SEGURIDADE SOCIAL: “O MEIO-TERMO” E AS MEDIDAS VOLTADAS PARA O ENFRENTAMENTO DO COVID-19*
Adianto que não vou falar sobre as
duas espécies de virtude, a intelectual e moral, trabalhadas por Aristóteles. O
que mais perto interessa nesse momento é comentar as últimas mudanças – ou
tentativas de mudança – no sistema normativo, porém, examinando-as a partir
dos exemplos utilizados pelo filósofo para facilitar a compreensão do conceito
de “meio-termo”, numa verdadeira adaptação. Aqui vamos considerar o “meio-termo”
em relação às medidas voltadas para o enfrentamento do contexto de calamidade da COVID-19.
O meio-termo entre excesso e falta pode ser falso. Se dez é demais e
dois é pouco, nem sempre seis será o meio-termo. Explico. Antes de qualquer
outra análise, cumpre observar que a ampliação do critério de renda mensal para
a concessão do BPC, de ¼ para ½, ultrapassa o período de três meses, mas, nem
por isso, deixa de ser uma medida
emergencial e temporária. A uma, porque o benefício
assistencial tem como finalidade tirar o pobre da pobreza, e não mantê-lo,
mormente a partir da ampliação da renda mensal, isto é, num momento de crise.
Por outras palavras, ele não é vitalício. A duas, existem projetos de lei que
estabelecem uma manutenção temporária para o BPC, considerando a pessoa com
deficiência que vier a exercer atividade remunerada. A três, os benefícios não se excluem, eles
suplementam-se mutuamente e podem, além disso, reforçar uns aos outros,
aumentando as capacidades das pessoas e conferindo dignidade humana. A quatro, não há como se prever o
período de latência da crise. Na verdade, o conceito de vulnerabilidade econômica
poderá sofrer modificações consideráveis com a recessão e a queda da renda per
capita que o país sofrerá para os próximos anos.
Sem embargos do cuidado com princípio
da fonte de custeio[1], a
mudança legislativa sugerida vai ao encontro da realidade brasileira, com
especial atenção paras as desigualdades sociais, e, especialmente, da
orientação assumida pelo Supremo Tribunal Federal, confirmando a inconstitucionalidade do
parágrafo 3º do artigo 20 da Lei Orgânica da Assistência Social (Lei
8.742/1993), que prevê como critério para a concessão de benefício a idosos ou
deficientes a renda familiar mensal per capita inferior a 1/4
do salário mínimo, por considerar que esse critério está defasado para
caracterizar a situação de miserabilidade. Foi declarada também a
inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 34 da Lei 10.471/2003
(Estatuto do Idoso).
Mas voltando à questão do “meio-termo”.
Apesar desse número ser intermediário de
acordo com uma proporção aritmética, na relação entre o critério de renda per
capita de ¼ e a decisão do Supremo
Tribunal Federal, ½ continua sendo um limite insuficiente, em face da
complexidade do conceito de “incapacidade econômica” e/ou “pobreza”. Segundo
Fernanda Doz Costa, nos estudos sobre pobreza, este termo tem sido empregado, em
geral, de três formas: pobreza com base na renda; como privação de capacidades
e, por fim, pobreza como equivalente à exclusão social.[2]
Isso poderia motivar uma mudança de
atitude dos poderes públicos, mas o foco é a renda mensal para fins de
concessão do Amparo Assistencial, que, num confronto com a tradição, sempre foi
definida com base na renda mensal per capita do grupo familiar, das pessoas que
vivem sob o mesmo teto. Assim, para
o inválido, o valor concedido a outros membros do mesmo grupo familiar passa a
integrar a renda, para efeitos de cálculo
per capita do novo benefício
requerido.
Como vimos, a Lei 13.982, de 2 de abril de 2020, conferiu nova redação
ao art. 20, § 3º, da Lei n 8.742/1993. No entanto, o Presidente da República
vetou a proposta. Apesar da questão ser passível de apreciação pelo Congresso
Nacional, o Supremo Tribunal Federal, no
julgamento do Medida Cautelar Na Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental 662 Distrito Federal, determinou a suspensão da eficácia do art.
20, § 3º, da Lei 8.742, na redação dada pela Lei 13.981, de 24 de março de 2020,
enquanto não sobrevier a implementação de todas as condições previstas no art.
195, §5°, da CF, art. 113 do ADCT, bem como nos arts. 17 e 24 da LRF e ainda do
art. 114 da LDO.
