DANO MORAL EM MATÉRIA PREVIDENCIÁRIA: UMA FICÇÃO JURÍDICA OU “FAZ PARTE”?




Como sabemos, a translação do instituto civilista para o direito previdenciário adquire feição própria. No entanto, ainda estamos falando de “responsabilidade civil” (aperfeiçoada pelo Direito Francês), porém, com foco numa realidade sobre a qual opera o direito previdenciário, logo, não devemos falar em “dano moral previdenciário”, porquanto o ramo do direito é apenas o cenário para se verificar a ocorrência de alguma ofensa à integridade moral: “[...] dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar.”[1].
O dano moral pressupõe um equilíbrio anterior, seja psicológico, jurídico ou econômico, ou seja, a tese reclama uma ordem temporal linear (antes e depois da ação). Ninguém dúvida que “o mero dissabor não caracteriza dano mora”. Esta, pois, é mais uma daquelas frases sem qualquer importância do ponto de vista da fundamentação de sentenças e acórdãos, assim como “o mero contato com cimento não caracteriza a atividade especial”. Na práxis jurídica, ela é transformada num álibi retórico, para se fazer deduções e deixar de fora as individualidades e as particularidades do caso concreto. Uma resposta antes da pergunta. Simples assim.
De qualquer maneira, em matéria previdenciária, podemos começar colocando de lado aquelas situações causadas por uma interpretação divergente entre o INSS e o Poder Judiciário, que dão azo a ações revisionais, nas quais se busca tão-somente um aumento da renda mensal do benefício. Tenho pra mim situações já bastantes difundidas na doutrina e jurisprudência como, por exemplo, o corte de algum benefício, causado por homônimos, uma equivocada suspeita de fraude ou concessão, enfim, o indeferimento ou cessação sem qualquer suporte fático ou legal e/ou sem oportunidade de ampla defesa administrativa para o segurado.
Eu vou além, toda e qualquer ação que venha a contrariar o dever imposto pelas normas previdenciárias. Estamos falando de decisão administrativa (ato vinculado), logo, em alguns casos, a regra não deixa escolha para o seu intérprete. Isso lembra situações em que é flagrante a violação à literalidade de algum dispositivo, como na hipótese autorizadora de ação rescisória. Exemplificando: sendo a função do segurado (e.g.: “soldador”) enquadrável no código 2.5.3 do Quadro Anexo ao Decreto n.º 53.831/64; 2.5.3 do Anexo I ao Decreto n.º 83.080/79 e a prova por ele fornecida adequada, é devido o enquadramento por categoria profissional, sob pena de rescisão da decisão judicial, como fez a 3ª Seção do TRF4, no julgamento da AR 0000384-23.2014.404.0000, de relatoria do Des. Rogerio Favreto. Neste nível, é devido o enquadramento, também, pelo INSS, já que a Instrução Normativa 77/2015 determina, expressamente, o enquadramento por categoria profissional.
E quanto a existência de dolo ou erro grosseiro? Aqui está um dos maiores problemas da jurisprudência. Para a compreensão do fenômeno é fundamental que se perceba a evolução das teorias sobre a responsabilidade do Estado, partindo da culpa administrativa ou culpa anônimo, passando pela falta de serviço até um ponto de ruptura, representado pela teoria do risco administrativo (objetiva), ou seja, independentemente de qualquer falta ou culpa do serviço.[2] O que isso significa? Que o elemento conduta dolosa ou culposa deixou de ser essencial. Em poucas palavras, basta a comprovação do dano e do nexo de causalidade entre ambos para emergir o direito à reparação.[3]   
O art. 37, § 6º, da CF/88 confirma que a responsabilidade do Estado, neste compreendido o INSS – que responde com prerrogativas e obrigações como a própria administração fosse – não se refere apenas à atividade comissiva, mas, também, omissiva, ou seja, quando ele deixa de fazer o que tinha dever de fazer. Para Sérgio Cavalieri Filho:
[...] o ato ilícito, na moderna sistemática da responsabilidade civil, não mais se apresenta sempre com o elemento subjetivo (culpa), tal como definido no art. 186 do Código Civil. Há, também, o ato ilícito em sentido lato, que se traduz na mera contrariedade entre a conduta e o dever jurídico imposto pela norma, sem qualquer referência ao elemento subjetivo ou psicológico, e que serve de fundamento para toda a responsabilidade objetiva.[4]
Note-se bem – bem mesmo – que não se deve perquirir a culpa no sentido stricto sensu (negligência, imprudência e imperícia), logo, o que dirá no sentido lato sensu (dolo), que exige intenção/vontade de causar um dano! A existência do dolo ou da culpa é assunto que diz respeito exclusivamente ao relacionamento funcional do agente com a entidade pública ou privada a que se acha vinculado, em sede de ação regressiva, e não para se afastar a teoria da responsabilidade objetiva.[5] Quanto ao erro grosseiro, cumpre perguntar: O que configura um “erro grosseiro”? Contrariar o dever imposto pela literalidade de uma norma de observância obrigatória pelo servidor não seria suficiente ou seria a desconstituição da coisa julgada, na esfera judicial, um minus em relação a isso?
