PRÉ-JUÍZOS (IN)AUTÊNTICOS EM MATÉRIA PREVIDENCIÁRIA: O SEGURADO ESPECIAL AGORA PRECISA SER MAGRO?


O alerta de Mashall B. Roseberg sobre o linguajar do “errado”, do “deveria” e do “tenho de” ajusta-se com perfeição ao nosso artigo: “quanto mais se for levado a pensar segundo juízos morais que implicam que algo é errado ou ruim mais se recorrerá a instâncias exteriores – as autoridades – para saber a definição de certo, errado, bom e ruim.”[1]

Assim, alguns juízes julgam com base em razões pessoais, vale dizer: a partir do que eles consideram certo, errado, bom ou ruim. Entram, aqui, pré-conceitos (ou falácias, e.g.: dizer que o gaúcho trabalha mais do que outros - o que me deixa muito constrangido) que interferem na tomada de decisão. É algo como “eu penso desse modo”, no interior do qual não se identifica uma linguagem pública (conforme o Direito), perdendo-se exatamente nessa “subjetividade assujeitadora”.

Lenio Streck explica que os pré-juízos, sejam eles autênticos ou inautênticos, são condição de possibilidade da compreensão e “operam conosco no momento em que nos aproximamos de um texto”.[2] Os pré-juízos falsos (inautênticos) precisam ser desmascarados. Como exemplo, pode-se referir a decisão exarada pelo juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho, da 9ª Vara Criminal de São Paulo, que arquivou uma queixa-crime (do jogador de futebol Richarlyson), afirmando, em síntese, que “futebol é viril, varonil, não homossexual”.[3] Fica claro que o argumento utilizado como "fundamentação" não passa de um juízo moral - distante do objeto/lei.

No Direito Previdenciário, a maior vítima dos pré-juízos (inautênticos) são os segurados especiais. Assim, por exemplo, em Patos, MG, uma juíza vem gerando polêmica ao analisar se o agricultor é magro ou gordo para decidir sobre ações que buscam benefício do INSS. Na decisão assim restou expresso:

Ainda sobre características físicas, o segurado especial goza de tratamento legal favorecido, mediante a concessão de benefícios previdenciários, no valor de um salário mínimo, independentemente de pagamento de contribuições, porque o exercício de agricultura de subsistência não permite lhe sobre financeira, isso implica diretamente a restrição à aquisição e, consequentemente, consumo de alimentos, o que reduz a ingestão calórica diária. Isso, aliado ao exercício de extenuante trabalho físico, acarreta baixo índice de massa corporal _ IMC (decorrente da razão entre peso e altura) nesse tipo de trabalhadores.

Com efeito, criou-se a ideia de que o segurado especial precisa ser miserável, perdendo-se o juiz em discussões que, cada vez mais, dizem respeito às características físicas do trabalhador, o que acarreta graves prejuízos hermenêuticos. O julgador simplesmente aposta em estereótipos: “Não há qualquer demonstração idônea de atividade rural por parte da requerente que aliás tem uma aparência nada fustigada pelo sol, e por que não dizer, bem cuidada. Isto à vista das verdadeiras trabalhadoras rurais que aqui acedem, e têm as peles manchadas do sol, e as mãos grossas como lixas”. Por outras palavras, só falta submeter o cidadão à perícia médica (física), para analisar a morfologia da pele (das mãos).

Sobre o segurado especial, Jane Lucia Wilhelm Berwanger há muito vem denunciando:

Nesse sentido, é comum encontrarmos elementos completamente subjetivos com relação ao segurado especial, o que aponta para a interferência, no processo de interpretação da lei, de certos pressupostos e descrições que claramente não condizem com o conteúdo da norma. Em nome da “subsistência”, ignora-se tudo o mais que a lei diz sobre o segurado especial, deixando-se de considerar que a lei não contém termos isolados, mas que tudo faz parte de um sistema; diz-se, por exemplo, que o trabalhador rural não pode ser proprietário de imóvel urbano, utilizar maquinário, criar gado ... Há até quem diga que ele não pode vender produção! Outros o julgam pela aparência. E assim vai se criando um ser totalmente diverso do pensado pelo constituinte e pelo legislador. Emerge então um desequilíbrio entre as crenças particulares de quem julga sobre o que é ou deveria ser um segurado especial, e aquilo que a legislação postula expressamente, e logo desenvolve-se desnecessariamente toda uma ontologia para dar conta de uma lacuna de entendimento de quem interpreta a lei, quando, de fato, o entendimento poderia ser obtido a partir do próprio texto da lei.[4]

