O (IN)DEFERIMENTO DA PROVA PERICIAL AO BEL-PRAZER DOS JUÍZES: ATÉ QUANDO?
Não é inconformismo
de perdedor, mas se eu soubesse que as preliminares de cerceamento de defesa
seriam todas rejeitadas com fundamento no formulário PPP (perfil
profissiográfico previdenciário) “sem inconsistências”, ou seja, como prova
absoluta da não exposição a agentes nocivos, eu teria dispensado não apenas o
relatório, mas também a sustentação oral e, quiçá, a própria ação
previdenciária, já que a resposta estava pronta, muito antes da pergunta.
O indeferimento da
prova pericial indispensável para a demonstração da exposição a agentes nocivos
constitui não apenas verdadeira restrição ao direito de prova, mas ao próprio
acesso à justiça, tornando evidente a ausência de jurisdição. O que acrescenta
gravidade à ausência de um devido processo constitucional é o fato de a decisão
transitar em julgado e fazer coisa julgada.
Dum ponto de vista
hermenêutico, é perturbadora a inexistência de uma resposta capaz de ser, em
situações similares, universalizada. Cumpre perguntar: o formulário PPP “sem
inconsistências” faz prova absoluta da não exposição a agentes nocivos?
Insisto: Não está incorreto dizer que o formulário “não apresenta
inconsistências”. O problema é que, no caso concreto, pode ser absolutamente
falsa a presunção de que o formulário reproduz com exatidão a realidade laboral
vivenciada pelo trabalhador.
O formulário PPP
sem inconsistência tem valor... Ora, claro que tem... Mas a partir disso basta
o formulário PPP para condenar o segurado? Ora, isso não é respeito ao devido
processo legal. Nem de longe. Afastar a preliminar de cerceamento de defesa
desse modo quer apenas dizer que jamais o segurado conseguirá provar a
exposição a agentes nocivos, quer dizer: contra o formulário preenchido “sem
inconsistências”. Afinal, se o indeferimento da prova pericial não é causa de
prejuízo, o que será?
Antes do julgamento
dos recursos, decisões haviam sido confirmadas em processos cuja prova pericial
fora deferida em primeira instância, privilegiando a Turma o laudo pericial, o
que mostra que a prova pericial é irrelevante até que seja feita. Centenas de
perícias, algumas na própria empresa, justificam, pois, a necessidade/utilidade
de prova pericial ou, até mesmo, a validação do laudo. Até mesmo quando o
procurador do INSS desafia a especialidade da atividade, alegando a existência
de laudos contrários, ele está, em última análise, justificando a
necessidade/utilidade de prova pericial, a partir de um padrão de dúvida
relevante.
Assim sendo, melhor
sorte assiste ao segurado que tem o seu pedido de prova pericial deferido em
primeira instância. Então, cumpre perguntar aos membros das Turmas do Tribunal
Regional Federal da 4ª Região (tribunal no qual atuou), a fim de provocar o
estranhamento/reflexão: tivesse sido produzida a prova pericial ainda no
primeiro grau, com pleno contraditório, num aparente conflito entre as
informações do formulário e o laudo judicial, o que prevaleceria? Ainda assim
seria mantido o formulário “sem inconsistências”?
Em relação à
prevalência do laudo pericial, a 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª
Região já decidiu:
A presunção de veracidade das
informações constantes nos formulários e laudos emitidos pela empresa não é
absoluta. Dessa forma, se a parte autora apresenta indícios de que o PPP não retrata
as suas reais condições de trabalho, o meio adequado para dirimir a
controvérsia é a prova pericial.
Na existência de conflito entre os
fatos demonstrados no PPP e as constatações registradas no laudo pericial
produzido em juízo, deve preponderar a prova judicial, uma vez que foi
submetida ao contraditório, com todas as etapas inerentes ao devido processo
legal. Além disso, deve ser prestigiada a imparcialidade que caracteriza a
prova produzida no curso do processo jurisdicional.[1]
Uma vez mais, portanto,
resta claro que melhor sorte assiste ao segurado que tem o seu pedido de prova
pericial deferido em primeira instância, e isso não se relaciona muito bem com
igualdade perante o poder judiciário, tampouco com segurança jurídica. Nos
casos em que indeferida a prova pericial em primeira instância, cria-se um
fundamento irrecorrível (que não dá alternativa pra quem lê), qual seja, de que
o formulário não apresenta inconsistências, afinal, ao juiz é possível conduzir
a produção de provas conforme a sua consciência, como se fosse o único
destinatário da prova - isso não é fundamentação, é ornamentação, como já vi o
Professor Lenio Streck dizer!
