconhecer a ausência de óbice à tramitação de determinada demanda, porque os fatos nela veiculados não foram objeto da demanda anterior. A insistência em manter a jurisdição no campo normativo, livre dos fatos, e, portanto, independente da ação de direito material, gera a necessidade de relativação de direitos fundamentais inabolíveis, no campo onde a exceção é, pois, como dito, a regra.

Deve ter fica claro, mas dentro do processo, a mudança de fatos nem sempre acarreta uma mudança da causa de pedir. Em poucas palavras, dentro do processo é possível a ampliação da causa de pedir. O objeto da decisão é sempre maior que o objeto do processo (como sinônimo de pretensão processual)[5], sendo que o novo regime de formação dinâmica da coisa julgada resolve o problema, alcançando (a coisa julgada) também aquelas questões prejudiciais levantadas ao longo do processo, enfim, todo o objeto do debate via contraditório.

Após o trânsito em julgado, sustentamos que fatos essenciais (eg.: agentes nocivos diversos) não discutidos em contraditório na demanda anterior interferem na caracterização de nova causa de pedir, o que autoriza uma nova ação. Assim se poderia acabar com a necessidade de relativizar a coisa julgada, retirando das mãos do juiz a escolha sobre respeitar, ou não, a garantia constitucional.

No centro de tudo está o conceito de causa de pedir.  Após defender que a causa de pedir é formada pelo conjunto de fatos essenciais (acontecimentos concretos da vida) contemplados na situação de vantagem objetiva que servem de base à obtenção de consequências jurídicas pretendidas pela parte no processo em um determinado momento no tempo e no espaço, Darci Guimarães Ribeiro explica: “[...] uma vez mudado o fato constitutivo do qual a parte extrai as consequências jurídicas necessárias para configurar a situação de vantagem jurídica, estaremos diante de uma diversa causa de pedir e, consequentemente, de uma diversa pretensão processual.”[6]

A medida bem se ajusta ao art. 503 do Código de Processo Civil, que reconhece que a coisa julgada alcança apenas aquilo que foi deduzido no processo, objeto de cognição. Tudo isso foi resumido na seguinte ementa:

PREVIDENCIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. COISA JULGADA. EFICÁCIA PRECLUSIVA. CAUSA DE PEDIR NÃO EXAMINADA EM DECISÃO ANTERIOR. PRINCÍPIOS DA SUBSTANCIAÇÃO DA DEMANDA E DA FUNDAMENTAÇÃO QUALIFICADA DAS DECISÕES. Questões de fato que não foram deduzidas na ação anterior, mas que guardam autonomia relativamente às que foram alegadas, não ficam cobertas pela preclusão, porque seu exame, para fins de procedência ou improcedência do pedido no novo processo, não significará tornar sem efeito ou mesmo rever a justiça da decisão dada na primeira demanda sobre as alegações que lá foram lançadas e resolvidas. Outros fatos serão examinados, ainda que com vistas a um mesmo pedido. Estender-se a eficácia preclusiva da coisa julgada para além da questão de fato suscitada na demanda anterior, de forma a alcançar outras questões de fato que, individualmente, poderiam levar ao reconhecimento do mesmo direito, é violar o princípio da substanciação da demanda, o princípio da demanda e a própria garantia de acesso ao Poder Judiciário em caso de lesão a direito. Entendimento que vem reforçado no novo Código de Processo Civil, ao estabelecer como princípios a fundamentação qualificada e o contraditório efetivo. Incidência do art. 503 do Código de Processo Civil que limita o alcance da coisa julgada às questões decididas no processo anterior. Se, na demanda anterior, houve pronunciamento quanto à exposição do autor a ruído, a alegação, em nova ação, de que foi exposto no mesmo período a agentes químicos, ainda que com vistas ao mesmo pedido - reconhecimento da especialidade do tempo de serviço - não implica em violação da coisa julgada ou na sua eficácia preclusiva. Ao decidir sobre o fato ora sob apreciação, não haverá incursão sobre as questões de fato objeto da ação anterior e sobre as conclusões delas decorrentes. (TRF4, AC 5017094-37.2014.4.04.7112, Sexta Turma, Rel. Taís Schilling Ferraz, j. aos autos 05.07.2018, grifo nosso)

Trata-se de uma leitura hermeneuticamente adequada dos limites objetivos e, em especial, da eficácia preclusiva da coisa julgada e da identificação das ações para efeitos de análise da formação da coisa julgada, porque “é evidente que o que não foi possível arguir na primeira ação não pode ser alcançado pela eficácia preclusiva”.[7]

Enquanto alguns buscam a solução por meio da “relativização” da coisa julgada, o que só contribuiu para a insegurança jurídica, a hermenêutica aposta no retorno ao mundo prático.

 

Escrito por Diego Henrique Schuster

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Bah1: SILVA, Ovídio Araújo Baptista. Coisa julgada relativa? Disponível em: <http://www.abdpc.org.br/abdpc/ artigos/Ovidio%20Baptista%20-formatado.pdf>. Acesso em: 22 jul. 2016.

Bah2: SILVA, Ovídio A. Baptista da. Coisa julgada relativa? In: DIDIER JR., Fredie (Coord.). Relativização da coisa julgada: enfoque crítico. Salvador: Juspodivm, 2008, p. 309.

Bah3: SILVA, Ovídio A. Baptista da. Op. cit., 2008, p. 311.

Bah4: HIDALGO, Daniela Boito Maurmann. Relação entre direito material e processo: uma compreensão hermenêutica: compreensão e reflexos da afirmação da ação de direito material. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 234.

Bah5: Segundo Darci Guimarães Ribeiro, o objeto das decisões judiciais é sempre maior do que o objeto do processo, porquanto a cognição deve ser estabelecida tanto sobre a pretensão processual do autor como as exceções do demandado, questões prévias (incluindo as questões prejudiciais de mérito) ou uma defesa indireta processual. RIBEIRO, Darci Guimarães. Objeto do processo e objeto do debate: dicotomia essencial para uma adequada compreensão do novo CPC. In: RIBEIRO, Darci Guimarães; JOBIM, Marco Félix (Orgs.). Desvendando o novo CPC. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015, p. 35-37.

Bah6: RIBEIRO, Darci Guimarães. Análise epistemológica dos limites objetivos da coisa julgada. In: STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo; ENGELMANN, Wilson (Org.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do Programa de Pós-graduação em Direito da UNISINOS: mestrado e doutorado: n. 9. Porto Alegre: Liv. do Advogado; São Leopoldo: UNISINOS, 2012, p. 81-86.

Bah7: HIDALGO, Daniela Boito Maurmann. Relação entre direito material e processo: uma compreensão hermenêutica: compreensão e reflexos da afirmação da ação de direito material. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 234.

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