Contra qualquer previsão, o segurado especial precisa ostentar a pobreza - uma visão ultrapassada. Imagina ele ser dono de uma Toyota modelo Hilux, como anota o juiz:

[...] no evento 26, o INSS trouxe fato novo e relevante para os autos, qual seja, a propriedade do autor de um veículo marca Toyota modelo Hilux, supostamente do ano de 2019. Intimado a se manifestar sobre a informação, o autor esclareceu que o veículo é ano 2011 e que foi adquirido pelo valor de R$ 85.000 (oitenta e cinco mil reais), financiados pelo prazo de 5 (cinco) anos, com a primeira parcela em 15/07/2020.

[...] Porém, no caso concreto, ainda que as informações trazidas inicialmente pelo INSS, no sentido de que o referido veículo era ano 2019, com valor aproximado de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais), não se confirmaram, não se pode negar que a propriedade de veículo automotor no valor informado pelo autor - R$ 85.000,00 (oitenta e cinco mil reais) - se destoa, e muito, da realidade econômica de segurados especiais, conforme se pode observar das regras de experiência comum, subministradas pela observação do que ordinariamente acontece (CPC/2015, art. 375).

Acreditamos que as regras de experiência podem, sim, aproximar o Direito do mundo prático, auxiliando na apuração dos fatos e valoração das provas. Agora, as regras de experiência não podem se sobrepor à lei. Entendidas dessa forma, vale dizer: sem ter o juiz nenhum critério objetivo, não passam de juízos solipsistas. Confere-se ao juiz o poder de dizer o que é “certo” ou “errado”. A resposta – ao fim e ao cabo – vai depender da consciência do juiz, do livre convencimento, da busca da “verdade real”, etc. Como ter acesso às vivências anteriores do juiz?

A expressão “subsistência” não designa algo totalmente independente, fechado em si. O conceito só tem significado no contexto, ou seja, na frase que diz: “Entende-se como regime de economia familiar a atividade em que o trabalho dos membros da família é indispensável à própria subsistência e ao desenvolvimento socioeconômico do núcleo familiar e é exercido em condições de mútua dependência e colaboração, sem a utilização de empregados permanentes.” A relação das palavras (à luz do caso concreto) determina o sentido. A frase não tem nenhuma espécie de quantidade. Então, como ela se adapta à realidade?

Emblemática, nessa perspectiva, é a decisão do TRF3, no julgamento da Apelação 5006746-46.2020.4.03.9999, em que se apresentou a seguinte fundamentação: “as notas fiscais em comento envolvem comercialização de quantidade expressiva de cabeças de gado e sementes, o que denota que a parte autora não era segurada especial. Dentre as notas juntadas aos autos, destacou-se: “20 novilhas e 21 vacas (1999- fl. 54); 11 cabeças de gado – 2006 (fl. 60); 14 cabeças de gado – 2008 (fl. 61); 5334 Kg de semente bruta, no valor total de R$ 80.010,00 - 2011 (fl. 62)”.

Cumpre perguntar: e se fossem 10 novilhas e 11 vacas; 6 cabeças de gado? Existe uma teoria sobre a quantidade de semoventes? Afinal, qual é o critério? Em Wittgenstein uma frase é verdadeira quando são verdadeiras suas frases componentes. O que pode ser objetivado e expresso em frases aqui? O juiz precisa explicitar as razões de sua interpretação.

Isso representa um problema no processo de comunicação, já que não se consegue ter acesso às impressões de quem julga. Em última análise, os “critérios” utilizados são uma realidade inteiramente privada (individual). Aqui reside o solipsismo - objeto da crítica de muitos filósofos (Heidegger, Wittgenstein, etc.). No fim das contas: o trabalhador é punido por produzir demais, sem sequer ter um quadro de referência intersubjetivo no qual pudesse pautar sua conduta - como saber o quanto é possível produzir e/ou a partir de quanto devo passar a contribuir para a Previdência Social?

