A EC 103/2019 E O FIM DA APOSENTADORIA POR IDADE MISTA(?)

 

Parem tudo. O judiciário decretou o fim da aposentadoria por idade mista/híbrida! Sim, duas decisões, em menos de uma semana, tomaram-me de assalto.

Antes de concordar com o fim do mundo, vale lembrar que a Lei 11.718/2008 foi criada, justamente, para proteger o trabalhador rural que não consegue comprovar o efetivo exercício de atividade rural em relação aos meses imediatamente anteriores ao requerimento do benefício ou ao mês em que cumpriu o requisito etário, como se verifica no art. 48 da Lei de Benefícios:

[...].  A aposentadoria por idade será devida ao segurado que, cumprida a carência exigida nesta Lei, completar 65 (sessenta e cinco) anos de idade, se homem, e 60 (sessenta), se mulher. (Redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995)

§ 1o Os limites fixados no caput são reduzidos para sessenta e cinqüenta e cinco anos no caso de trabalhadores rurais, respectivamente homens e mulheres, referidos na alínea a do inciso I, na alínea g do inciso V e nos incisos VI e VII do art. 11. (Redação dada pela Lei nº 9.876, de 1999)

§ 2o Para os efeitos do disposto no § 1o deste artigo, o trabalhador rural deve comprovar o efetivo exercício de atividade rural, ainda que de forma descontínua, no período imediatamente anterior ao requerimento do benefício, por tempo igual ao número de meses de contribuição correspondente à carência do benefício pretendido, computado o período a que se referem os incisos III a VIII do § 9o do art. 11 desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 11,718, de 2008)

§ 3o Os trabalhadores rurais de que trata o § 1o deste artigo que não atendam ao disposto no § 2o deste artigo, mas que satisfaçam essa condição, se forem considerados períodos de contribuição sob outras categorias do segurado, farão jus ao benefício ao completarem 65 (sessenta e cinco) anos de idade, se homem, e 60 (sessenta) anos, se mulher. (Incluído pela Lei nº 11,718, de 2008)

A lei nos permitiu concluir que foi criada uma nova modalidade de aposentadoria por idade, que não é nem totalmente rural e nem totalmente urbana. Dessa forma, a fim de evitar prejuízo ao trabalhador rural, poderá ele contar, para fins de carência, períodos de atividade rural e de atividade urbana. Em contrapartida, ele deverá observar a idade mínima da aposentadoria por idade urbana.

Tudo isso, até aqui, parece bastante tranquilo. O Superior Tribunal de Justiça aceitou amplamente a tese da aposentadoria mista, inclusive com possibilidade de “averbação livre do tempo urbano”, isto é, sem limitação quantitativa de meses de atividade urbana x rural e sem limitação do período de exercício desta atividade em relação à DER ou a data da satisfação dos requisitos concessórios (Tema Repetitivo 1.007).

Dito isto, cumpre observar que, em relação à aposentadoria por idade rural, nada mudou com a edição da EC 103/2019. Tanto é assim que, no relatório da PEC 6/2019, garantiu-se, expressamente, a manutenção da aposentadoria por idade rural:

Na redação original da PEC, vedava-se, por exemplo, a contagem desse tempo para concessão do que a doutrina chama aposentadoria híbrida, que combina tempo de atividade rural com atividade urbana, o que representaria enorme prejuízo para os que trabalharam muito tempo no campo e acabaram migrando para a cidade. Note-se que, na aposentadoria híbrida, o trabalhador não se aposenta com a idade prevista para o trabalhador rural, mas na idade do trabalhador urbano. Contudo, precisa ter assegurado o direito à contagem do seu tempo de atividade rural.[1]

Mas o que dizem as decisões judiciais? Na decisão proferida pela 9ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região:

Somados os períodos de trabalho rural e trabalho urbano, bem como os períodos de contribuição, tem-se o total de 20 (vinte) anos, 4 (quatro) meses e 28 (vinte e oito) dias.

Todavia, verifica-se que o autor implementou o requisito etário (65 anos) em 20/05/2020, data posterior à entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019.

Devem ser observadas as seguintes disposições da Emenda Constitucional nº 103/2019:

Art. 18. O segurado de que trata o inciso I do § 7º do art. 201 da Constituição Federal filiado ao Regime Geral de Previdência Social até a data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional poderá aposentar-se quando preencher, cumulativamente, os seguintes requisitos:

I - 60 (sessenta) anos de idade, se mulher, e 65 (sessenta e cinco) anos de idade, se homem; e

II - 15 (quinze) anos de contribuição, para ambos os sexos.

