O QUE É FAZER A COISA CERTA NO DIREITO PREVIDENCIÁRIO?
O livro que empresta título ao nosso
artigo é do Professor Lenio Streck, “O que é fazer a coisa certa no direito”
(uma adaptação!). Servindo de inspiração para grande parte das reflexões,
tentarei responder para onde aponta a coisa certa em matéria previdenciária.
Vou dividir o texto em três frentes.
No Direito Previdenciário, a tradicional
fórmula civilista, que tem como orientação os princípios de equidade e justiça
comutativa, é por demais simples diante da relevância do bem da vida em
questão, o que enseja a necessidade de substituição de tais princípios por
outros. Não estão em condições de igualdade, segurado, INSS e empresa,
sobretudo em matéria de provas – assim como numa relação de consumo e/ou
trabalhista. Aliás, existe um conflito de interesses em jogo, o que faz muitas
empresas disponibilizar as melhores informações sobre o ambiente de trabalho
(existem razões tributárias e trabalhistas razoáveis para isso); enquanto o
INSS busca se beneficiar da própria torpeza, acenando com falhas nos
formulários no curso da ação previdenciária. Por outro lado, o trabalhador,
muitas vezes, deixa de questionar a empresa com receio de perder o emprego ou
de não conseguir nova colocação no mercado de trabalho por estar litigando
contra ex-empregador.
Deve ficar muito claro, a responsabilidade
pela emissão do formulário PPP, na forma exigida pela legislação
previdenciária, é da empresa, conforme art. 58, 1º, da Lei 8.213/1991. Por
outro lado, é função do INSS fiscalizar o preenchimento correto dos documentos
entregues ao segurado para fins previdenciários, conforme artigo 125-A da lei
8.213/91. Tal dispositivo estabelece a competência do INSS para realizar
através dos seus agentes, quando assim designados, as medidas necessárias para
a “verificação do atendimento das obrigações não tributárias impostas pela
legislação previdenciária”. A Lei nº
8.213/91, a chamada Lei de Benefícios, é o referencial normativo para saber
quais são estas obrigações. Enfim, cabe ao INSS exercer seu poder de polícia e
fiscalizar os respectivos empregadores, até mesmo como forma de garantir a
arrecadação adequada das contribuições e da condição de vulnerabilidade do
empregado na relação com o empregador. O sequestro dessa diferença poderá gerar
significativo déficit protetivo, sobretudo para o segurado/beneficiário.
Tal pré-compreensão exige do julgador uma postura diferenciada. A justiça social é, exatamente, o equilíbrio de forças. No processo previdenciário, o juiz deverá restabelecer o equilíbrio das forças, colocando limites à força do INSS e da empresa, que são responsáveis pela produção de um documento que, se bom para o segurado, servirá de prova contra eles. É inútil afirmar que o ônus da prova é do segurado, ignorando as evidências sérias do labor especial, com a recusa aos laudos aplicados por semelhança (às vezes, resultantes de perícias na própria empresa) e o indeferimento da prova pericial. É inútil concordar que o formulário faz prova da especialidade de determinando período, querendo desacreditar os períodos para os quais o mesmo documento não comprova o labor especial (o que beneficia o segurado numa coisa não exclui outra). É inútil reconhecer a exposição a agentes nocivos, mas afastar o tempo especial a partir da mera indicação de EPI é eficaz no PPP. E, só para finalizar: É inútil tratar a coisa julgada como uma sanção ao descumprimento do ônus de alegar todos os agentes nocivos na primeira ação, mas não permitir a discussão, com pleno contraditório, sobre os riscos inerentes à função e/ou ao meio ambiente de trabalho (ou seja, não se consegue estabelecer o contraditório sobre as informações estampadas no PPP, que, não raras às vezes, omite determinados agentes nocivos). Tenta-se desacreditar tudo isso em nome do Direito.
