TEMA 694/STJ: E QUANDO O ABSURDO É DE OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA?
Não se desconhece o precedente do Superior Tribunal de Justiça acerca
do nível de ruído acima de 90 decibéis, vale dizer: acima do qual se assume o
risco potencial de surdez ocupacional. Pelo contrário. É como advogado e,
também, jurista (afinal estudo e escrevo sobre o tema) que não se quer acreditar
que esteja tudo perdido e o melhor seja se conformar com ele.
Ele foca no princípio tempus regit actum, e não no caráter
protetivo das normas previdenciárias, para declarar a aplicação do Dec.
2.172/97 no período de sua vigência, de 03/1997 a 11/2003. Isso representa uma
forma de interpretação equivocada geradora de uma consequência ainda mais equivocada:
por uma mera subsunção ao um decreto, permite-se a prolongação do trabalho sob
condições especiais, para além de seis (06) anos, a depender do caso – tempo
suficiente para se verificar a perda gradual de audição. Essa forma de interpretação
traduz uma barreia para eficácia direta dos princípios e normas fundamentais, o
que fica claro com o julgamento do Tema 709/STF.
Há muitos motivos para
se afirmar isso. Apesar de
nosso ponto de partida ser a legislação vigente ao tempo da prestação do
serviço, existe espaço para se buscar o referencial constitucional,
prevalecendo a orientação espelhada na Súmula 198 do extinto Tribunal Federal
de Recursos – que nada mais é – e por isso muito – do que uma
interpretação hermeneuticamente adequada do art. 201, § 1º, da CF (entendida, à
toda evidência, no seu todo principiológico). Por outras palavras, os decretos vigentes ao tempo da prestação do serviço não
excluem a Súmula 198 do ex-TFR e, consequentemente, o arcabouço de normas
existentes (e.g.: NHO´S, NR´S e ACGIH).
A própria Corte Cidadã, no julgamento do
representativo de controvérsia REsp 1.306.113/SC, fixou a tese de que:
as normas regulamentadoras que estabelecem os casos de agentes e
atividades nocivos à saúde do trabalhador são exemplificativas, podendo ser
tido como distinto o labor que a técnica médica e a legislação correlata
considerarem como prejudiciais ao obreiro, desde que o trabalho seja
permanente, não ocasional, nem intermitente, em condições especiais (art. 57, §
3º, da Lei nº 8.213/1991).
Mas voltando ao precedente do STJ, que tinha como recorte a
(im)possibilidade de retroação do Dec. 4.882/2003, mais benéfico. Até mesmo
nessa perspectiva, da (i)retroatividade das leis, inúmeras decisões posteriores
ao precedente privilegiaram o caráter protetivo da norma. Assim, por exemplo, o
Dec. 8.123/2013 emprestou nova redação ao art. 68, § 4º, do Dec.03.048/99, no
sentido de a mera presença de agentes reconhecidamente cancerígenos no ambiente
de trabalho ser suficiente para a caracterização da atividade como especial, o
que passou a orientar a análise de todos os períodos, mesmo anteriores ao Dec.
8.123/2013. No julgamento do tema 170,
decidiu-se a coisa mais prosaica do mundo: “A redação do art. 68, § 4º, do
Decreto 3.048/99 dada pelo Decreto 8.123/2013 pode ser aplicada na avaliação de
tempo especial de períodos a ele anteriores, incluindo-se, para qualquer
período: (1) desnecessidade de avaliação quantitativa; e (2) ausência de descaracterização
pela existência de EPI”.
O direito, com certeza influenciado pela ciência, evoluiu
para estabelecer uma lista dos agentes confirmados como cancerígenos para humanos. Com o efeito, o segurado não pode
ser penalizado por essa demora. É possível se
afirmar que a jurisprudência compreendeu a dimensão preventiva e protetiva das
normas previdenciárias. A questão que se coloca: como deixar de reconhecer a
natureza especial da atividade, sabendo que ela é prejudicial à saúde?
Está cientificamente comprovado que o ruído em nível superior a 85 decibéis implica risco de surdez ocupacional, conforme Norma de Higiene Ocupacional - NHO 01, emitida pelo Ministério do Emprego (FUNDACENTRO)[1], e Portaria 3.214/78 (NR-15). Para sermos honestos, a questão dispensaria perícia judicial (CPC, art. 427) – todo e qualquer manual de TV alerta para os riscos do ruído acima deste limite. O ruído contínuo provoca efeitos nocivos no ser humano, além da sensação auditiva desagradável. Vale ilustrar:
1.
ondas sonoras chegam
as células ciliadas
2.
convertem as vibrações
em correntes elétricas
3.
levadas para o cérebro
através dos nervos auditivo
Sem as células ciliadas, não há nada onde o som possa refletir, como se você tentasse fazer eco de sua voz no deserto.
