A TEORIA DO “FATO CONSUMADO” EM MATÉRIA DE BENEFÍCIOS POR INCAPACIDADE!

 

A Emenda Constitucional 103/2019, como todos já estão “carecas de saber”, determina para a incapacidade permanente a aplicação da regra geral (60% + 2% para cada ano que superar os 15 anos de contribuição, se mulher, e 20, se homem). Mas qual é a novidade? O presente artigo toma como recorte descritivo situações em que o INSS chama o segurado em gozo de auxílio-doença (concedido antes da EC 103) para: ou cessar o benefício; ou, diante da irreversibilidade do quadro, convertê-lo em aposentadoria por invalidez ou incapacidade permanente, com redução do valor.

Por outras palavras, o INSS está convertendo o auxílio-doença em aposentadoria por invalidez, como se a incapacidade para o trabalho tivesse se tornado permanente após a promulgação da Emenda Constitucional. Uma colega advogada compartilhou um caso em que, após 10 anos em gozo de benefício de auxílio-doença, o segurado viu o seu benefício ser convertido numa aposentadoria por invalidez, com um salário de benefício 31% menor daquele recebido como auxílio-doença, sendo que nenhuma mudança fora verificada no quadro clínico ou nas condições pessoais do segurado de lá pra cá. 

As observações iniciais poderiam estimular a suspeita de que o INSS estaria convertendo a incapacidade transitória em permanente com a intenção de reduzir o valor do benefício, no entanto, não é essa a minha intenção. É inevitável, por outro lado, afastar eventual acusação de oportunismo. A discussão deixa entrever, sim, a possibilidade de a Autarquia perceber o momento para tirar vantagens em favor do erário, dando preferência à incapacidade permanente, com data posterior à EC 103/2019, uma vez que, normalmente, o segurado não possui documentos para cobrir todo o arco de tempo. É claro que, em "outros carnavais", o segurado estaria brigando pela concessão de uma aposentadoria por invalidez, independentemente do início da permanência. No entanto, são as circunstâncias que decidem nossa vida, sem falar que já temos decisões reconhecendo a inconstitucionalidade incidental do novo critério de cálculo. 

A presunção de incapacidade na data da perícia é uma simplificação muito grande e perigosa. Ao segurado deve ser dada a chance de demonstrar que a invalidez tornou-se permanente antes, com a estabilização da incapacidade para o trabalho. Devemos ir mais longe. 

Para os desavisados, a minha formação é no Direito Ambiental, área de onde “importo” muitas teses e teorias – putz, agora já não é segredo!  Pois bem. No Direito Ambiental trabalhamos com a teoria do “fato consumado”, em que ganha importância a noção de “tempo ambiental”, no sentido de que esse poderá resultar em uma convalidação das irregularidades ante a perda do objeto da tutela. Não se pretende defender a aplicação da tese do fato consumado propriamente dito, como na esfera ambiental, mas enfatizar o tempo como um elemento essencial nessa equação.

Explico melhor: o decurso de um tempo dado se faz necessário para a maturação das ideias e o aparecimento da verdade processual. Nos dizeres de Teixeira “[...] quem deve decidir é o Estado/juiz, e não o tempo, porque este, quase sempre, decide em favor de quem não tem razão, principalmente quando se trata de proteção judicial ao meio ambiente” [1]. Em determinadas situações, contudo, o tempo é quem acaba decidindo o conflito (no JEF a celeridade cobra um preço altíssimo!). Na medida em que o dano/prejuízo ambiental se torna irreversível, é possível se decidir em favor do “fato consumado”. Segundo Daniel Martins Felzemburg, a teoria do fato consumado é utilizada como argumento judicial na validação das atividades ilegais protegidas por concessão inicial de liminares equivocadas.[2]

A Desembargadora Federal Marga Inge Barth Tessler enfatiza que o fato consumado se aproxima das figuras da prescrição e decadência: “trata-se da peculiar maneira de o Judiciário responder à passagem do tempo, ‘trabalhar’ a passagem do tempo”.[3] Com efeito, é levado em consideração a consumação de efeitos, alegando-se que não convêm desfazê-los. Em homenagem à segurança jurídica.