O segundo aspecto diz respeito ao papel
do julgador no interior de um Estado Democrático de Direito. O julgador não
pode impor sua vontade (consciência) aos desafortunados do INSS, vale dizer: a
partir de uma linguagem privada. Para ficar só no exemplo: inconformado com o
fato de um jovem de 17 não estar trabalhando, o julgador atribuiu a ele (membro da família) o valor ficto de
um salário mínimo, detalhe: para negar o amparo assistencial com fundamento na renda per
capta superior a ¼. Assim, benéficos rurais são negados sob os mais diferentes pretextos,
desde a massa corporal (sim, o segurado não pode ser gordo!), passando pela
ideia de que ele precisa ser miserável (baixa renda), até o argumento de que a
família produziu demais (ninguém sabe a quantidade ideal, como se ela existisse!). Normalmente, tais absurdos são justificados em nome de
regras de experiência ou no princípio da verdade real (álibis retóricos)! Tem também aqueles que apostam na "essência" das coisas e/ou falam em "vontade do legislador" (frase feita para se dizer qualquer coisa como, por exemplo, "vocação rural"). O que
as decisões têm em comum? Juízes céticos, que não acreditam no Direito. A
subjetividade dos julgadores está se sobrepondo àquilo que deveria ser
interpretado, com a criação de critérios que não estão na lei (restritivos).
Sobre o magistrado que transforma a
decisão em mera escolha, Lenio Streck pondera: “Que segurança tem o
jurisdicionado quando sabe que a decisão é dada conforme a consciência
individual do decisor? Existe linguagem privada que pode se sobrepor à linguagem
pública, para lembrar Wittgenstein, em suas Investigações Filosóficas?”[1]
Por fim, e talvez o mais importante, a
coisa certa pode estar na dúvida – e esta deve ser computada a favor do
segurado. A dúvida deverá ser sempre sopesada em favor do segurado.
Na prática, a dúvida poderá fundamentar a
aplicação do princípio in dubio pro misero, com o reconhecimento do tempo de
serviço rural remoto. A dúvida, também no sentido da incerteza científica, poderá
justificar a aplicação do princípio da prevenção/precaução. Não sem razão, o
Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Tema 555, deixou registrado que, em
caso de divergência ou dúvida acerca da real eficácia do Equipamento de
Proteção Individual, “a premissa a nortear a Administração e o Judiciário é
pelo reconhecimento do direito ao benefício da aposentadoria especial. Isto
porque o uso de EPI, no caso concreto, pode não se afigurar suficiente para
descaracterizar completamente a relação nociva a que o empregado se submete”.
A dúvida é capaz de justificar a
necessidade-utilidade da prova pericial, quando presente indícios do labor
especial. No Tema Repetitivo 1083, o Superior Tribunal de justiça consignou, de
maneira expressa, que a prova pericial objetiva a proteção do segurado, “sem
imposição de transferência de ônus pela ausência de indicação do nível de
exposição ao agente nocivo no formulário PPP ou no Laudo Técnico de Condições
Ambientais - LTCAT, visto que não impõe a este a obrigatoriedade de
providenciar a correção no formulário, mas permite que a atividade especial
seja demonstrada nos próprios autos da ação previdenciária" (EDcl no REsp
n. 1.886.795/RS, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Seção, julgado em
27/4/2022, DJe de 18/5/2022).
No reconhecimento do tempo de serviço
especial, portanto, fazer a coisa certa não se relaciona bem com prejudicar o
segurado, em razão de inconsistências no formulário PPP e/ou com fundamento na ausência
de dados que poderiam ser supridos pela prova pericial, por exemplo. Tomar o
formulário PPP (produzido fora do processo) como prova absoluta da não exposição a
agentes nocivos é escolher no que acreditar, e não buscar/verificar a real
situação do labor. É impossível, ao mesmo tempo, contentar-se com o PPP, como
único caminho para se atestar o labor especial, e pretender trabalhar com o
caso concreto. Trata-se de caminhos que não se dão por acaso, pois, no caso
concreto, pode ser absolutamente falsa a presunção de que o formulário reproduz
com exatidão a realidade labor vivenciada pelo trabalhador.
______________________________________
Bah1: STRECK, Lenio Luiz.
O que é fazer a coisa certa. São Paulo: Editora Dialética, 2023. p. 158.
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