A Organização Mundial de Saúde considera seguro que um indivíduo fique sujeito a, no máximo, 85 decibéis (dB) por um período de oito horas. A cada 5 decibéis aumentados, deve-se reduzir o período de exposição ao som pela metade:
8 h/dia........................................................85
dB
4 h/dia........................................................90
dB
1
h/dia......................................................100 dB
30 min/dia................................................105
dB
15
min/dia................................................110 dB
No mito de Sísifo, um ensaio filosófico escrito por
Albert Camus, em 1941, o último capítulo conta a história de um homem que,
depois de desafiar a morte, é enviado ao Hades e condenado pelos deuses a rolar uma pedra até o alto
da montanha, de onde ela desce de novo - e
assim eternamente. Nessa metáfora, temos o absurdo no fato de o personagem não
se dar conta da inutilidade de sua tarefa.
O absurdo está, portanto, na falta de sentido e, no
Direito, são os princípios que emprestam sentido às regras. Nessa perspectiva,
o precedente do STJ fixa o ponto de onde o sentido se atirou, em que a
coerência se perdeu, por não observar os princípios que fundamentam a concessão
do benefício de aposentadoria especial. A coerência é aquela que se refere
Dworkin e que foi incorporada ao CPC (art. 926), no sentido de o juiz buscar integrar cada decisão em um sistema coerente que
atente para a legislação e para os precedentes jurisprudenciais sobre o tema,
procurando discernir um princípio que os haja norteado.
Isso é possível a partir do reconhecimento da
especialidade com fundamento na Súmula 198 do ex-TFR, pois somente haverá
coerência se os mesmos princípios, da
igualdade e da prevenção, para citar apenas estes, que foram aplicados – mesmo
quando o próprio operador jurídico pensa estar aplicando, exclusivamente, uma
regra e/ou a Súmula 198 do TFR[2]
– para reconhecer como especial a atividade prestada com exposição a agentes
não constantes da lista exemplificativa do Decreto 2.172/1997 o forem aplicados
para os casos onde o nível do ruído é superior a 85 decibéis.[3]
O absurdo fica claro quando se possui inúmeros acórdãos,
dando conta de que os decretos previdenciários não excluem a aplicação da
Súmula 198 da ex-TFR, – ou seja, independemente da lei vigente ao tempo da
prestação do serviço –, mas a mesma não é aplicada quando reconhecida a
insalubridade do ruído acima de 85 decibéis pela perícia judicial, sem
compromisso com o Dec. 2.172/97. Quando o STF, no ARE 664.335/SC, reconhece a
especialidade do ruído acima de 85 decibéis, com fundamento na dúvida sobre
seus efeitos vibratórios e a (in)eficácia do EPI, mas o STJ insiste num ruído
de 90 decibéis, mesmo sabendo que o tempo máximo de exposição diária
permissível é de 4 horas, metade da jornada de trabalho!
Abre-se aqui um parêntese para lembrar que, no seu voto, o
Ministro Luiz Fux traz importante reflexão acerca da nocividade da exposição ao
ruído, invocando as lições de Elsa Fernanda Reimbrecht e Gabriele de Souza, que
tecem valiosas considerações acerca dos efeitos nocivos do agente na saúde do
Trabalhador, reconhecendo seus efeitos danosos a partir de 55 dB. Dizem essas
especialistas que embora a lesão auditiva
seja a mais conhecida, este não é o único prejuízo da exposição do ser humano
em demasia ao ruído, podendo ocasionar, também, problemas cardiovasculares
digestivos e psicológicos. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (...) a
partir de 55 dB, pode haver a ocorrência de estresse leve, acompanhado de
desconforto. O nível 70 dB é tido como o nível inicial do desgaste do
organismo, aumento do risco de infarto, derrame cerebral, infecções,
hipertensão arterial e outras patologias. Com relação ao estado psicológico, o
ruído altera-o, ocasionando irritabilidade, distúrbio do sono, déficit de
atenção e concentração, cansaço crônico e ansiedade, entre outros efeitos
danosos.
