A PROVA DA ATIVIDADE ESPECIAL: O QUE ESTÁ ACONTECENDO NA JUSTIÇA?

 

Invariavelmente, o formulário produzido pela empresa é tomado como ponto de partida, por se tratar de uma exigência legal, que vincula a administração. E na via judicial, em que são permitidos todos os meios de provas admitidos em direito, o magistrado deve centrar e restringir sua análise às informações contidas no formulário padrão? 

A resposta pode estar na ADI 6.096. Nela se discutiu a (in)constitucionalidade do art. 24, § 5º, da Lei 13.846/2019, in verbis:

As provas de união estável e de dependência econômica exigem início de prova material contemporânea dos fatos, produzido em período não superior a 24 (vinte e quatro) meses anterior à data do óbito ou do recolhimento à prisão do segurado, não admitida a prova exclusivamente testemunhal, exceto na ocorrência de motivo de força maior ou caso fortuito, conforme disposto no regulamento.

O Supremo Tribunal Federal acolheu o Parecer da Procuradoria-Geral da República, no sentido de que estes são comandos não voltados a informar a atuação do Poder Judiciário. Oportuna a transcrição do seguinte trecho do parecer lançado pela douta Procuradoria-Geral da República, acolhido para afastar a preliminar trazida pela parte autora relativa à inconstitucionalidade formal do art. 24 da Lei 13.846/2019:

Confiram-se, a respeito, as considerações da Advocacia-Geral da União: […] Os dispositivos em questão não são comandos voltados a informar a atuação do Poder Judiciário. Trata-se, na verdade, de normas cujos destinatários diretos são os servidores do INSS, que deverão observar se os processos administrativos estão instruídos com prova material contemporânea dos fatos, para fins de comprovação de tempo de serviço, de união estável e de dependência econômica.[1]

            O CPC não diz para o juiz rejeitar provas materiais que seus olhos e ouvidos lhe oferecem. De qualquer forma, o que se pode aproveitar de muitos formulários é tão-somente o campo da descrição das atividades, no sentido de ser possível dispensar a prova de natureza testemunhal, que tem como finalidade individualizar/confirmar as atividades efetivamente exercidas pelo segurado.

            Agora, desde o início, o advogado sabe que o documento não é suficiente para comprovar o labor especial, na maioria das vezes, por omitir determinados agentes nocivos. O documento, de per si, é suficiente para negar o direito. É por isso que suas informações são impugnadas, estabelecendo-se o ponto controvertido a justificar a necessidade de prova pericial (in loco ou estabelecimento similar). O autor busca a justiça por depender de outros meios de prova, para além do formulário padrão.

            Soubesse o autor que o formulário seria utilizado contra ele, em se tratando de empresa desativada, ele o teria descartado, pois melhor sorte assiste aqueles casos em que a prova pericial é tomada como ponto de partida. Ao autor é atribuído o ônus da prova. No entanto, o juiz recusa-se a aceitar os laudos aplicados por analogia – até mesmo laudos resultantes de perícias realizadas na própria empresa.  Simultaneamente, julga improcedente o pedido, sem determinar a realização da prova pericial expressamente requerida.

O segurado que dependia da justiça, notadamente da prova pericial, vê seu direito sendo “enterrado vivo”, com fundamento na “prova suficiente” e/ou no argumento de que o formulário não apresenta inconsistências, porquanto devidamente preenchido e com indicação do responsável pelos registros ambientais. O formulário não é apenas tratado como um obstáculo para o exercício da ampla defesa e do contraditório, mas como prova de que o segurado não trabalhou exposto a agentes nocivos. Segundo Lenio Streck: “Justiça, para mim, é para solucionar problemas, não para criá-los.

Existe uma expectativa legítima por parte do autor. Não raras as vezes, a prova pericial desmente o formulário fornecido pela empresa. Isso enfraquece qualquer afirmação no sentido de que o formulário com indicação do responsável técnico é suficiente para se indeferir a prova pericial ou não acolher a preliminar de cerceamento de defesa. O autor tem o direito de influir eficazmente na convicção do juiz, nos termos do art. 369 do CPC.

O art. 489, § 1º, II, do CPC, traz um critério negativo, ou seja, não pode a decisão “empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso”. Acho que tal dispositivo deve ser utilizado para se cobrar o alcance de expressões como “a prova é suficiente” e “o formulário não apresenta inconsistências”, afinal, o que significa “suficiente" e "inconsistências”? Qual o motivo concreto de sua incidência nos casos em que o autor impugna o formulário fornecido pela empresa e, por consequência, depende da prova pericial para demonstrar o labor especial?

Não é possível se conhecer a priori as informações estampadas no formulário PPP. Eu posso dizer que 2 + 2 = 4, sem uma investigação empírica. Agora, se for verdade que o formulário PPP não apresenta inconsistências, essa é uma verdade a posteriori – para ter certeza disso, eu preciso verificar a real situação do labor. A menos que a expressão “inconsistência” esteja atrelada a aspectos formais – relativos ao preenchimento do formulário.

A análise do cerceamento de defesa não passa pela avaliação dos aspectos formais do formulário, já que eles não geram qualquer consenso acerca da real situação do labor do segurado/trabalhador. Essa é uma simplificação muito grande e perigosa. O indeferimento da prova pericial, quando apresentadas evidências sérias do labor especial, constitui verdadeira restrição ao direito de prova e, até mesmo, ao próprio acesso à justiça, o que é algo extremamente gravoso.

 

            Escrito por Diego Henrique Schuster

___________________________________

Bah1: ADI 6096, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 13/10/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-280 DIVULG 25-11-2020 PUBLIC 26-11-2020.


Comentários

  1. Penso que está, mais uma vez, corretíssimo.
    O que precisamos enfrentar é o verdadeiro algoritmo que existe mas se esconde.
    A verdadeira razão dos julgadores adotarem posicionamento restritivos no deferimento das provas.
    Penso que poderia ser as estatísticas de julgamento, pois indeferir provas pode gerar menos trabalho na prolação da sentença, isso o IBDP poderia averiguar, qual tempo médio para fazer sentença quando a prova pericial é deferida e quando é indeferida, e também no tempo a mais que o processo ficará tramitando sob responsabilidade do juiz de 1ª grau e seus servidores (quantas intimações a mais, etc) e aí teríamos números que aos olhos da corregedoria e tribunais seriam mais interessante para a carreira do julgador. Em resumo - interesse.

    Poderia ser também e eu não duvido de mais nada nessa vida, na linha do que o Ministro Marcos Aurélio referiu essa semana, de que a magistratura é praticamente um voto de pobreza,
    ouvi certa vez de que um Julgador da justiça estadual que julga matéria por competência delegada, indeferiria tudo pois, segundo ele: "tem umas advogadas e advogados previdenciários que estavam ricos na região", e aí é que quero chegar, eu desconfio que no fundo no fundo, tem algo disso por trás.....

    O que existe e o advogado de carne e osso, e não o advogado de instagram, sabe que salta aos olhos o sentimento dos juízes que em matéria de operadores do direito, eles são o topo da cadeia alimentar, e quando alguém aufere rendimentos maior que o deles, a caneta pesa pra frear isso.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PRIMEIRAS IMPRESSÕES SOBRE A DECISÃO PROFERIDA EM SEDE DE ED: TEMA 1.102/STF

REVISÃO DA VIDA TODA: VAMOS INTERPRETAR/COMPREENDER PARA DECIDIR?

A EQUIVOCADA APLICAÇÃO DO TEMA 629/STJ: ESTAMOS INVERTENDO AS COISAS