[...]

No caso, constata-se que o autor não conta com "15 (quinze) anos de contribuição".

Conforme mencionado, na Data de Entrada do Requerimento (21/08/2020), o autor contava com períodos de trabalho urbano e períodos de contribuição que, somados, correspondem a 7 (sete) anos, 1 (um) mês e 13 (treze) dias.

Assim, o autor não preenche os requisitos para a obtenção de aposentadoria híbrida por idade.[2]

A outra decisão foi proferida no âmbito dos Juizados Especiais Federais e segue a mesma linha (não vou citar). Com efeito, as decisões aplicam, pura e simplesmente, as regras da aposentadoria por idade urbana, exigindo 15 (quinze) anos de contribuição, conforme art. 18 da EC 103/2019. As decisões sequer mencionam a aposentadoria por idade rural como ponto de partida (ou retorno) para uma análise da aposentadoria por idade híbrida/mista. Neste nível, o tempo de serviço rural é completamente desprezado!

Nem mesmo o INSS adota tal entendimento na via administrativa, como se verifica no site:

Caso a pessoa não comprove o tempo mínimo de trabalho necessário como segurado especial, poderá solicitar o benefício com a mesma idade dos trabalhadores urbanos, somando o tempo de trabalho como segurado especial (rural) ao tempo de trabalho urbano. Esse benefício é conhecido como aposentadoria híbrida, em virtude de ser concedido com base no cômputo dos períodos de contribuição sob outras categorias além da rural, sem a redução da idade obtida no benefício rural.[3]

O julgamento supramencionado foi proferido com aplicação da técnica do colegiado estendido, art. 942 do CPC, restando vencido o Eminente Desembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz, que, no seu voto-vista, considerou a aposentadoria por idade mista:

Há de se considerar, ainda, que a denominada aposentadoria mista ou híbrida, por exigir que o segurado complete 65 (sessenta e cinco) anos de idade, se homem, e 60 (sessenta) anos, se mulher, é, em última análise, uma aposentadoria de natureza assemelhada à urbana. Assim, para fins de definição de regime, deve ser equiparada à aposentadoria urbana. Com efeito, a Constituição Federal, em seu artigo 201, § 7º, II, prevê a redução do requisito etário apenas para os trabalhadores rurais. Exigidos 65 (sessenta e cinco) anos de idade, se homem, e 60 (sessenta) anos, se mulher, a aposentadoria mista, pode-se dizer, constitui praticamente subespécie da aposentadoria urbana, ainda que com possibilidade de agregação de tempo rural sem qualquer restrição.

Esta constatação (da similaridade da denominada aposentadoria mista ou híbrida com a aposentadoria por idade urbana) prejudica, registre-se, eventual discussão acerca da descontinuidade do tempo (rural e urbano), haja vista os fundamentos acima expostos. Como prejudica, igualmente, qualquer questionamento que se pretenda fazer quanto ao fato de não estar o segurado eventualmente desempenhando atividade rural ao implementar o requisito etário.

A partir de 13/11/2019, com a entrada em vigor da EC 103 /2019, a aposentadoria por idade urbana passou a exigir a idade de  65  anos, se homem, e 62, se mulher, e isso reflete na única mudança em relação à aposentadoria por idade híbrida. No mais, ficam valendo as mesmas regras, ou seja, na aposentadoria por idade mista, o tempo de atividade rural deve ser computado para fins de carência/tempo de contribuição. 

Não há como se estabelecer um grau zero de sentido. Em consulta à jurisprudência, verifica-se que esse entendimento não é mais aplicado: TRF4, AC 5006666-84.2022.4.04.9999, NONA TURMA, Relator SEBASTIÃO OGÊ MUNIZ, juntado aos autos em 13/03/2024; para citar apenas esta.

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Bah1: Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1764374&filename=PRL+1+PEC00619+%3D%3E+PEC+6/2019>. Acesso em 15 ago. 2024.

Bah2: TRF4, AC 5002526-70.2023.4.04.9999, NONA TURMA, Relator SEBASTIÃO OGÊ MUNIZ, juntado aos autos em 21/09/2023.

Bah2: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS. Disponível em: <https://www.gov.br/.../aposentadoria-por-idade-do...>. Acesso em: 15 ago. 2024.


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