AÇÃO RESCISÓRIA COM FUNDAMENTO EM LEI DECLARADA (IN)CONSTITUCIONAL PELO STF: DO CRITÉRIO TOPOLÓGICO AO CONTEÚDO DA DECISÃO

 

É verdade, o fato de a lei conferir um tratamento diferenciado para determinada situação não significa, por si só, violação do princípio da igualdade ou preconceito. Ademais, o tratamento jurídico pode ser diferenciado pelo fato de que as situações são diferentes.

Na questão da ação rescisória, por exemplo, a mais pesada crítica feita pela doutrina civilista recai sobre o fato de o novo CPC não exigir da União, dos Estados do Distrito Federal dos Municípios, assim como das respectivas autarquias e fundações de direito público, ao Ministério Público e à Defensoria, o depósito prévio (art. 968, § 1º). Na parte que mais perto interessa à problemática:

O art. 968, § 1º, discrimina o particular em face de tais entes, que se sentem a partir daí livre para abusar da ação rescisória. A norma é inconstitucional: viola, de forma gritante, o princípio da igualdade. Daí que se perdeu uma grande oportunidade para corrigir esse descalabro no novo Código.[1]

Nada justifica um tratamento diferenciado entre as partes. O mesmo se verifica na questão acerca do termo inicial para a contagem do prazo decadencial. Acredita-se que o escopo da norma prevista no artigo 525, § 15 (assim como no artigo 535, § 8º, do Código de Processo Civil) é “afastar a eficácia condenatória do título judicial”. Acontece que a ação rescisória, com fundamento em lei declarada (in)constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, vai além disso: “o escopo da ação rescisória é atacar a coisa julgada inconstitucional”. Trata-se, pois, de “um mecanismo de afirmação das decisões do STF em controle de constitucionalidade e na interpretação das normas constitucionais.”[2]

A tese de que os arts. 525 e 535 versam apenas sobre matéria de defesa do executado aposta num critério topológico para estabelecer tal distinção. Dentro disso, alega-se que “o fator de discrímen é, justamente, o fato de que a parte exequente, vencedora na ação originária, não suporta os reflexos da eficácia condenatória do título judicial”; e, a partir dessa premissa lógica, a conclusão: “não sendo a parte autora a destinatária da ação rescisória prevista no artigo 525, § 15, ou no artigo 535, § 8º, ambos do Código de Processo Civil, ela não pode se beneficiar do termo inicial nele definido para a propositura da ação rescisória.” (TRF4, ARS 5030040-27.2020.4.04.0000, TERCEIRA SEÇÃO, Relator SEBASTIÃO OGÊ MUNIZ, juntado aos autos em 26/08/2021).

A finalidade da ação rescisória, como já se viu, é atacar a coisa julgada inconstitucional, logo, o que importa é o conteúdo da decisão rescindenda (critério material, e não critério topológico). A ação anulatória, por exemplo, embora prevista em conjunto, não se confunde com a ação rescisória (CPC, art. 966, § 4º). O critério topológico não resiste à uma análise constitucional. Tomamos como exemplo o Tema 810/STF, o título é condenatório para o segurado, também, pois a ele não foi dado o que lhe era devido, na sua integralidade. Destarte, ele sofre, sim, os reflexos de um título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional.

Enfim, uma coisa são os meios de defesa do executado; outra, bem distinta, é a ação rescisória em face da coisa julgada inconstitucional. Aqui não há como justificar um tratamento diferenciado, em favor da Fazenda/INSS, sob pena de violação ao princípio da isonomia. Não há circularidade em interpretar uma lei supondo que ela não deva atender ao princípio da igualdade. É preciso registrar que, diferentemente do depósito, o CPC não faz nenhuma distinção entre autor e INSS ou credor e devedor, na ação rescisória. Então é o intérprete da lei que está apostando no critério topológico, e não no princípio da igualdade.

Por outro lado, podemos defender a inconstitucionalidade dos artigos 525 §15 e 535 §8º do CPC, com o objetivo de (re)combinar os sentidos. Nesse ponto, compartilhamos da preocupação exposta por Taís Schilling Ferraz:

A insegurança jurídica gerada pela possibilidade de que muitos anos após o trânsito em julgado de uma ação individual, seja possível a reversão do decidido, porque o STF decidiu, num caso paradigma, de forma diversa sobre o tema constitucional, será confrontada com a necessidade do tratamento isonômico dos destinatários da norma [...].[3]

Das duas, uma: ou se considera inconstitucional tais dispositivos, com fundamento na insegurança jurídica, ou se aplica a todos, sem distinção (para o bem ou para mal), sob pena de criarmos critérios diferenciados, o que viola o princípio da igualdade (da paridade de armas), fazendo surgir a desconfiança, um estado generalizado, de descrença e decepção. 

Não se pode concordar que defender a aplicação dos artigos 525, §15, e 535, §8º, do CPC para todos, exequente e executado, seria como tentar justificar um erro com outro erro. Erro maior consiste em: mesmo concordando com a inconstitucionalidade dos dispositivos em foco, ainda assim, privilegiar apenas a Fazenda Pública com a possibilidade de muitos anos após o trânsito em julgado propor uma ação rescisória. Aqui a afronta ao princípio da igualdade não constitui o menor dos males, mas, pelo contrário, o maior.

Quando se reabre esse tipo de discussão, verifica-se que não estamos fazendo uma interpretação com base em argumentos de princípio.  

 

Escrito por Diego Henrique Schuster

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Bah1: MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sério Cruz; MITIDIERO, Daniel. O novo processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 579.

Bah2: FERRAZ, Taís Schilling. O precedente na jurisdição constitucional: construção e eficácia do julgamento da questão com repercussão geral. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 114.

Bah3: FERRAZ, Taís Schilling. O precedente na jurisdição constitucional: construção e eficácia do julgamento da questão com repercussão geral. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 113.


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