DIRETO PREVIDENCIÁRIO: É O FIM DO MUNDO A CADA NOVO DECRETO?



Não devemos tratá-los como obstáculos para a aplicação do Direito. Nada é absolutamente novo. O que temos são dispositivos confirmando as mudanças trazidas pela EC 103/2019; o esclarecimento de pontos que (ainda) geravam dúvidas no cenário conceitual anterior; e, por último, uma tentativa de atropelar algumas conquistas hermenêuticas a partir da seleção e manipulação da tradição – uma recusa aos precedentes.
Para Lenio Streck não há grau zero de sentido. “Assim, pode-se dizer que nem o texto é tudo e nem o texto é um nada. Por exemplo: nem a lei escrita é tudo; mas não se pode dizer que este texto (lei escrita) não tem valor ou importância para o intérprete. E, importante, textos, aqui, devem ser entendidos como eventos.”[1] Isso significa, por outras palavras, que ao intérprete é possível buscar os sentidos prévios construídos ao longo da história e consolidados pela tradição sobre determinando tema. Nessa perspectiva, “a interpretação deixa de ser uma mera reprodução da literalidade do enunciado e passa a ser uma constante construção de sentido”.[2]
Mas vamos ao Decreto 10.410, de 30 de junho de 2020, e as mudanças com relação à aposentadoria especial. Não obstante os avanços na própria legislação, com o Decreto 8.123, de 2013, a nova determinação legal retirou a presunção de nocividade dos agentes reconhecidamente cancerígenos (Art. 68, § 4º), o que significa que trabalhadores continuarão sendo expostos a agentes agressivos, como amianto, benzeno (substâncias carcinogênicas); e continuaremos falando sobre a (in)eficácia do EPI?
Uma vez atingindo um determinado nível de proteção do trabalhador/segurado esse nível de proteção não pode ser diminuído, sob pena de retrocesso.[3] Toda e qualquer redução na ordem de prevenção – contra acidentes e doenças laborais – contida nos preceitos normativos vigentes configura um retrocesso. Pontes de Miranda adverte: “onde se estabelecem, alteram, ou extinguem direitos, não há regulamentos – há abuso de poder regulamentar, invasão de competência do Poder Legislativo”.[4]
Acredita-se nas decisões cumuladas sobre o tema (e.g.: IRDR 15/TRF4, temas 170, 188 e 213/TNU etc.), no sentido de ser suficiente, para a comprovação de efetiva exposição do trabalhador, a presença de agentes reconhecidamente cancerígenos no meio ambiente de trabalho, independentemente do uso de EPI ou EPC. A linguagem das promessas e das medidas de controle previstas na legislação trabalhista não são suficientes para dizer onde passa o limite do aceitável e do inaceitável.
A LINACH da Portaria Interministerial nº 09 (MTE, MS e MPS) de 07/10/2014, traz uma lista de agentes confirmados como cancerígenos para humanos e, nem todos, estão arrolados nos anexos dos decretos regulamentadores (como, por ex, “poeira de couro”), sendo possível sua utilização. O INCA também possui um estudo sobre agentes cancerígenos no trabalho e no ambiente. Agentes reconhecidamente cancerígenos relacionam-se a doenças com longos períodos de latência, que tem como causa a contínua absorção ou contato com agentes químicos, cujo intervalo de tempo entre a causa e manifestação de qualquer efeito prejudicial é grande (e.g. benzeno, hidrocarbonetos aromáticos, para citar apenas estas substâncias cancerígenas).
Ainda, a Primeira Seção do STJ fixou a tese de que o segurado que exerce atividades em condições especiais, quando em gozo de auxílio-doença – seja acidentário ou previdenciário –, faz jus ao cômputo desse período como especial. Ao julgar recurso repetitivo sobre o assunto (Tema 998), o colegiado considerou ilegal a distinção entre as modalidades de afastamento feita pelo Decreto 3.048/1999, o qual prevê apenas o cômputo do período de gozo de auxílio-doença acidentário como especial.
Apesar da decisão não ter transitado em julgado ainda, bem assim do recurso extraordinário no STF, isso parece não significar nada, já que o Dec. 10.410/2020, no seu art. 65, parágrafo único, não apenas deixou de prever a possibilidade de reconhecimento, como tempo de serviço especial, dos períodos em gozo de auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez previdenciários, mas também os acidentários. Os acontecimentos cotidianos atualizam as imagens e conferem ainda mais gravidade a tal medida. Aquele profissional da saúde que tiver que se afastar em razão de ter se contaminado com o COVID-19 (no trabalho) não poderá computar esse tempo como de “efetiva exposição a agentes” biológicos, para fins de aposentadoria especial.
Na perspectiva do sistema da common law (dos precedentes), o Legislativo deveria atuar de forma mais restritiva, “respeitando a terminologia jurídica e as divisões tradicionais das matérias, operando mediante instituições e conceitos jurídicos já consolidados”. Na common law, “[...] qualquer tentativa de legislar/codificar o direito “não escrito” inglês era vista como uma forma de descartar uma das maiores vantagens que os ingleses, historicamente, usufruíram em seu sistema, que era justamente a aptidão de possuir aplicação flexível.”[5]
Seja como for, a regra de direito (ratio decidendi) utilizada como fundamento das questões confrontadas pelo RPS constitui condição necessária e suficiente para se superar sua redação. Na mesma linha a questão envolvendo o menor sob guarda e o tempo em gozo do auxílio-doença para fins de carência. Aqui ganha destaque a ideia de romance em cadeia (em Ronald Dworkin), já que nada começa ou termina com  o novo decreto.
Por fim, ponto positivo para o § 8º do art. 68 do RPS: “A empresa deverá elaborar e manter atualizado o perfil profissiográfico previdenciário, ou o documento eletrônico que venha a substituí-lo, no qual deverão ser contempladas as atividades desenvolvidas durante o período laboral, garantido ao trabalhador o acesso às informações nele contidas, sob pena de sujeição às sanções previstas na alínea h do inciso I do caput do art. 283.” Segundo Wilson Engelmann e Viviane Saraiva Machado: “A comunicação e o esclarecimento são duas chaves para a implantação da precaução no sistema social”.[6] 
O jurista não espera pela atualização do RPS para defender qual a interpretação a ser dada aos novos dispositivos constitucionais. Aliás, hoje já podemos defender aquilo que escapou, lançando um olhar crítico sobre o Dec. 10.410, de 2020, e tudo aquilo o que ainda está por vir. Num contexto que afirma poder dispensar os direitos previdenciários, não podemos simplesmente favorecer aquilo que é “dado”, pensando ou acreditando que era inevitável. Sem direitos e nem lei à qual se opor o jurista deixa de ser o guardião dos direitos sociais.

