Justiça lotérica: apresentação de PPP x Laudo Técnico?



 Ninguém discute a literalidade do § 2º do art. 68 do Decreto 3.048/99 e §1º do art. 58 da Lei 8.213/91, no sentido de que a comprovação da efetiva exposição do segurado aos agentes nocivos será feita mediante formulário denominado perfil profissiográfico previdenciário, na forma estabelecida pelo Instituto Nacional do Seguro Social.
 Ou seja, o PPP é suficiente para fazer prova da especialidade da atividade insalubre, perigosa ou penosa e ponto. Nesse sentido é o que diz o próprio INSS, na IN 77/2015, no seu art. 258, inc. IV: para períodos laborados a partir de 1º de janeiro de 2004, o documento a ser apresentado deverá ser o PPP, conforme estabelecido por meio da Instrução Normativa INSS/DC nº 99, de 5 de dezembro de 2003, em cumprimento ao § 3º do art. 68 do RPS.
 No entanto, a literalidade dos artigos supramencionados não é garantia de nada, uma vez que, em terrae brasilis, não existem limites interpretativos, sendo a interpretação entendida como uma escolha que advém da consciência do julgador, isto é, "o direto é o que os juízes pensam que é", potencializando o subjetivismo e instituindo uma justiça cada vez mais lotérica[1].
 E por que estou comentando a questão da necessidade de o PPP vir acompanhado (ou não) de laudo técnico?
 Para ilustrar a tragédia: a Turma Suplementar da Seção Judiciária do Estado do Rio Grande do Sul deixou de reconhecer como especial a exposição do segurado ao agente físico ruído de 95 dB(A) sob o argumento de que o PPP não substitui os antigos formulários quando desacompanhado de laudo técnico ou não estiver assinado por médico ou engenheiro do trabalho.[2]
 Vamos lá: (a) nenhum campo do PPP exige assinatura de outra pessoa que não o representante legal da empresa; (b) o PPP é preenchido com base, exatamente, no laudo técnico; e (c) a lei exige tão-somente o fornecimento do PPP por parte do segurado.
 Mesmo que fosse possível optar por uma interpretação diferente da legal (contrária ao destinatário das normas previdenciárias), onde está o princípio da colaboração processual, na medida em que tanto as partes quanto o órgão judicial devem nele intervir desde a sua instauração até o último ato, agindo e interagindo entre si com boa-fé e lealdade?[3] Não teria a Turma Recursal o dever de colaborar com o segurado, que não tem como adivinhar o que pensa os julgadores e, por isso, não apresentou o laudo técnico, confiando apenas na lei? Ou seja, não poderia a Turma Recursal determinar a baixa do processo para oficiar a empresa a fornecer tal documento?[4]
 Se antes era questionada a normatividade do princípio da colaboração, hoje é negável, inúmeros dispositivos do novo Código têm como fundamento tal princípio. E aqui importa deixar claro: “[...] a colaboração no processo não implica colaboração entre as partes [...]. A colaboração no processo que é devida no Estado Constitucional é a colaboração do juiz para com as partes”, conforme art. 6º. Para Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero[5], o juiz tem os seguintes deveres para com os litigantes:
 a) de esclarecimento, no sentido de o juiz ter que elucidar as dúvidas que eventualmente tenha sobre a posição das partes, quer seja sobre os fatos narrados, quer seja sobre os pedidos formulados;
 b) de diálogo, que consiste em consultar as partes antes de decidir sobre qualquer questão, garantido, assim, o direito de influência e não surpresa;
 c) de prevenção, incumbe ao órgão jurisdicional prevenir as partes do perigo de seus pedidos sucumbirem pelo uso equivocado do processo; e
 d) de auxílio, para auxiliar as partes na “transposição de eventuais obstáculos que dificultem ou impeçam o exercício de direitos, o cumprimento de deveres ou o desempenho de ônus processuais”.
 O §1º do art. 927 determina que os juízes e tribunais observem o disposto no art. 10 do NCPC. Trata-se da adoção do contraditório como garantia de influência e não surpresa. Vejamos o que diz o artigo 10 de que fala o aludido parágrafo 1º: "O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício".
 Com tudo isso, o que precisa ficar claro é que uma interpretação hermeneuticamente adequada, com respeito aos princípios essenciais da disciplina e da realidade sobre a qual opera, aponta para a literalidade do texto, no sentido de ser suficiente o fornecimento do PPP, quer seja pelo fato de o INSS ter o poder-dever de fiscalizar o preenchimento dos formulários, quer seja pela reconhecida hipossuficiência - em termos informacionais - do segurado/beneficiário, o que não se confunde com positivismo, baseado fortemente numa aplicação mecânica das regras, como no caso do ruído acima de 90 decibéis![6]
 Ah, sim, na pior das hipóteses (se o STJ confirmar a necessidade de apresentação do laudo técnico), os princípios da colaboração e da não surpresa devem ser observados...
Escrito por Diego Henrique Schuster
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Bah1: "Justiça Lotérica" é uma expressão cunhada pelo jurista Lenio Luiz Streck. Justiça lotérica: ativismo judicial não é bom para a democracia. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/…/entrevista-lenio-streck-procurad…>. Acesso em: 08 fev. 2017.
Bah2: Agora é esperar alguém dizer que essa decisão justifica a formação da coisa julgada, por permitir a resolução definitiva da questão trazida ao crivo do judiciário, não sendo mais possível a rediscussão da matéria, por amor à segurança jurídica (se me entendem a ironia).
Bah3: OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O Formalismo-valorativo no confronto com o Formalismo excessivo. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/…/CAO_O_Formalismo-valorativo_no_confro…>. Acesso em 08 fev. 2017.
Bah4: Lembrei-me do que disse Lenio Luiz Streck ao comentar decisão do TST que rejeitou um agravo porque faltou pagar um centavo: “Justiça, para mim, é para solucionar problemas, não para criá-los. Justiça sem justiça. Justiça sem justeza. Justiça que vive para a própria realeza. Uma justiça narcísica que não olha para o mundo. Interpretar, mesmo, ao que parece, é só um detalhe nessa máquina autofágica”.
Bah5: MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. O novo processo civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 176-177.
Bah6: É de se ver que a questão do ruído não se limita a um exemplo acadêmico de positivismo exegético, ele é uma realidade na jurisprudência do STJ, como se nesse período os trabalhadores estivessem imunes aos efeitos nocivos do ruído acima de 85 decibéis. Se é verdade que não observar o ruído acima de 90 decibéis no período de 6.3.1997 a 18.11.2003 viola o Decreto n. 2.172/1997, não reconhecer a natureza especial de atividade exercida sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou integridade física viola a Constituição Federal (art. 201, § 1o), a Lei de Benefícios (art. 57) e a Súmula n. 198 do extinto TRF, e isso no mínimo.

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