A separação de “questões de fato” e “questões de direito” nos incidentes de uniformização
A jurisdição que nos
foi legada identifica-se com a mera função declaratória, própria dos estágios
finais do direito romano? Difícil dizer, porém, existem pontos cruciais em que
a iurisdictio do direito romano
clássico diverge da jurisdição recebida como herança, entre eles, o fato de que
no período do direito romano clássico as fontes serem várias, sendo que a
principal delas não era constituída por uma norma geral e abstrata, cuja
observância fosse, como agora, imposta pelo soberano.[1] Foi a partir de
Augusto que o direito romano passou a contar com um corpo de normas jurídicas,
cuja importância não parou de crescer até nossos dias. Ironicamente, “[...] o
direito do caso começa a ceder lugar à justiça da lei”.[2] Mas isso não depõe a
nosso favor, e sim contra. O Direito dos nossos tempos disputa, cada vez mais,
espaço com enunciados, questões de ordem, súmulas e escambau. O presente artigo
toma essa hipótese como pano de fundo para uma discussão maior, qual seja, a
equivocada separação de questões de fato e
questões de direito, praticada pelas
turmas de uniformização dos Juizados Especiais.
A necessidade de a divergência, para efeitos de
incidentes de uniformização dos Juizados Especiais, decorrer da interpretação
da lei em questão de direito material está intimamente relacionada com duas
características: a inviabilidade de exame de matéria de fato e a
impossibilidade de discussão de matéria processual. Tem-se que, para pacificar
o entendimento jurisprudencial acerca da melhor interpretação a ser conferida
ao texto legal, não interessam as questões fáticas debatidas ao longo do
processo, sob pena das premissas firmadas não servirem para casos futuros e, portanto,
nada ser uniformizado.[3]
É
engraçado ouvir que não se pode “discutir fatos”, mas apenas teses jurídicas,
enfim, a interpretação da lei. Cumpre perguntar: como interpretar o texto legal
desligado do caso concreto e de suas circunstâncias e/ou analisar se a decisão
(paradigma) é conforme ao direito, no sentido de velar pela uniformização da
jurisprudência? No plano da interpretação, é fácil perceber que, nesses termos,
o sentido do texto legal acaba “espatifando” na textura fechada da regra, como
se ela fosse feita para um caso específico (“uma realidade concreta”) e/ou
abarcasse todas as situações possíveis (“completa”), por se deixar de lado a
especificidade do caso concreto, sem falar nos princípios, que são chamados à
colocação tão somente para preencher as insuficiências das regras e/ou abrir
inúmeras possibilidades interpretativas. Nesse sentido, Lenio Streck[4] dizer:
Ora, o que parcela
considerável dos juristas não entende é que é
na ‘abstratalidade’ que os sentidos podem ser múltiplos, em face da
porosidade da regra. E o equívoco está nisso: os sentidos não podem ser
traduzidos em abstrato, pela simples razão de que não se pode cindir fato e
direito, interpretação e aplicação, que propicia o ingresso do mundo prático no
direito.
Esquece-se
que o direito será “sempre um ‘direito concreto’; um direito misturado com
fatos”, pois os fatos e circunstâncias da causa “jamais estarão contidas na
norma”.[5] Uma mesma lei vigente pode apontar para sentidos diametralmente
opostos, dependendo, exatamente, do contexto. Lenio Streck[6] sempre brinca com
o exemplo: “[...] uma lei que proibia o uso de topless na praia... Na praia de Ipanema, o
enunciado tinha um sentido; já na praia do Pinho, onde se praticava o nudismo,
o sentido era absolutamente inverso”.
