REVISÃO DA VIDA TODA NO CURSO DA AÇÃO JUDICIAL

 

Não postulada a inclusão de todos os salários (“vida toda”) desde a petição inicial, coloca-se a seguinte questão: é possível pedir isso no curso do processo? Apesar das objeções, o que se defende, em homenagem aos princípios da celeridade, da instrumentalidade e da economia processual, é, sim, tal possibilidade.

Antes de qualquer outra análise, contudo, cumpre lembrar que, caso o advogado tenha feito tal pedido desde a exordial, se a decisão de improcedência transitar em julgado depois da decisão do STF será possível a correção em sede de cumprimento de sentença, conforme norma reproduzida no art. 525, § 1º, III, e §§ 12 e 14, e art. 535, III, e § 5º, do CPC/2015. Não pretendo, por ora, falar daqueles casos em que a decisão de improcedência transitou antes da decisão paradigma.

Ainda em sede de cumprimento de sentença, tem-se autorizado a retificação [1] e, até mesmo, a inclusão de salários de contribuição. Para confortar de demonstrar a viabilidade de tal entendimento:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. PREVIDENCIÁRIO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. INCLUSÃO NO CÁLCULO DE LIQUIDAÇÃO DE SALÁRIOS-DE-CONTRIBUIÇÃO OMITIDOS NO CNIS. POSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DA COISA JULGADA. 1. Se na fase do cumprimento da sentença, o INSS louvou-se em informações equivocadas, registradas no CNIS (omissão dos salários-de-contribuição recolhidos pela Fundação da Universidade Federal do Paraná - Hospital de Clínicas da UFPR), não há nenhum impedimento para a retificação na própria fase de sentença, como permite o disposto no § 1º do art. 19 do Regulamento aprovado pelo Decreto nº. 3.048/99, dada pelo Decreto 4.079/2002. 2. Conspira contra a celeridade processual cobrir com o imantamento da autoridade da coisa julgada, aprisionando-se aos seus limites objetivos uma questão acessória e ainda passível de retificação. No julgamento da AC nº 5040049-50.2011.404.7000/PR, esta 6ª Turma, Rel. Juiz Federal João Batista Pinto Silveira, por unanimidade (D.E. 20/11/15), questão essencialmente idêntica foi solvida no sentido de que 'na fase de execução de sentença, controvérsia acerca dos valores dos salários-de-contribuição a serem considerados no cálculo do salário-de-benefício pode ela ser resolvida em sede de embargos à execução', improcedento 'os argumentos no sentido de que, para discuti-los, seria necessário que o segurado promovesse nova ação, ou intentar, administrativamente, a retificação dos dados do CNIS.' Restou definido que, 'comprovada a correção dos salários-de-contribuição utilizados pela parte exequente, no cálculo da renda mensal inicial do benefício a ser implantado, inclusive com base em CTPS regular e elementos fornecidos pelo empregador, devem eles prevalecer. (TRF4, AG 5006784-60.2017.404.0000, SEXTA TURMA, Relator (AUXÍLIO VÂNIA) HERMES S DA CONCEIÇÃO JR, juntado aos autos em 24/03/2017)

O mesmo vale para a tese fixada no Tema 1070/STJ, que autoriza a soma de todas as contribuições previdenciárias vertidas pelo segurado ao sistema, respeitado o teto previdenciário.

Já no curso do processo, temos exemplos de concessão de benefícios sequer cogitados ao tempo da propositura da ação. Para descobrir os traços gerais desses processos, retoma-se aqui a tese do fato superveniente, caminhando-se, em seguida, para além de sua aplicação ordinária. Na perspectiva da tese do fato superveniente, pois, admite-se a consideração de contribuições vertidas no curso da ação, o tempo de serviço especial que ultrapassa a DER, enfim, questões que influenciam no reconhecimento do benefício mais vantajoso para o segurado (melhor benefício), vale dizer, é possível o reconhecimento de um benefício diverso, como o de uma aposentadoria por pontos (85/95), mesmo que inexistente ao tempo em que ajuizada a ação judicial[2].

O que mais perto interessa à problemática é perceber - agora de forma mais nítida - que nas ações previdenciárias compreende-se o pedido como sendo o do melhor benefício a que o segurado ou beneficiário tem direito. Aqui ganha importância, igualmente, a questão da fungibilidade dos pedidos.

De modo geral, o pedido da parte é congruente ao direito material (ao verbo que a traduz) e à vontade manifestada. Importante lembrar que, na via administrativa, o INSS deve, durante a análise para concessão do benefício, verificar qual o benefício com Renda Mensal Inicial (RMI) mais vantajosa. Aqui se poderia citar, apenas de passagem, os arts. 204, 659, VI, e 690, da IN/INSS 77/2015, além do art. 176-E do RPS (com redação emprestada pelo Dec. 10.410/2020).

