DECRETO 10.410/2020: "CADA COISA EM SEU LUGAR"
Além da falta de debates - o que suscita discussões sobre a necessidade de um processo democrático -, o decreto não pode extrapolar os limites da Constituição, no sentido de criar direitos e
obrigações. Pontes de Miranda adverte: “onde se estabelecem, alteram, ou
extinguem direitos, não há regulamentos – há abuso de poder regulamentar,
invasão de competência do Poder Legislativo”.[1]
Assim, o art. 29 da EC 103/219 estabelece:
Até que
entre em vigor lei que disponha sobre o § 14 do art. 195 da Constituição
Federal, o segurado que, no somatório de remunerações auferidas no período de 1
(um) mês, receber remuneração inferior ao limite mínimo mensal do salário de
contribuição poderá:
I - complementar a
sua contribuição, de forma a alcançar o limite mínimo exigido;
II - utilizar o valor da contribuição que exceder o limite mínimo de contribuição de uma competência em outra; ou
II - utilizar o valor da contribuição que exceder o limite mínimo de contribuição de uma competência em outra; ou
III - agrupar
contribuições inferiores ao limite mínimo de diferentes competências, para
aproveitamento em contribuições mínimas mensais.
Parágrafo único. Os ajustes de complementação
ou agrupamento de contribuições previstos nos incisos I, II e III do caput
somente poderão ser feitos ao longo do mesmo ano civil.
O texto reclama
mediação de uma lei para o § 14 do art. 195 da Constituição Federal. Ao mesmo tempo, o "Até que entre em vigor lei que disponha
sobre" torna o dispositivo
autoaplicável nessa parte. Não? Eis que surge o dec. 10.410, de 2020, no meio disso tudo. Independentemente da problemática, ele andou bem no que diz repeito ao agrupamento de contribuições.
Onde está o problema? Ao
passo que o art. 195, § 14 estabelece que “o segurado somente terá reconhecida
como tempo de contribuição ao Regime Geral de Previdência Social a competência
cuja contribuição seja igual ou superior à contribuição mínima mensal exigida
para sua categoria, assegurado o agrupamento de contribuições”; o decreto, no
art. 19-E, foi além:
A partir
de 13 de novembro de 2019, para fins de aquisição e manutenção da qualidade
de segurado, de carência, de tempo de contribuição e de cálculo do salário de
benefício exigidos para o reconhecimento do direito aos benefícios do RGPS e
para fins de contagem recíproca, somente serão consideradas as competências
cujo salário de contribuição seja igual ou superior ao limite mínimo
mensal do salário de contribuição.
§ 1º Para fins do
disposto no caput, ao segurado que, no somatório de remunerações auferidas no
período de um mês, receber remuneração inferior ao limite mínimo mensal do
salário de contribuição será assegurado:
[...]
Fica fácil perceber que a
redação do decreto excedeu os limites semânticos do texto constitucional (art.
195, § 14) ao falar em “salário de contribuição”, “carência”, “qualidade de
segurado”, etc (já deu pra entender). A preocupação com essas terminologias é
legítima! É importante um confronto com a tradição e muito cuidado com o art.
201, § 12, da CF/1988: “Lei instituirá sistema especial de inclusão
previdenciária, com alíquotas diferenciadas, para atender aos trabalhadores de
baixa renda, inclusive os que se encontram em situação de informalidade, e
àqueles sem renda própria que se dediquem exclusivamente ao trabalho doméstico
no âmbito de sua residência, desde que pertencentes a famílias de baixa renda.”
Interpretar a lei conforme a Constituição, e não o contrário...[2]
No mais, num suposto
conflito com a Lei de Benefícios, por exemplo, o decreto executivo fica abaixo
da lei infraconstitucional. Assim, caso - por exclusão - o INSS venha defender
o fim do período de graça após a cessação do benefício, deve prevalecer o art.