No caso do benefício por incapacidade, deve ter ficado claro, não estamos diante de qualquer ilegalidade cometida pelo segurado. A incapacidade ganha ares de irreversível conforme o passar do tempo – faz com que fique estável –, evidenciando, ao mesmo tempo, a permanência da incapacidade desde (quase) o começo. Assim, o tempo aparece como elemento fundamental para justificar a manutenção do auxílio-doença e, com muito maior razão, a sua transformação em aposentadoria por invalidez desde a concessão do benefício por incapacidade temporária. No exemplo supramencionado, poder-se-ia defender que a incapacidade tornou-se permanente antes de 13/11/2019, ou seja, o reconhecimento da incapacidade permanente por parte do próprio INSS, após um longo período de tempo – sem oscilações significativas no quadro clínico e pessoal do segurado  teria um efeito "ex tunc", uma espécie de declaração retroativa. 

O art. 43 da Lei 8.213/1991 dispõe que a aposentadoria por invalidez começará a contar do dia imediato ao da cessação do auxílio-doença, enquanto que o art. 101 prevê a revisão bienal. Agora, o auxílio-doença não constitui um pré-requisito para a concessão da aposentadoria por invalidez. Ela será devida ao segurado que, estando ou não em gozo de auxílio-doença, for considerado incapaz e insusceptível de reabilitação para o exercício de atividade que lhe garanta a subsistência.  A estabilização por – no mínimo – dois anos reforça a inexistência de um prognóstico de recuperação dentro de um prazo determinado. Fixar a permanência em outro momento seria completamente aleatório ou arbitrário. Segundo Daniel Pulino; “A permanência significa que a incapacidade há de existir e persistir; que ela seja presumidamente de outra atividade capaz de lhe garantir o sustento.”[4] Nesse nível, o ônus argumentativo, na construção e justificação de um termo inicial diferente, é do INSS, para afastar qualquer escolha ou inércia por parte da administração. 

O INSS não pode, sem qualquer suporte fático, converter o benefício em aposentadoria por invalidez e sugerir que a incapacidade se tornou permanente após a EC 103/2019. O benefício da dúvida acompanha o segurado, ou melhor, o tempo que ele esteve em gozo de auxílio-doença. A estabilização do quadro clínico e condições pessoais, que antecipa a conclusão pela definitividade da incapacidade, sugere que, desde o começo ou muito antes, a incapacidade já era permanente – com a mesma certeza com que 99 antecipa o 100! Graças a esse modo de agir do INSS, é possível se abreviar o tempo, já que a própria Autarquia (agora) confirma a incapacidade definitiva para o trabalho.  

O presente texto tem como finalidade o debate. Alguém poderia indagar: ...mas e se fosse o contrário? E se o novo critério de cálculo fosse mais vantajoso? A resposta é simples. Talvez nos contentaríamos apenas com o resultado (a concessão do benefício por incapacidade permanente). Agora, o que me beneficia numa coisa não exclui outra. Aqui não cabe o pretérito imperfeito. Como não podemos escolher o cenário, devemos trabalhar com o que temos. Aliás, em qualquer cenário seria possível se discutir o início da incapacidade permanente, se não em benefício do segurado; em benefício do INSS.

Escrito Por Diego Henrique Schuster

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Bah1: TEIXEIRA, Antônio Edilício Magalhães. Processo ambiental. Uma proposta de razoabilidade na duração do processo. Curitiba: Juruá, 2008. p. 146.

Bah2:  MARTINI, Simone; FERRONATTO, Rafael Luiz. O tempo ambiental e o fato consumado: o estudo de um caso. In: LUNELLI, Carlos Alberto (Org.). Direito, ambiente e políticas públicas. Curitiba: Juruá, 2010. p. 105.

Bah3: TESSLER, Marga Inge Barth. O fato consulado e a demora na prestação jurisdicional, no direito estudantil. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 7, jul. 2005. Disponível em: http//www.revistadoutrina.trf4.jus.br/. Acesso em: 14 ago. 2021.

Bah4: PULINO, Daniel. Aposentadoria por invalidez no direito brasileiro, p. 133.


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