O RISCO À INTEGRIDADE FÍSICA NA EC 103/2019: SERÁ O FIM?
A regra permanente (art. 201, § 1º, II), com redação emprestada pela EC
103/2019, não mais prevê – expressamente – o “risco à integridade física”.
Importante, contudo, observar que o
Texto original da PEC 6/2019 vedava o expressamente o enquadramento pela via
periculosidade, sendo que o Senado Federal, ao votar destaque relativo à
matéria, retirou tal vedação. A propósito, o
Senado está analisando o Projeto de Lei Complementar (PLP) 245/2019,
que visa regulamentar as atividades perigosas.
Na jurisprudência previdenciária, a
“integridade física” aparece relacionada a infortúnios de ordem física,
enquanto a “saúde” se vincula a uma enfermidade ou patologia. Nessa
perspectiva, eventual exclusão da expressão “integridade física” não seria
suficiente para impedir uma equiparação, como acontece, por força da Lei de
Benefícios, entre o acidente de trabalho e a doença ocupacional.
Decerto, apesar da nova redação
excepcionar um tratamento diferenciado para atividades
exercidas com efetiva exposição a agentes químicos, físicos e biológicos,
os princípios que fundamentam a concessão da aposentadoria especial, ainda
assim, permitem a defesa da periculosidade, ou seja, há uma principiologia
constitucional que garante essa continuidade. A integridade e coerência devem
garantir o DNA do direito.
Ademais, em sendo vedado o enquadramento
por categoria profissional, conforme § 4º-C do art. 40 (redação empresta pela
EC 103/2019), resta evidente que o risco à integridade justifica um tratamento
diferenciado para os servidores da segurança pública. Assim sendo, tem-se mais
um motivo para se defender a continuação da concessão da aposentadoria pela via
da periculosidade a todos os trabalhadores, inclusive da iniciativa privada,
sob pena de afronta ao princípio da igualdade.
O risco à integridade física poderia ser defendido como um
desdobramento do princípio da dignidade da pessoa humana. Para Ingo Wolfgang
Sarlet, o conceito de dignidade da pessoa humana é calcado no substrato
axiológico e conteúdo normativo, dividido em quatro princípios, quais sejam o
da igualdade, o da integridade física e moral, o da liberdade e o da
solidariedade.[1]
Após 25 anos de trabalho sob
condições perigosas, a concessão da aposentadoria especial tem como finalidade
não dar “chance ao azar”; ou seja, a intenção é diminuir a probabilidade de um
evento indesejado (acidente). A periculosidade é
“a iminência do risco”, ou seja, a possibilidade sempre presente de um fato que
coloque em risco a integridade física do trabalhador.[2] A CLT, no seu art.
193, lança parcial previsão de tais riscos e cita o trabalho em exposição a inflamáveis,
explosivos, energia elétrica e a roubos ou outras formas de violência física
ocorridas nas atividades de segurança pessoal ou patrimonial.
No
âmbito da proteção previdenciária, contudo, é possível ao julgador ir além, uma
vez que a “integridade física” aparece relacionada a todo e qualquer infortúnio
de ordem física, que acontece em tempo real, no espaço de um instante, como
esmagamento em um moinho, explosão em uma caldeira, queda de um andaime,
eletrocussão em sistema de alta voltagem, etecetera; situações que exigem uma
postura diferenciada por parte do magistrado, a saber, orientada para a
gravidade das consequências de um determinado risco, como a morte drástica,[3] com fundamento no
princípio da prevenção (em sentido lato
senso).
É preciso dizer
que nem sempre se possui elementos objetivos para se
aferir a exposição ao agente periculosidade como, por exemplo, voltagem, litros
ou distância – diferentemente das demais atividades ou operações perigosas
previstas no art. 193 da CLT. Como, então, provar o risco à integridade física/mental?
A prova do risco
está na indicação da atividade, da área, da carga, do valor; enfim, daquilo
que, por seu conteúdo ou preço, seja alvo de ataques repentinos e violentos.
No caso do vigilante, a sua função consiste em tomar conta de algo que, por seu valor, é alvo de ataques repentinos e violentos. O vigilante toma conta de algo, adotando medidas preventivas e proativas, visando reduzir a probabilidade de ocorrência de roubos ou outras espécies de violência física. O Anexo III da NR-16 traz, no item “3”, as atividades ou operações que expõem os empregados a roubos ou outras espécies de violência física.
O risco pode ser
percebido a partir do binômio probabilidade/magnitude, objeto central do livro
“Aposentadoria especial: entre o princípio da precaução e o princípio da
proteção social”.[4]
A probabilidade é uma demonstração racional prognóstica; isto é, uma
suposição quanto a resultados futuros, baseada em eventos e situações já
experimentadas (ou não), com um alto grau de consenso acerca de sua ocorrência.