Por óbvio, a norma é o resultado da interpretação do texto no caso
concreto, e não da tradução literal do texto (do português para o juridiquês). Por
tudo isso, não se pode olvidar:
[...] ao
considerar-se a questão-de-fato está implicitamente presente e relevante a
questão-de-direito; ao considerar-se a questão-de-direito não pode prescindir-se
da solidária influência da questão-de-fato. Ou, numa formulação bem mais
expressiva: para dizer a verdade o ‘puro fato’ e o ‘puro direito’ não se
encontram nunca na vida jurídica: o fato não tem existência senão a partir do
momento em que se torna matéria de aplicação do direito, o direito não tem
interesse senão no momento em que se trata de aplicar ao fato; pelo que, quando
o jurista pensa o fato, pensa-o como matéria do direito, quando pensa o
direito, pensa-o como forma destinada ao fato.[7]
É
compreensível, portanto, imaginar o porquê de as turmas de uniformização não
questionarem o resultado da atividade probatória ou, até mesmo, sua abusiva
supressão, uma vez que, com a eliminação da hermenêutica, não se busca
compreender o “sentido” que o “fato” adquiriu no interior de cada lide, mas
apenas explicar a interpretação escolhida para ser o lugar da verdade. Aliás, é
comum a alegação de que a uniformização implica “reexame da prova”, para negar
admissibilidade aos incidentes de uniformização – quase sempre uma decisão
padrão. Acontece que a prova realizada em juízo acompanha as afirmações
jurídicas extraídas de fatos essenciais[8] sem os quais não existe “caso”,
tampouco direito. O exame de uma questão de direito passa, necessariamente,
pela “qualificação” dos fatos, uma vez que estes devem ser considerados para
fazer norma frente às características do caso concreto, enquanto compreensão
hermenêutica da norma.[9] Nessa perspectiva, Ovídio A. Baptista da Silva
conclui: “Certamente é uma verdade óbvia que a qualificação dos fatos já é
operação jurídica; cuida-se de categorizá-los através de uma perspectiva que
não é mais puramente fática, e sim jurídica”.
Ovídio,
na mesma linha de Castanheira Neves, “denuncia” a equivocada distinção entre
“fato” e “direito”, além de defender que é “legítimo que os tribunais dos
recursos extraordinários revisem a ‘qualificação’ da prova, de modo a
determinar se, da prova existente – respeitada a sua ‘completude’ –, fora
adequada a conclusão extraída pela decisão recorrida”, sendo, por isso,
possível a reforma de uma decisão que ignorara os indícios e circunstâncias nos
autos,[10] como fez o Ministro Aldir Passarinho Júnior, no julgamento do REsp
292.543-PA:
Não se está, aqui,
examinando prova, porém constatando que a sentença singular nela penetrou
profunda e trabalhosamente, para entender pela improcedência da ação, enquanto
o Tribunal, data vênia perfunctoriamente, sem revelar quais os elementos
contrários tirados do quadro fático, chegou a posição inversa, como dito,
apenas dizendo que daí emergia prova do relacionamento amoroso entre a genitora
contemporâneo à concepção. Há, nessas circunstâncias, omissão e contradição no
acórdão, que devem ser expungidas, sob pena de cerceamento da defesa dos réus
(Quarta Turma do STJ recurso julgado em 5.12.2002, D. J. 08.09.2003, RSTJ vol.
181, p. 298).