15, II, da Lei 8.213/1991. Aliás, período de graça nada mais é – e por isso
muito – do que aquele tempo em que o segurado se mantém protegido pela
previdenciária social, mesmo estando sem contribuir ou exercer alguma atividade
remunerada. Pensemos em alguém desempregado e numa alta indevida.
O período de graça tem
início após a cessação do benefício por incapacidade, e não da última
contribuição. A Turma Nacional de Uniformização da Jurisprudência dos Juizados
Especiais Federais, no PEDILEF 2010.72.64.001730-7, uniformizou o seguinte
entendimento:
[...] não
se pode considerar como início do período de graça o momento em que o segurado
deixou de contribuir, uma vez que tal circunstância se deve ao início do
percebimento de benefício por incapacidade, situação prevista pelo inciso I do
referido art. 15, que faz com que a autora mantenha, nesse ínterim, a qualidade
de segurado, dessa forma, o período de graça teria início somente a partir da
cessação do auxílio-doença, período em que a autora não contribuiu, aí sim,
voluntariamente, porquanto desempregada.
O segurado deixa de
contribuir por estar incapacitado para o trabalho, recebendo o benefício de
auxílio doença. No mais, é possível que este prazo, mesmo que contado desde o
último recolhimento, ultrapasse a data de cessação do benefício, vale dizer:
com a prorrogação decorrente das 120 contribuições sem perda da qualidade de
segurado e comprovada situação de desemprego. Quando preenchidos os
pressupostos dos §§ 1º e 2º, do art. 13 do próprio RPS, o período de graça é
prorrogado por até 37 mês e 15 dias após o segurado deixar de exercer atividade
remunerada. Com efeito, a exclusão de 12 meses após a cessação do benefício por
incapacidade não poderá reduzir o período de graça.
É bem verdade que para a
jurisprudência da Turma Nacional de Uniformização o desempregado não é mais
aquele que (só) não está trabalhando. A demissão voluntária é colocada no mesmo
nível do “desemprego voluntário”, ou seja, para não se estender o período de
graça (LB, art. 15, § 2º). Entende-se que o risco é individual e
deliberadamente aceito pelo sujeito.
Isso nos remete a
necessidade de o segurado contribuir como facultativo para que o período de
afastamento conte como carência. Aqui, uma vez mais, estão diminuindo direitos
e criando obrigações. Em determinadas situações teremos uma (quase) “taxação”
do denominado mínimo-existencial, pois se obrigará alguém que ganha um salário
mínimo a recolher como facultativo, sob pena de perder a qualidade de segurado
após a cessação do benéfico e, pior ainda, não se aposentar.
Não se trata apenas de
resistir, é flagrante a perda de direitos e o enfraquecimento da
proteção previdenciária. Para Kelsen: “a interpretação é, portanto, uma
operação mental que acompanha o processo da aplicação do Direito no seu
progredir de um escalão superior para um escalão inferior”.[3] Pelo visto não
são apenas as normas que obedecem a essa hierarquia, mas as classes sociais.
Não podemos esperar o
Direito Previdenciário caber num decreto ou numa instrução normativa do INSS.
Será que só no Direito Previdenciário se dá tanto valor a decretos e instruções
normativas?
Post Scriptum: Sim, um decreto deveria detalhar uma lei. Em alguns pontos (que
nada tem a ver com organização e funcionamento da administração), o decreto 10.410/2020 vem descrever (regulamentar) a Constituição, ou seja, não existe sequer lei
que o preceda, enfim, que justifique sua existência. Qual é a lei
que ele está detalhando, no sentido de criar meios necessários para a sua
execução? Ele pode obrigar a fazer ou não fazer alguma coisa?
Escrito por Diego Henrique
Schuster
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Bah1: MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1946, vol 2. p. 411.
Bah2: O amigo e jurista Fabio dos Passos compartilhou
comigo tal inquietação, levantando tal “suspeita” sobre a regulamentação do
art. 195, § 14, da CF/88.
Bah3: KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 387.
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