No curso do processo, essa noção subjaz ao art. 322, § 2º, do CPC, no sentido de uma interpretação sistemática do “conjunto da postulação”, juntamente com a causa de pedir – por meio dos fatos e dos fundamentos. Em alguns casos, deve prevalecer o objeto mediato do pedido, ou seja, o bem ou resultado prático que se pretende obter por meio da ação previdenciária. Deve o julgador, portanto, perseguir a “intenção” da parte, para além do sentido literal de interpretação.[3]

Segundo Daniela Boito Maurmann Hidalgo[4]:

Trazer o mundo prático ao processo significa vincular o juiz à realização do direito material e, se restar evidenciado que o interesse da parte, ainda que seu pedido não esteja corretamente deduzido, é realizar a ação de direito material, de modo a obter a realização de seu direito no caso concreto, não estará o juiz autorizado a deferir-lhe menos do que isso.

Não é de se esperar que isso seja suficiente, uma discussão com tantas objeções não se refere mais à qualidade das normas, mas a subjetividade de alguns juízes, o que torna a questão ainda mais problemática. Porém, se não se quer cair na cilada de apostar na boa vontade dos juízes precisamos ser técnicos.

Seria precipitado fundamentar a possibilidade de inclusão de todos os salários de contribuição exclusivamente com base nos princípios supramencionados. Então, cumpre anotar que, dentro do processo é possível a ampliação da causa de pedir. O objeto da decisão é sempre maior que o objeto do processo (como sinônimo de pretensão processual)[5], sendo que o novo regime de formação dinâmica da coisa julgada resolve o problema, alcançando (a coisa julgada) também aquelas questões prejudiciais levantadas ao longo do processo, enfim, todo o objeto do debate via contraditório.[6]

Se eu posso ampliar a causa de pedir, isso resolve o problema? Em sendo possível ampliar os limites objetivos da coisa julgada, isso significa que agora ela poderá alcançar questões prejudiciais, isto é, levantadas ao longo do processo (CPC, art. 503, §§ 1º, incs. I e II, e 2º). Sendo assim, coloca-se a seguinte alternativa: não seria suficiente a intimação do INSS sobre o ponto? Segundo Ricardo Alexandre da Silva, “[...] basta que determinado ponto jurídico seja impugnado para se converter em questão, autorizando a ampliação de limites objetivos para os temas prejudiciais expressamente decididos, desde que cumpridos os demais requisitos elencados no CPC”.[7]

Sendo possível a questão prejudicial ser comprovada documentalmente (prova pré-constituída), o art. 503, § 2º, do CPC não é obstáculo à ampliação dos limites objetivos da coisa julgada. Nenhum prejuízo haverá para o contraditório com admissão dessas novas informações, eis que são admitidas em favor do autor e não são desconhecidas da ré – vamos deixar para outro artigo o tema 1.117/STJ.

Para dar desde já resposta à previsível crítica, que pode surgir a essa altura, não se pretende negar eficácia ao art. 329, inciso II, do NCPC, o que seria uma loucura, mas lhe imprimir um sentido mais humano e social. A questão que (sempre) se coloca é: seria razoável admitir a necessidade de o segurado ajuizar uma nova ação previdenciária para ver incluídos todos os salários de benefício no cálculo da RMI, vale dizer: com todas as implicações que isso tem (e.g.: decadência, prescrição)?

Como já ouvi dizer Wilson Engelmann: “O Direito Processual precisa ganhar o mundo onde os fatos acontecem e esperam uma solução razoável.” Depois de tudo o que foi dito (até) aqui, deve ser considerado como plausível o pedido de inclusão de todos os salários de contribuição no cálculo da RMI do benefício mais vantajoso (concedidos com base na Lei 9.876/1999). 

 

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Bah1: TRF4, AC 0013546-27.2015.404.9999, SEXTA TURMA, Relator JOÃO BATISTA PINTO SILVEIRA, D.E. 20/03/2017.

Bah2: TRF4, AC 5004274-64.2015.4.04.7107, SEXTA TURMA, Relatora TAÍS SCHILLING FERRAZ, juntado aos autos em 04/04/2018.

Bah3: REsp 1049560/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/11/2010, DJe 16/11/2010.

Bah4: HIDALGO, Daniela Boito Maurmann. Relação entre direito material e processo: uma compreensão hermenêutica: compreensão e reflexos da afirmação da ação de direito material. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 234.

Bah5: Segundo Darci Guimarães Ribeiro, o objeto das decisões judiciais é sempre maior do que o objeto do processo, porquanto a cognição deve ser estabelecida tanto sobre a pretensão processual do autor como as exceções do demandado, questões prévias (incluindo as questões prejudiciais de mérito) ou uma defesa indireta processual. RIBEIRO, Darci Guimarães. Objeto do processo e objeto do debate: dicotomia essencial para uma adequada compreensão do novo CPC. In: RIBEIRO, Darci Guimarães; JOBIM, Marco Félix (Orgs.). Desvendando o novo CPC. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015, p. 35-37.

Bah6: As questões prejudiciais, compreendidas dentro do objeto do debate, são decisivas para a resolução do mérito (objeto do processo) e, por isso, os limites objetivos da coisa julgada material não são fixados exclusivamente pelo objeto do processo.

Bah7: SILVA, Ricardo Alexandre da. A nova dimensão da coisa julgada. São Paulo: Thomson Reuters, 2019. p. 252.


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