Délton Winter de Carvalho[5]
é quem melhor analisou a ficção operacional representada pela probabilidade:
A
probabilidade consiste num critério de racionalização das incertezas
descritivas que marcaram os processos de decisão tomados no presente, porém,
orientados ao futuro, cujo escopo consiste em produzir uma comunicação de risco
a fim de evitar a ocorrência de danos indesejados no futuro.
Por outro lado, a magnitude traduz o potencial lesivo de
uma determinada atividade, conduta ou produto; estando, portanto, relacionada
com a intensidade do impacto futuro e com a profundidade da lesão dos valores
protegidos.[6]
Neste diapasão, o
elemento irreversibilidade humana (constatação da impossibilidade de se
poder voltar ao passado) pode desenvolver um papel importante na análise das
atividades perigosas, assim como a vulnerabilidade. Assim, mesmo sendo baixa a probabilidade
de o risco se concretizar em dano, devem se
pesar as consequências.
No que tange ao critério da permanência, o
ponto de partida (ou retorno) é o Decreto 3.048/1999[7],
que, no seu art. 65, traz o conceito de permanência:
Considera-se
trabalho permanente, para efeito desta Subseção, aquele que é exercido de forma
não ocasional nem intermitente, no qual a exposição do empregado, do
trabalhador avulso ou do cooperado ao agente nocivo seja indissociável da
produção do bem ou da prestação do serviço.
Para Adriane
Bramante de Castro Ladenthin, aqui se reconhece que a permanência não pode
significar exposição durante toda a jornada de trabalho. O que importa é a
“natureza do risco, sua intensidade, concentração inerente à atividade pelo
qual o trabalhador está obrigatoriamente exposto e capaz de ocasionar prejuízo
à saúde ou à integridade física”. E conclui: “A periculosidade também coloca o
trabalhador em risco iminente, ainda que o agente causador não esteja presente
nas oito horas da jornada de trabalho exposto ao agente perigoso.”[8]
Leandro
Magalhães destaca que “risco grave iminente é toda condição ou situação de
trabalho que possa causar acidente ou doença relacionada ao trabalho com lesão
grave à integridade física do trabalhador.”[9]
Com efeito, a exposição ao agente periculosidade
precisa ser indissociável da produção do bem ou da prestação do
serviço, ou seja, o contato com produtos inflamáveis precisa ser inerente à
função desempenhada pelo segurado. Não se trata de atividade principal, no
sentido de reunir maior tempo (de exposição) durante a jornada de trabalho, mas
de ação que, entre outras, faz parte do que é feito todos os dias, no
desempenhado da atividade. Nesse
sentido:
Previdenciário.
Aposentadoria especial. Eletricitário, Enquadramento da atividade. Dec. 53.831/64.
Correção monetária. 1. Satisfaz os requisitos para a concessão da aposentadoria
especial o segurado que cumpre jornada habitual de trabalho sujeita a altas
tensões de energia elétrica, ainda que de forma não permanente. 2. (...). [10]
Destarte, deve-se
reclamar repetição da exposição ao longo do tempo (todos os dias de trabalho),
e não durante toda a jornada de trabalho. Até mesmo para as atividades
prestadas antes de 29/4/1995 se exige a comprovação da habitualidade da
exposição (Súmula 49/TNU)[11].
O que se exige é que a exposição
seja intrínseca à atividade – ou a uma delas – exercida diariamente, com
subordinação. Nesse sentido, Adriane Bramante
completa: “O que importa é que haja uma habitualidade, ou seja, exposição todos
os dias, no desempenho da atividade profissional, que o exponha aos agentes
nocivos, cuja exposição é intrínseca às suas atividades laborais.” [12] A atividade, envolvendo exposição a tais agentes,
deve ser inerente à função do trabalhador. Por esse motivo, não se fala em
profissão, mas profissiografia.
É estranha a condenação do benefício pela via da periculosidade, por
confirmar a impressão de que o ganho com a frustração da convicção de dano tem
maior peso do que eventual perda de uma vida e/ou danos à saúde, ou seja, não é
considerado o valor das vidas salvas ou danos evitados (com a redução do tempo
de trabalho), mas tão-somente o alto custo do benefício e/ou a praticidade de
se conceder uma aposentadoria por invalidez ao trabalhador já incapacitado para
o trabalho ou, na sua ausência, a pensão por morte aos seus dependentes.
O trabalhador é um ser humano que
deve, em qualquer relação, ter sua integridade preservada e protegida. Logo,
prevenir não é só ver as normas de saúde e segurança cumpridas; mas, sim, ver o
ser humano considerado por seu trabalho e sua relevância para a sociedade, como
é o caso dos profissionais da área da segurança pessoal, ou patrimonial, do
eletricista, etc., afetados pela periculosidade. O mesmo vale para os
profissionais de saúde e de outras áreas, submetidos aos agentes biológicos.
A partir disso, afirma-se a
necessidade de a aposentadoria especial continuar a ser tratada como uma
técnica de proteção específica da previdência social, uma estratégia de
proteção dos trabalhadores, por contribuir, mediante a redução do tempo de
serviço, para se evitar a efetiva incapacidade desses segurados.