Uma vez superadas essas questões, voltemos à questão do dano moral e sua comprovação. A dogmática jurídica é categórica no sentido de que a comprovação é difícil, por se tratar de algo subjetivo, existente na esfera íntima da pessoa, etcétera. Ao contrario do que possa transparecer, não vejo essa dificuldade toda em matéria previdenciária. Explico. O dano moral é considerado in re ipsa (presumido) em situações como:
(a) inserção de nome de forma indevida em cadastro de inadimplentes (REsp 1.059.663);
(b) atrasos de vôos, inclusive nos casos em que o passageiro não pode viajar no horário programado por causa de overbooking (REsp 299.532);
(c) diplomas sem reconhecimento, ou seja, quando após concluído o curso, o aluno não pode exercer a profissão por falta de diploma reconhecido pelo Ministério da Educação (REsp 631.204); 
(d) equívocos em atos administrativos como, por exemplo, a multa de trânsito indevidamente cobrada (REsp 608.918);
(e) inclusão indevida e equivocada de nomes de médicos em guia orientador de plano de saúde (REsp 1.020.936).
Nessa perspectiva, não seria possível se presumir os sentimentos de humilhação, privação e impotência diante da cessação indevida do benefício? Parece desnecessário, mas o benefício previdenciário tem o condão de substituir os rendimentos do trabalho do segurado, logo, é possível se imaginar as restrições causas pela falta de dinheiro, vale dizer: restrições ligadas a essência da pessoa humana. Imagine um lugar onde as pessoas são mensuradas por aquilo que elas têm e o dinheiro é condição de acesso à serviços sociais básicos (se me entendem a ironia). Com efeito, por respeito à coerência e à integridade do direito (CPC, art. 926), como não comparar essas e outras situações com aquelas hipóteses chanceladas pelo STJ, como o equívoco em atos administrativos. Fazer um balanço dessas situações é imprescindível para se separar o real dano moral – que faz emergir laços de solidariedade – do falso.
O que precisamos, de fato, é aproximar o direito do mundo prático. Devemos olhar para as consequências deduzidas daquilo que acontece o tempo todo, na vida real. Estou me referindo as regras de experiência (CPC, art. 375), que deverão interpelar o julgador. Nesse sentido:
[...] não pode ser materialmente provada, nem mesmo por indícios, pois ela é de ordem subjetiva e particularizada para cada indivíduo, motivo pelo qual caberá ao julgador, utilizando-se de criterioso bom-senso e tendo em conta os valores médios do cidadão de seu tempo, aquilatar se determinadas situações e fatos podem gerar ‘dor moral’ nas suas mais variadas formas (dor, sofrimento, tristeza, desilução, etc.). Em outras palavras: a ‘dor moral’ não é provada, mas intuída pelo juiz á vista de sua experiência e levando em consideração os valores da sociedade e do homem médio(Acórdão de 12.08.02, exarado no RO 01393/2001-000-24-00-7, do TRT da 24ª Região” (Dano Moral, São Paulo: LTr, 2005, p. 479/480, griso nosso).
O indeferimento abusivo do benefício previdenciário igualmente causou algum desconforto, aflição ou transtorno?  O dano moral é o prejuízo causado aos atributos da personalidade do ser humano e, também, da pessoa jurídica, sendo que, em matéria previdenciária, destaca-se o direito à integridade física e psíquica.[6]
Em decorrência de o tema ser maltratado e balizado, mormente em matéria previdenciária, o dano moral transformou-se numa ficção, sem eficácia e normatividade, não servindo, desse modo, para compensar a vítima (segurado) ou melhorar os serviços prestados pela Autarquia (INSS). O que dizer do caráter punitivo, digo, naqueles – raros – casos em que é reconhecido o dano moral, já que continuamos presos aos velhos princípios gerais do direito como, por exemplo, o enriquecimento sem causa, que reproduz a ideia de que a justiça deve dar ao pobre a pobreza, ao miserável a miséria, ao desgraçado a desgraça, porque isso é o que é deles, sendo, por isso, irrisório o quantum indenizatório.
Ademais, problemas de ordem prática (e.g.: elevado número de processos ou recursos possíveis, o baixo número de juízes, etc.), acompanhados de argumentos utilitaristas e consequencialistas, vem gerando uma verdadeira aversão ao dano moral. Nesse sentido, recente decisão da TNU: Os entes públicos atuam sob as balizas da estrita legalidade e operam, no caso do INSS, com grande volume de atendimentos, de modo que equívocos e divergências na interpretação do fato e do direito aplicável fazem parte do próprio funcionamento estatal, de sorte que, não havendo qualquer circunstância a tornar o caso especialmente dramático, não se deve considerar esses atos como geradores ipso facto de danos morais”.[7]
Os abusos fazem parte! Não?