Assim, as Turmas de
Uniformização não teriam apenas competência para examinar a qualificação dos
fatos (fatos estes fornecidos pelo acórdão recorrido), nela compreendida a
apreciação da prova, mas de corrigir erros de fato, isto é, situações onde o
julgador deixa de atentar para o teor de determinado documento ou admite como verdadeiro um fato inexistente. Nesse sentido, ganha destaque a tese do erro evidente, que foi aplicada à unanimidade
quando do julgamento do incidente de uniformização nacional PU
0029591-96.2006.4.01.3600, Rel. Juiz Federal José Antônio Savaris, j. em
02.12.2010.[11] Trata-se, pois, de “analisar a prova para verificar o acerto de
sua valoração (de sua qualificação) [...], ainda que mediante a nova
qualificação jurídica, chegasse a uma nova conclusão sobre como os fatos teria
ocorrido”.[12] A prova precisa ser pensada como argumentação (“como argumento para o convencimento judicial”), enfim,
como objeto sobre o qual a controvérsia judicial é construída.[13]
Sobre a similitude
fático-jurídica, outro requisito para a pacificação da melhor interpretação a
ser conferida ao texto legal, há que se ponderar a necessidade de o julgador
não olhar apenas para os fatos em si mesmos considerados, mas discernir os
princípios que hajam norteado as decisões, mesmo quando o próprio julgador
pensa estar aplicando, exclusivamente, uma regra. Estes princípios comandam não
apenas as regras, mas permitem um holismo interpretativo, constituído a partir
do círculo hermenêutico, no sentido de integrar as decisões ao conjunto do
direito. A coerência prevista no art. 926 do novo CPC assegura igualdade na
análise observativa dos casos quando os princípios que fundamentam a regra são os
mesmos. Isso porque a aplicação dos princípios “vêm a propiciar uma nova teoria
(atrás de cada regra há, agora, um princípio que não a deixar se ‘desvencilhar’
do mundo prático)”.[14]
Fica fácil perceber a similitude
principiológica nas discussões sobre a
ausência de previsão da atividade e/ou do agente nocivo nas listas dos decretos
previdenciários, sobre a (im)possibilidade de concessão da aposentadoria pela
via da penosidade ou periculosidade. Ou seja, não importa a
atividade desempenhada pelo segurado (se motorista, eletricista, etc.) ou o
agente nocivo ao qual ele estava sujeito no seu trabalho, mas, e isso sim, a
prova das condições prejudiciais à saúde e/ou à integridade física/mental do
trabalhador, como orienta a Súmula 198 do ex-TFR, que nada mais é – e por isso
é muito – do que uma interpretação hermeneuticamente adequada do art. 201, §
1º, da CF/88, alicerçado nos princípios da igualdade e da proteção social. Digo
isso porque já vi a TRU negar provimento a um incidente sob o argumento de que
no aresto recorrido se discutia a periculosidade da atividade do motorista,
enquanto que a decisão versada no paradigma tinha como alvo o agente penosidade,
em ambos os casos havia nos autos prova da periculosidade e penosidade.
Com isso não se pretende
fazer a crítica por fazer ou erigir vozes contra as Turmas de Uniformização,
mas fomentar o debate e contribuir para a efetividade do processo e a
concretização dos direitos fundamentais-sociais-previdenciários. A letra da lei é como um raio de luz pura que somente
se colore ao atravessar a turva atmosfera dos fatos e princípios. Com
efeito, o trabalho das Turmas de Uniformização não se limita a interpretar o
texto legal, como se a realidade estivesse nua! Assim, uma (re)leitura do
artigo 14 da Lei 10.259/01 sugere que
a expressão questão de direito, também presente no novo CPC, dever ser
lida não como questões desmunidas
de questões de fato, mas sim causas que não demandem dilação probatória, em especial de natureza testemunhal
e/ou pericial[15]. Os reflexos da observação dos princípios
que direcionam a ligação entre os fenômenos fático-jurídicos vão muito além da
similitude fático-jurídica, por revelarem uma verdadeira preocupação com a
igualdade. Ainda, todas as garantias
revestidas de índole processual devem ser observadas, sob pena de ferir-se a
própria filosofia constitucional, mas esse é assunto para outro encontro.
Bah1:
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. A
jurisdictio romana e a jurisdição moderna. Disponível em:
<http://www.baptistadasilva.com.br/artigos013.htm>. Acesso em: 02 out.
2009.
Bah2:
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. A
jurisdictio romana e a jurisdição moderna. Disponível em:
<http://www.baptistadasilva.com.br/artigos013.htm>. Acesso em: 02 out.
2009.