Não se mostra razoável, portanto, qualquer
mudança na questão da periculosidade. Está-se diante de uma situação paradoxal.
Como não se respeita o princípio da prevenção no meio ambiente do trabalho, no
sentido de ele influenciar uma movimentação pautada na antecipação de riscos, a
solução agora é acabar com a aposentadoria especial pela via da periculosidade.
Nesta perspectiva, a ideia de risco fica então aceitável uma vez mais.
O verdadeiro custo deve estar numa atuação preventiva por parte da
Previdência Social, e não na compensação do dano, o que reafirmar a importância
de redução do tempo de trabalho.[13]
[1]
SARLET, Ingo Wolfgang. Dimensões da
dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 123.
[2] LADENTHIN,
Adriane Bramante de Castro. Aposentadoria
especial: teoria e prática. Curitiba: Juruá, 2013. p. 73. Para Tuffi
Messias Saliba, “a insalubridade afeta continuamente a saúde do trabalhador,
enquanto não houver sido eliminada ou neutralizada. Já a periculosidade
corresponde apenas ao risco, que não age contra integridade biológica do
trabalhador, mas que, eventualmente (sinistro), pode atingi-lo de forma
violenta”. SALIBA, Tuffi Messias. Aposentadoria
especial. Critérios técnicos para caracterização. São Paulo: LTR, 2011, p.
54.
[3] René
Mendes faz uma importante observação, que confere maior destaque ao que se
pretende demonstrar neste momento, qual seja, que “[...] o trabalho pode fazer
com que as pessoas venham a morrer prematuramente, isto é, ‘antes da hora’”
[...]”, por causas distintas daquelas “esperadas” (por agravos que ocorrem
excessivamente em algumas categorias). Pode, ainda, “[...] agregar sofrimento à
morte, como é o caso de muitos trabalhadores silicóticos que somente alcançam o
direito de morrer depois de muito sofrimento produzido pela insuficiência
respiratória crônica”, e pode prejudicar o direito de dignidade no ato de morrer
(morte drástica, como o esmagamento em um moinho). (MENDES, René. Saúde e
segurança no trabalho: acidentes e doenças ocupacionais. In: FERNANDES,
Reynaldo (Org.). O trabalho no Brasil no limiar do século XXI. São
Paulo: LTr, 1995. p. 201).
[4] É importante esclarecer que
os termos “probabilidade” e “magnitude” apareceram de forma inédita na doutrina
brasileira e mundial a partir do livro “Dano ambiental futuro”, no qual o
brilhante jurista Délton Winter de Carvalho defende um sistema de
responsabilização pela produção de riscos ilícitos, considerados juridicamente
intoleráveis segundo a sua probabilidade e magnitude, ou seja, para fins
diferentes daqueles que se pretende ao longo desse trabalho.
[5] CARVALHO, Délton Winter de. Aspectos
probatórios do dano ambiental futuro: uma análise sobre a construção probatória
da ilicitude dos riscos ambientais. In: STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel
Severo; CALLEGARI, André Luís (Org.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do
Programa de Pós-graduação em Direito da UNISINOS: mestrado e doutorado: n. 8.
Porto Alegre: Liv. do Advogado; São Leopoldo: UNISINOS, 2011. p. 96.
[6] ARAGÃO, Alexandra. Princípio da Precaução: manual de instruções. Revista do CDOUA,
n. 22, ano XI, 2008. p. 30.
[7] BRASIL.
Decreto n. 4.882, de 18 de novembro de
2003. Altera dispositivos do Regulamento da Previdência Social,
aprovado pelo Decreto nº 3.048, de 6 de maio de 1999. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4882.htm. Acesso em: 13
fev. 2021.
[8] LADENTHIN, Adriane Bramante de Castro. Aposentadoria
especial: teoria e prática. Curitiba: Juruá, 2013. p. 90 e 92.
[9] MAGALHÃES, Leandro Assis. 101 perguntas e
respostas sobre agentes químicos para Higiene Ocupacional: um guia de cabeceira
para não errar nas avaliações de campo. 2. ed. São Paulo: Editora Lux, 2020. p.
71.
[10] TRF4R – AC 96.04.54988-0/SC – Rel. Desembargador Federal
Carlos Sobrinho – unânime – DJU 22.01.1997 – p. 2251.
[11] BRASIL.
Turma Nacional de Uniformização. Súmula
nº 49. Para reconhecimento de condição especial de trabalho antes de
29/4/1995, a exposição a agentes nocivos à saúde ou à integridade física não
precisa ocorrer de forma permanente. Disponível em: <https://www.cjf.jus.br/phpdoc/virtus/sumula.php?nsul=
49&PHPSESSID=kjt0t9h9qcbrhatkapve9mbm83>. Acesso em: 13 fev. 2021
[13] SCHUSTER, Diego Henrique. Aposentadoria especial: entre o princípio da precaução e a proteção social. São Paulo: LTr, 2016. p. 69.
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