Mesmo com a modificação do critério de renda mensal, de
¼ para ½, não se vislumbra uma substituição da decisão do Supremo Tribunal
Federal pelo novo critério legal. Sobre a necessidade de se considerar outros
critérios para aferição da “incapacidade econômica”, existe um precedente do
STF e sua ratio decidend constitui condição necessária e
suficiente para se superar a insuficiência de critérios matematizantes. “O Direito
não pode submeter-se aos princípios epistemológicos das ciências naturais e
menos ainda das matemáticas”.[3]
Apesar de o STF não ter sido suficientemente claro para afastar de vez o
entendimento de que o limite de ¼ salário é insuperável, seria possível ao legislador a unificação do
critério de ½ do salário mínimo, como novo ponto de partida (ou retorno), com
observação do art. 20-A da Lei 13.982, de 2 de abril de 2020 – é importante a
leitura. É a visão que se considera possível, já que a nova referência é menos
insuficiente. A pobreza não é somente uma privação de recursos
econômicos ou materiais, mas também uma violação da dignidade humana.
É inevitável, a preocupação do sistema com a segurança e previsibilidade
faz com que se busque por critérios objetivos, numa tentativa de se controlar
racionalmente a aplicação do Direito, o que não significa deixar de fora, da
aplicação das regras, os princípios da igualdade, coerência, proporcionalidade
(no sentido de insuficiência de proteção de um direito fundamental), para citar
apenas estes, que devem ser analisados no caso concreto, diante da situação
fática apresentada. Ao passo que se reconhece a insuficiência de critérios
objetivos para se definir o alcance do conceito, bem assim a complexidade social, o novo critério está mais próximo das
expectativas comportamentais normativas.
Apesar de sua abertura cognitiva, o Direito tem menor capacidade de
lidar com as frustrações de suas expectativas do que, por exemplo, o sistema da
ciência[4], cujo código (verdade/falsidade) está direcionado para a aquisição
constante de conhecimentos científicos novos.[5]
Por último, sobre a antecipação do
auxílio-doença, no valor de um salário mínimo, em razão da pandemia causada pelo coronavírus (Lei 13.982,
art. 4]). Tal
possibilidade incorporou uma dimensão preventiva e, a meu ver, buscou corretamente
o meio-termo. Para aqueles que mais precisam, os extremos – entre o esperado a
título RMI, a demora do INSS e a dificuldade de mobilidade – se aproximam (quase
como uma ferradura!). Para a grande maioria dos segurados, o meio-termo se
afasta da média (da insuficiência e, com muito maio razão, da falta), por
garantir celeridade e preservar um mínimo de proteção, mormente na esfera
judicial, isto é, diante da possibilidade de o juiz deferir o pedido de concessão/restabelecimento
do benefício, com fundamento no art. 300 do CPC.
Além do mais, o meio-termo
preserva a confiança nos profissionais de saúde, admitindo-se o atestado
oferecido pelo segurado como prova suficiente, desde que preenchidos os
requisitos da Portaria Conjunta nº. 9.381, de 06 de abril de 2020, vale
dizer: uma prova produzida fora dos autos. Aqui, deve ficar claro, não estamos
nos inclinando no sentido do excesso ou da falta para atingir o meio-termo,
como quando se tenta endireitar uma madeira empenada. Isso porque
[...] as ações
previdenciárias, acidentárias e assistenciais, máxime as tendentes à concessão
e restabelecimento de benefícios, tratamentos de saúde e obtenção de
medicamentos, apresentam-se como campo fértil para a antecipação de tutela,
sito em razão da invariável hipossuficiência da parte autora, do caráter
alimentar da prestação pretendida, dos prejuízos que decorrem da demora na
tramitação dos processos desta natureza e da orientação institucional abusiva e
protelatório das entidades ancilares.[6]
A dimensão
preventiva do benefício por incapacidade reforça a tutela antecipada. Na
dúvida, a proteção social não pode
ser postergada na espera por maiores provas e/ou melhores informações
científicas. Por ora estou apenas apresentando um esboço, e com isso (não) me contento;
mais tarde voltarei ao assunto mais detalhadamente, num artigo científico.
Escrito
por Diego Henrique Schuster
___________________________________
Bah*: CF. Livro II
de ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 5. ed. São Paulo: Martin Claret, 2011.