Bah3:
A Súmula 42 da TNU (“Não se conhece de incidente de uniformização que implique reexame de
matéria de fato”).
Bah4:
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto –
decido conforme a minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2010. p. 68.
Bah5:
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. A
jurisdictio romana e a jurisdição moderna. Disponível em:
<http://www.baptistadasilva.com.br/artigos013.htm>. Acesso em: 02 out.
2009.
Bah6:
STRECK, Lenio Luiz. Conhecimento fastfood, Homer Simpson e o Direito. Revista Consultor Jurídico, São Paulo,
24 mai. 2012. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-mai-24/senso-incomum-conhecimento-fast-food-homer-simpson-direito>.
Acesso em: 15 jan. 2016.
Bah7:
CASTANHEIRA NEVES, António. Questão-de-facto
– questão-de-direito ou o problema metodológico da juridicidade (ensaio de
uma reposição crítica). Coimbra: Livraria Almedina, 1967. p. 55-56.
Bah8:
RIBEIRO, Darci Guimarães. Análise epistemológica dos limites objetivos da coisa
julgada. In: STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo; ENGELMANN, Wilson
(Org.). Constituição, sistemas sociais e
hermenêutica: anuário do Programa de Pós-graduação em Direito da UNISINOS:
mestrado e doutorado: n. 9. Porto Alegre: Liv. do Advogado; São Leopoldo:
UNISINOS, 2012. p. 87.
Bah9:
Segundo Lenio Streck: “[...] para hermenêutica, não faz sentido procurarmos
determinar, de maneira abstrata, o sentido das palavras e dos conceitos, como
fazem as posturas analíticas de cariz semântico, mas é preciso se colocar na
condição concreto concreta daquele que compreende – o ser humano – para o
compreendido possa ser devidamente explicitado. E esse é o ponto fulcral!”
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme a minha consciência? Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 37.
Bah10:
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. A fundamentação das sentenças como garantia
constitucional. Revista do Instituto de
Hermenêutica Jurídica: RIHJ. Porto Alegre, v. 1, n. 4, p. 344, 2006.
Bah11:
Na espécie foi denegado direito ao benefício
previdenciário de auxílio-doença nada obstante comprovada incapacidade para o
trabalho, porque a turma recursal entendeu inexistente a qualidade de segurado
(questão que até então era incontroversa) e recusou-se a reconhecer o fato
ainda quando demonstrada cabalmente sua ocorrência mediante apresentação do
CNIS, em sede de embargos declaratórios.
Bah12:
SAVARIS, José Antônio; XAVIER, Flavia da Silva. Manual dos recursos nos
juizados especiais federais. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2012. p. 197-198. Essa é a conclusão que chegou José Antônio Savaris sobre decisão do STJ,
que, compulsando os autos, entendeu se encontrar presente o início de prova
material do exercício de atividade rural exigido pela legislação
previdenciária. AgRg. No REsp. 661605/CE – Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa – 6ª
T. – j. em 07.12.2004 – DJ 17.12.2004.
Bah13:
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. A fundamentação das sentenças como garantia
constitucional. Revista do Instituto de
Hermenêutica Jurídica: RIHJ. Porto Alegre, v. 1, n. 4, p. 330, 2006.
Bah14:
STRECK, Lenio Luiz. A resposta hermenêutica à discricionariedade positivista em
tempos de póspositivismo. In: DIMOULIS, Dimitri; DUARTE, Écio Oto (Coord.). Teoria do direito neoconstitucional:
superação ou reconstrução do positivismo jurídico? São Paulo: Método, 2008. p.
288-289.
Bah15:
STRECK, Lenio Luiz. O novo CPC: a derrota do livre convencimento e a adoção do
integracionismo dworkiniano. In: BOECKEL, Fabrício Dani de; ROSA, Karin Regina
Rick; SCARPARO, Eduardo (Orgs.). Estudos
sobre o novo Código de Processo Civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2015. p. 161-162.
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