Escrito por Diego Henrique Schuster
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Bah1: CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 9. ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2010.
Bah2: Os artigos que fundamentam a teoria objetiva ou do risco, no Código Civil Brasileiro, são: 931, 933, 936 a 938, além da cláusula geral do risco: art. 927, parágrafo único. Note-se que no art. 186 do CCB a expressão “voluntária” sugere consciência, ou seja, intenção ou culpa lato sensu.
Bah3: A teoria do risco administrativo, consagrada em sucessivos documentos constitucionais brasileiros desde a Carta Política de 1946, confere fundamento doutrinário à responsabilidade civil objetiva do Poder Público pelos danos a que os agentes públicos houverem dado causa, por ação ou por omissão. Essa concepção teórica, que informa o princípio constitucional da responsabilidade civil objetiva do Poder Público, faz emergir, da mera ocorrência de ato lesivo causado à vítima pelo Estado, o dever de indenizá-la pelo dano pessoal e/ou patrimonial sofrido, independentemente de caracterização de culpa dos agentes estatais ou de demonstração de falta do serviço público. - Os elementos que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade civil objetiva do Poder Público compreendem (a) a alteridade do dano, (b) a causalidade material entre o eventus damni e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público, (c) a oficialidade da atividade causal e lesiva, imputável a agente do Poder Público, que tenha, nessa condição funcional, incidido em conduta comissiva ou omissiva, independentemente da licitude, ou não, do comportamento funcional (RTJ 140/636) e (d) a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal (RTJ 55/503 - RTJ 71/99 - RTJ 91/377 - RTJ 99/1155 - RTJ 131/417). - O princípio da responsabilidade objetiva não se reveste de caráter absoluto, eis que admite o abrandamento e, até mesmo, a exclusão da própria responsabilidade civil do Estado, nas hipóteses excepcionais configuradoras de situações liberatórias - como o caso fortuito e a força maior - ou evidenciadoras de ocorrência de culpa atribuível à própria vítima (RDA 137/233 - RTJ 55/50). [...]. (RE 109615, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Primeira Turma, julgado em 28/05/1996, DJ 02-08-1996 PP-25785 EMENT VOL-01835-01 PP-00081)
Bah4: CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 9. ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2010.
Bah5: O art. 28 da LINDB assim dispõe: “O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”.  
Bah6: Os tipos expressos de direitos da personalidade na Constituição são: art. 5º, caput (direito à vida; direito à liberdade); 5º, V (direito à honra e direito à imagem, lesados por informação, que possibilita o direito à resposta ou direito de retificação, como diz a doutrina italiana, acumulável à indenização pecuniária por dano moral); art. 5º, IX (direito moral de autor, decorrente da liberdade de expressão da atividade intelectual, artística e científica (17)); art. 5º, X (direitos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem); art. 5º, XII (direito ao sigilo de correspondências e comunicações); art. 5º, IXVI (impedimento da pena de morte e da prisão perpétua); art. 5º, LIV (a privação da liberdade depende do devido processo legal); art. 5º, LX (restrição da publicidade processual, em razão da defesa da intimidade); art. 5º, LXXV (direito à honra, em decorrência de erro judiciário ou de excesso de prisão (18)); art. 199, § 4º (direito à integridade física, em virtude da proibição de transplante ilegal de órgãos, tecidos e substâncias humanas ou de sua comercialização); art. 225, § 1º, V (direito à vida, em virtude de produção, comercialização e emprego de técnicas, métodos e substâncias); art. 227, caput ( direito à vida, direito à integridade física e direito à liberdade das crianças e dos adolescentes); art. 227, § 6º (direito à identidade pessoal dos filhos, sem discriminação, havidos ou não da relação de casamento ou por adoção); art. 230 (direito à vida e à honra dos idosos).
Bah7: Nesse sentido: “Hoje em dia, parte-se de uma presunção que chega a ser absurda: se o sujeito conseguiu sobreviver durante esse período todo, o crédito não tem natureza alimentar (isto é, o valor que foi acumulado não teria cunho alimentar). No entanto, quantas vezes a pessoa, para sobreviver durante esse período, teve que fazer empréstimos, reduzir a sua alimentação, comprar remédios, submetendo-se a restrições, que são restrições ligadas à própria essência do ser humano? Portanto, esses valores, uma vez recuperados em momento futuro, ainda que acumulados, continuam a ter natureza alimentar, porque vão resgatar a deficiência nutricional que essa pessoa teve durante esse período. Irão ser usados para pagar aqueles que, num momento de dificuldade, a socorreram [...]. Portanto, a verba não tem natureza indenizatória. Na verdade, ela tem uma única natureza: serve ao resgate daquela humanidade que lhe foi suprimida durante um período. Portanto, continua a ter natureza alimentar nesse sentido de sobrevivência, de subsistência. Não é riqueza acumulada, tendo sido valor, denegado, muitas vezes, por falta de adequada diligência [...]. Ele é direito de personalidade e não direito patrimonial.” CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Interpretação do Direito da Segurança Social. In: ROCHA, Daniel Machado; SAVARIS, José Antonio (Coords.). Curso de Especialização em Direito Previdenciário. Curitiba: Juruá, 2005. p. 266-267.

Comentários

  1. importantes comentários que poderiam servir a muitas horas de salutar discussão! ótima leitura.

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