p. -36-51
Bah1: No RE 415.454-4, concluiu-se que a lei que majora benefício previdenciário deve, necessariamente e de modo expresso, indicar a fonte de custeio total (CF, art. 195, § 5o), em receita não pode haver despesa. Isso deveria valer para a aplicação de novos critérios de cálculo a todos os beneficiários, inclusive a Lei 9.032/1995, que implicou a majoração das pensões. Apesar de o Supremo Tribunal Federal dar um alívio para a seguridade social, impedindo que pensões concedidas antes de 1995 cheguem a 100% do salário benefício do segurado, não foi exigida a fonte de custeio para a mudança instituída pela própria Lei 9.032/1995. Além do princípio tempus regit actum quanto ao momento do fato gerador para a concessão de benefícios nas relações previdenciárias, a falta de implementação das condições previstas no art. 195, §5°, da CF foi, em última análise, justificada nas mudanças normativas. Devemos, contudo, cuidar com essa observação, sob pena de tal crítica transformar-se numa tendência ou justificativa para se autorizar um vício constitucional. Para o bem ou para o mal, o caminho não poderá ser o de abrir as portas do Direito para algo inconstitucional, com a manipulação do princípio da precedência do custeio. A situação hermenêutica precisa ser compreendida. Ademais, o princípio da precedência do custeio não pode significar apenas majoração. Qualquer medida, para ampliar ou restringir o acesso a qualquer benefício, precisa vir acompanhada do respectivo cálculo, por uma questão de coerência em princípio.
Bah1: No RE 415.454-4, concluiu-se que a lei que majora benefício previdenciário deve, necessariamente e de modo expresso, indicar a fonte de custeio total (CF, art. 195, § 5o), em receita não pode haver despesa. Isso deveria valer para a aplicação de novos critérios de cálculo a todos os beneficiários, inclusive a Lei 9.032/1995, que implicou a majoração das pensões. Apesar de o Supremo Tribunal Federal dar um alívio para a seguridade social, impedindo que pensões concedidas antes de 1995 cheguem a 100% do salário benefício do segurado, não foi exigida a fonte de custeio para a mudança instituída pela própria Lei 9.032/1995. Além do princípio tempus regit actum quanto ao momento do fato gerador para a concessão de benefícios nas relações previdenciárias, a falta de implementação das condições previstas no art. 195, §5°, da CF foi, em última análise, justificada nas mudanças normativas. Devemos, contudo, cuidar com essa observação, sob pena de tal crítica transformar-se numa tendência ou justificativa para se autorizar um vício constitucional. Para o bem ou para o mal, o caminho não poderá ser o de abrir as portas do Direito para algo inconstitucional, com a manipulação do princípio da precedência do custeio. A situação hermenêutica precisa ser compreendida. Ademais, o princípio da precedência do custeio não pode significar apenas majoração. Qualquer medida, para ampliar ou restringir o acesso a qualquer benefício, precisa vir acompanhada do respectivo cálculo, por uma questão de coerência em princípio.
Bah2: COSTA, Fernanda Doz.
Pobreza e direitos humanos: da mera retórica às obrigações jurídicas - um
estudo crítico sobre diferentes modelos conceituais. Sur. Revista Internacional de Direitos Humanos. vol.5 no.9 São
Paulo Dec. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-64452008000200006>. Acesso em: 04 abr. 2020.
Bah3: BAPTISTA DA SILVA,
Ovídio Araújo. A fundamentação das sentenças como garantia constitucional.
Disponível em: <http://www.baptistadasilva.com.br/artigos010.htm>.
Acesso em: 2 out. 2009.
Bah4:
CARVALHO, Délton Winter de. Aspectos probatórios do dano ambiental futuro: uma
análise sobre a construção probatória da ilicitude dos riscos ambientais. In:
STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo; CALLEGARI, André Luís (Orgs.). Constituição,
sistemas sociais e hermenêutica: anuário do Programa de Pós-graduação em
Direito da UNISINOS: mestrado e doutorado: n. 8. Porto Alegre: Livraria do
Advogado; São Leopoldo: UNISINOS, 2011. p. 82-83. Niklas Luhmann nunca escreveu
nada sobre um sistema ser mais do que o outro. No entanto, alguns autores,
entre eles, Marco Aurélio Serau Junior, entendem que: “Na perspectiva
luhmanniana, o sistema político possui muito mais abertura cognitiva que o
sistema jurídico. Porém, não possui obrigação de decidir, pode simplesmente não
normatizar certas matérias, não adotar certas políticas públicas buscadas pela
sociedade. Isso não ocorre no sistema jurídico, no qual os Tribunais têm o
dever de dar uma resposta jurídica às pretensões que lhe são endereçadas (nin
liquet). Esse fator é utilizado em benefício dos movimentos sociais, embora as
respostas produzidas nem sempre sejam favoráveis”. SERAU JU-NIOR, Marco
Aurélio. Sociedade, direitos previdenciários e Tribunais. Revista Brasileira
de Direito Previdenciário, Porto Alegre, v. 5, n. 25, p. 32, fev./mar.
2015.
Bah5: LUHMANN,
Niklas. Ecological communication. Cambridge: University of Chigado
Press, 1989. p. 78.
Bah6:
VAZ, Paulo Afonso Brum. Tutela antecipada
na Seguridade Social, São Paulo: LTr, 200. p. 165.
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