Ainda: existe um
limite temporal para a realização de prova pericial? Se hoje a prova pericial
constatar a existência de agentes no meio ambiente de trabalho, ao juiz não é
possível presumir, com suficiente margem de segurança, que, senão piores, as
condições de labor ao tempo do exercício da atividade são idênticas? Isso
porque o progresso das condições laborais caminha no sentido de reduzir os
riscos e a insalubridade do trabalho. Com efeito, não se pode fazer qualquer
restrição à prova pericial, vale dizer: antecipando a valoração do seu
resultado. Note-se que o perito e os assistentes técnicos podem valer-se de todos
os meios necessários, ouvindo testemunhas, obtendo informações, solicitando
documentos que estejam em poder da parte, de terceiros ou em repartições
públicas, bem como instruir o laudo com planilhas, mapas, plantas, desenhos,
fotografias ou outros elementos necessários ao esclarecimento do objeto da
perícia (CPC, art. 473, § 3º).
Só mais uma coisa:
diz o acordão: “os PPPs que serviram de base para a sentença foram preenchidos
sem inconsistências, bem como foram devidamente assinados pelos responsáveis.”.
Ora, em poucos segundos, dá para encontrar no TRF4 coisas como “a adoção de
procedimento diverso, principalmente quando a prova existente é unilateralmente
elaborada, convém anotar, fragiliza a eficácia material do devido processo
legal, acarretando, ainda, cerceamento de defesa”.[2] Essa decisão não merece
observância?
Enfim, a manipulação de falácias como o “livre
convencimento motivado”, “livre apreciação da prova”, etecétera, levadas a cabo
por caprichos de juízes, fez com que o “cerceamento de defesa” se transformasse
num conceito sem coisa. Se o juiz é livre para dizer se a prova pericial é “(ir)relevante”,
a decisão pelo indeferimento se torna irrecorrível (um loop eterno).
Das duas, uma: ou
se criam critérios seguros e controláveis para se definir quando é possível a
prova pericial (já escrevi mais de 100 páginas sobre isso); ou se permite ao
autor custear a prova pericial, mormente naqueles casos em que ela se apresenta
como condição de possibilidade, vale dizer: para a comprovação dos agentes
nocivos omitidos pela empresa. Até quando a prova pericial vai ser analisada ao
gosto do juiz?
Ao se afirmar que
deve prevalecer o formulário “sem inconsistências”, infere-se que todo e
qualquer inconformismo em relação ao formulário PPP deve ser impugnado na
esfera trabalhista ou criminal. Alguns desembargadores começaram a usar o argumento de que a ação previdenciária não é o meio (lugar) adequado para impugnar o PPP fornecido pelo empregado - o que falta mesmo é declinar da competência e encaminhar para a Justiça do Trabalho. No entanto, ao tempo do ajuizamento da ação
previdenciária havia justificada confiança da jurisprudência do tribunal, no
sentido que seria autorizada a prova pericial diante das evidências sérias do
labor especial.
Na medida em que o
juiz não pode – ou não quer – postergar sua decisão na espera pela prova
pericial, há que se ter, no mínimo, maior tolerância no que diz respeito à
garantia da coisa julgada. O novo CPC trouxe expressamente o que (não) pode
fazer coisa julgada no art. 503, § 2º: “não se aplica se no processo houver
restrições probatórias ou limitações à cognição que impeçam o aprofundamento da
análise da questão prejudicial”. Esse dispositivo deve ser conjugado com o Tema
629/STJ, que autoriza a extinção do feito, sem resolução de mérito. A extinção
do feito permite ao autor buscar na via trabalhista a prova indeferida nos
autos da ação previdenciária.
A frase do
professor Lenio Streck me marcou: “Justiça, para mim, é para solucionar
problemas, não para criá-los”. Com efeito, a ausência/insuficiência de provas
ou de um devido processo legal não pode gerar uma coisa julgada absoluta, no
sentido de impossibilitar uma nova ação, qualificada por novos documentos, sob
pena de a própria justiça “enterrar vivo” o direito do segurado.
Escrito por Diego
Henrique Schuster
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Bah1: TRF4, AC
5034367-41.2014.4.04.7108, QUINTA TURMA, Relator OSNI CARDOSO FILHO, juntado
aos autos em 26/07/2020. Aqui também: “Na existência de conflito entre os fatos
demonstrados no PPP e as constatações registradas em laudo pericial produzido
em juízo, deve preponderar a prova judicial, uma vez que foi submetida ao
contraditório, com todas as etapas inerentes ao devido processo legal. Além
disso, deve ser prestigiada a imparcialidade que caracteriza a prova produzida
no curso do processo jurisdicional”. (TRF4 5009949-95.2012.4.04.7112, QUINTA
TURMA, Relator OSNI CARDOSO FILHO, juntado aos autos em 25/07/2020).
Bah2: TRF4, AC
5013890-09.2019.4.04.7112, QUINTA TURMA, Relator OSNI CARDOSO FILHO, juntado
aos autos em 02/02/2021.
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