É importante deixar claro que as únicas limitações impostas pela Lei de Benefício versam sobre o tamanho da terra e a utilização de empregados permanentes. A Lei não prevê qualquer limite de produção à caracterização do segurado especial, enquanto que a Constituição Federal (art. 195, §8º) estabelece que a contribuição previdenciária deste tipo de trabalhador será por meio de uma alíquota sobre a comercialização.[5] Em tese, quanto mais o trabalhador produzir, melhor. Neste nível, o benefício de aposentadoria por idade rural não visa apenas proteger o agricultor, mas implementa um programa de combate ao êxodo rural, com vistas à segurança alimentar e à redução da pobreza. Isso não deve reforçar o caráter assistencial do benefício – outro prejuízo inautêntico.

O art. 109 da própria Instrução Normativa INSS 128/2022, no seu § 1º, não deixa ressaibo de dúvida, a atividade do segurado especial é desenvolvida em regime de economia familiar quando o trabalho dos membros do grupo familiar é indispensável à própria subsistência e ao desenvolvimento socioeconômico, “independentemente do valor auferido pelo segurado especial com a comercialização da sua produção”. Mesmo se não estivesse expresso, ficaria muito claro de qualquer forma, pois nem a Lei de Benefício nem a Constituição sugerem qualquer restrição à produção. 

O texto da lei será sempre ponto de partida (ou retorno). O que há de comum nessas decisões? Cada juiz cria seus próprios critérios. O problema está no fato de se tentar conhecer de modo definitivo o que é segurado especial. A crítica contra a criação de critérios não previstos na lei não significa que a palavra “subsistência” não possua sentido. O problema é que se tenta encontrar uma “essência” - a ser captada pelo juiz. E isso não é apenas uma discussão semântica. Cumpre perguntar: posso decidir arbitrariamente que a palavra “subsistência” significa que o segurado especial precisa ser miserável, vale dizer: de forma totalmente desvinculada da própria lei?

O juiz deve suspender seus preconceitos e considerar o contexto socioprático, ou melhor, a forma de vida das pessoas e a própria lei. Jane Lucia Wilhelm Berwanger lembra: “Se o próprio legislador acrescenta o desenvolvimento no núcleo familiar, já admite que subsistência era um elemento restritivo, mas que se relativiza com essa ampliação. Da mesma forma, todas as autorizações expressas de rendas, atividades e condições, servem para ampliar o conceito de segurado especial.”[6]

O dispositivo supramencionado traz duas possibilidades muito claras, quais sejam, o trabalho indispensável para a “própria subsistência” e ao “desenvolvimento da família”. As modalidades não excluem uma à outra; suplementam-se mutuamente e podem, além disso, reforçar uma à outra. Uma das fontes de erro consiste, precisamente, em isolar expressões do contexto em que elas surgem, o que significa não compreender toda a dimensão da gramática da linguagem. Numa leitura sistemática, tem-se que o segurado especial pode ser vereador, sócio de empresa, etc. Ele pode contribuir para o sistema da Previdência Social (até o teto), sem que isso implique a perda da qualidade de segurado especial.[7] 

De um “é” não se deve tirar um “deve” ser contra o destinatário das normas previdenciárias. Neste nível, não importa mais o que diz a lei, mas, sim, aquilo que o juiz acredita ser a “vontade do julgador”. Ao fim e ao cabo, a “vontade do legislador” nada mais é do que aquilo que o juiz diz que é. E aí está o problema: na cabeça de muitos juízes: não é permitido ao trabalhador da roça que melhore suas condições de vida, que adquira qualquer item de conforto, enfim, sob pena de perder a qualidade de segurado especial e, consequentemente, o direito ao benefício que "caridosamente" é concedido pela Previdência Social. 