O que se depreende disso tudo é que, quando o tema é caracterização e comprovação da atividade especial em razão do agente físico ruído, estamos também rolando a pedra ladeira abaixo. E já se consegue chegar um pouco antes da pedra!
Até mesmo na perspectiva do princípio tempus regit actum, entre 03/1997 e 11/2003 estavam em vigor, concomitantemente, o Dec. 2.172/1997 e a Portaria 3.214/1978 (NR-15), Anexo I. Logo, o que se defende é aplicação da norma mais protetiva ou menos tolerante ao risco de surdez ocupacional, devendo, por isso, ser exigido um nível de ruído superior a 85 decibéis. Oportuno lembrar que o art. 188-P, § 6º, do Dec. 10.410/2020 [art. 70, § 1º, do Dec. 3.048/1999] confere normatividade ao princípio em questão.
Decerto, dependemos da “infidelidade” dos tribunais regionais para o STJ melhor medir o que só pertence ao absurdo. Nas notas taquigráficas do julgamento, causa perplexidade a última manifestação do Min. Harman Benjamin:
Sr. Presidente, permita-me uma observação: fiz questão de
dizer que não há precedente de minha relatoria sobre esta tese. Exatamente
porque, se houvesse, iria analisar a
questão sob outro ângulo. Analisaria a questão e deixei para usar uma expressão
vulgar, mas que está na moda, uma "pegadinha" para chamar a atenção
dos Colegas. Mencionei, expressamente, o fundamento para esta jurisprudência
absolutamente pacificada, que é o art. 4º da antiga Lei de Introdução ao Código
Civil, que julgaria com base no art. 5º dessa Lei, que obriga o juiz, em
situações como esta, buscar o bem comum, o interesse público.
Há um componente que, se quisermos associar ao fundo
constitucional que envolve esta matéria, em que temas afeitos diretamente à
dignidade da pessoa humana e à proteção dos vulneráveis e, mais ainda, dos
hipervulneráveis, não há propriamente que se falar em retroatividade de um
regime que não foi concluído.
Mas fiz essas considerações
apenas por desencargo de consciência, e estou trazendo o repetitivo nos termos
em que a matéria foi pacificada. Observei, nos precedentes, que a matéria foi
debatida.
Então, não é que nesta Seção
tivemos um precedente solto e todos passamos a repetir.
Houve efetivamente debate. E de
maneira disciplinada eu trago aqui os precedentes dos Colegas e alinho a minha
posição, que passa ser absolutamente irrelevante, a essas dos Colegas.
Verifica-se, como jurista, a possibilidade de utilização da técnica do
distinguishing, naqueles casos
em que existe nos autos prova pericial concluindo pela nocividade do ruído
acima de 85 decibéis, por atrair a incidência da Súmula 198 do ex-TFR, ou,
ainda, no controle difuso, a partir de uma interpretação conforme a
Constituição, que deverá ir ao encontro do art. 201, § 1º, da CF/1998,
reafirmado pela Lei de Benefícios (art. 57) e, uma vez mais, confirmado pela já
referida Súmula.
O magistrado não
está obrigado a aplicar um precedente em que não se perquiriu a compatibilidade
do ruído exigido pelo Dec. 2.172/97 com a Constituição. Pelo contrário. A ele
cabe a atividade judiciante. Não se trata de ignorar a existência de um
precedente (de observação obrigatória), mas de uma recusa a sua aplicação diante
da necessidade de uma resposta constitucionalmente adequada ao caso concreto.
Escrito por
Diego Henrique Schuster
[1] Os critérios estabelecidos na
NHO 01, por exemplo, estão baseados em conceitos e parâmetros
técnico-científicos modernos, seguindo tendências internacionais atuais, não
havendo um compromisso de equivalência com o critério legal.
[3] Se dermos razão ao STJ, chegaremos
à seguinte conclusão lógica: um mero decreto executivo
(exemplificativo) vale mais do que a Constituição Federal, que exige tão
somente que a
atividade seja exercida sob condições especiais que prejudicam a saúde ou
a integridade física, orientação
consolidada na Súmula 198 do extinto TFR e aplicada pelo próprio STJ, ou seja,
restando comprovado que a atividade tem potencialidade de prejudicar a saúde ou
a integridade física do trabalhador é devido o reconhecimento da natureza
especial, mesmo que os agentes nocivos não estejam previstos nas listas das
atividades e dos agentes nocivos, mesmo que algum decreto diga o contrário.
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