Escrito por Diego Henrique Schuster




[1] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento, 2017. p. 21.
[2] BUFFON, Marciano. Princípio da capacidade contributiva: uma interpretação hermeneuticamente adequada. In: CALLEGARI, André Luís; STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo (Org.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do Programa de Pós-graduação em Direito da UNISINOS: mestrado e doutorado: n. 8. Porto Alegre: Liv. do Advogado; São Leopoldo: UNISINOS, 2011. p. 250. p. 233.
[3] Por meio do prisma ambiental, pode-se afirmar: “uma norma deveria ser considerada regressiva sempre que o grau de efetividade de um direito veiculado pela norma resulta inferior àquele que já havia sido alcançado anteriormente, de modo que somente seria possível afirmar-se uma situação de reversão proibida ou de retrocesso proibido mediante uma análise empírica e comparativa entre as realidades normativas”. AYALA, Patryck de Araújo. Deveres de proteção e o direito fundamental a ser protegido em face dos riscos de alimentos transgênicos. 2009. f. 264. Tese (Doutorado em Direito) – Curso de Pós- -Graduação em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis-SC.
[4] MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1946, vol 2. p. 411.
[5] STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente e as súmulas vinculantes? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 28.
[6] ENGELMANN, Wilson; MACHADO, Viviane Saraiva. Do Princípio da Precaução à Precaução como Princípio: construindo as bases para as nanotecnologias compatíveis com o meio ambiente. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, ano 18, vol. 69, p. 26, jan.-mar./2013.

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