É pertinente a crítica que Bentham, com sua ironia peculiar, fazia à common law, chamando-a de dog law. Para Bentham, o direito sob o common law só funcionava retrospectivamente, ou seja, assim como quando se quer modificar determinado comportamento de um cão: espera-se que o cão faça aquilo para, somente então, puni-lo. Lenio Streck resume que Bentham dizia que o cidadão inglês aprendia as regras do direito inglês “do mesmo modo que um cachorro aprendia a não fazer algo: apanhando”.[8] Isso não é mera curiosidade. De fato, falta uma comunicação clara à população, como acontece com os trabalhadores rurais que se casam com alguém da “cidade” e, na justiça, veem seu trabalho desconsiderado sob o argumento de que “dispensável à subsistência”. Waldron trabalha com a ideia de autoaplicação, no sentido de tornar possível a (auto)aplicação voluntária das normas, pois isso é uma questão de respeito com os jurisdicionados e sua capacidade de agir.[9]

Os pré-juízos fazem a interpretação incorrer em erro. Por isso Lenio Streck defende que “apenas quem suspende os próprios pré-juízos é que interpreta corretamente. Um julgador que não consegue suspender seus pré-juízos está incapacitado para a sua tarefa.”[10] Os pré-juízos causam mal-entendidos, de modo que se eliminam os outros termos empregados pelo legislador, prejudicando o destinatário das normas previdenciárias.

Em “Jurisdição constitucional e decisão jurídica”, Lenio Streck afirma que o Poder Judiciário somente pode deixar de aplicar uma lei ou dispositivo de lei em seis hipóteses. Excetuadas essas hipóteses, o juiz que quiser julgar a partir de sua opinião, e não da lei e/ou argumentos jurídicos, deve ter a hombridade de qualificar seus próprios juízos com proposições do tipo “Eu acho que...”, “Eu penso que...”, “...mas, é claro, isso é apenas a minha opinião”; afinal, ele precisa ter consciência do nível de arbitrariedade na prevalência de sua posição sobre a lei. Um juiz cético, sustenta Moore, é o juiz que impõe sua 'opinião' aos 'desafortunados litigantes'."[11]

O presente artigo tem como finalidade provocar o juiz a tomar consciência dos seus pré-juízos (a partir dos quais ele projeta sentido), pois a ele cabe mostrar que sua subjetividade não está se sobrepondo àquilo que deveria ser interpretado (um “mínimo é” textual). As regras são a única que nós temos contra a arbitrariedade.

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Bah1: ROSENBERG, Marshal. Comunicação não violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. São Paulo: Ágora, 2021. p. 42.

Bah2: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento, 2017. p. 233.

Bah3: SÃO PAULO. Nona Vara Criminal da Capital. Queixa-crime nº 936/07.

Bah4: BERWANGER, Jane Lucia Wilhelm. Segurado especial - novas teses e discussões. 3. Ed. Curitiba: Juruá, 2020. p. 68-69.

Bah5: O próprio INSS, por meio de sua Instrução Normativa, não considera o valor auferido com a produção rural para reconhecer a qualidade de segurado especial. Veja: A atividade é desenvolvida em regime de economia familiar quando o trabalho dos membros do grupo familiar é indispensável à sua subsistência e desenvolvimento socioeconômico, sendo exercido em condições de mútua dependência e colaboração, sem a utilização de empregados permanentes, independentemente do valor auferido pelo segurado especial com a comercialização da sua produção, quando houver observado que (…) (IN 77/215, art. 39, § 1º).

Bah6: BERWANGER, Jane Lucia Wilhelm. Segurado especial - novas teses e discussões. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2020. p. 80.

Bah7: Aqui caberia a máxima: “Ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus”, ou seja: “Onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir''.

Bah8: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento, 2017. p. 169.

Bah9: WALDRON, Jeremy. The Concept and the Rule of Law. New York University School of Law Public Law & Legal Theory Research Paper Series, Working Paper n. 08-50, set. 2008, pp. 24-29. Disponível em <https://ssrn.com/abstract=1273005>.

Bah10: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento, 2020. p. 364. 

Bah11: MORBACH, Gilberto. Entre o positivo e interpretativismo, a terceira via de Waldron. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora JusPodivm, 2021. p. 264.


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