A IMPORTÂNCIA DA PERGUNTA NA FORMAÇÃO DO SENTIDO JURÍDICO

 

            A questão da quesitação em processos que reclamam perícia técnica para se verificar a real situação do labor especial confere ao perito ares de protagonismo, mormente numa ação de concessão de aposentadoria especial.

            Acontece que, além de sua pré-compreensão, que é condição de possibilidade, o perito traz consigo alguns pré-juízos inautênticos, o que exige das partes uma quesitação inteligente, a fim de promover o tal “constrangimento epistemológico”. Não há verdade sem constrangimento, isto é, o perito precisa ser desafiado a arrancar o particular do universal e, por vezes, suspender suas opiniões prévias sobre determinado tema. O constrangimento não acontece a partir de uma comunicação violenta; pelo contrário. O que sempre recomendamos é uma comunicação não violenta, sem rótulos ou termos que ameassem a autonomia do perito. 

            Inúmeras são as queixas de advogados no sentido de que o perito ingressa na perícia já com o laudo pronto, ou seja, a resposta vem antes da pergunta. Nesse nível, o advogado precisa fazer sua mea-culpa. Alguns quesitos são tão genéricos quanto a crítica feita aos laudos, o que facilita esse comportamento anti-hermenêutico. Por outras palavras, o único trabalho que se dá ao perito é mudar as informações referentes ao processo (número, partes, horário da perícia, etc.).

            O que se verifica na práxis jurídica são quesitos que se contentam com um “sim” ou “não”, aliviando o perito da carga representa pela falta de fundamentação, transformando o laudo num documento que poderia ser subscrito por qualquer profissional da área, já que desligado do caso concreto e de suas circunstâncias. Essa fundamentação é retroalimenta por uma impugnação igualmente genérica, levando o julgador para um terreno abstrato, muito distante do meio ambiente de trabalho.[1]  

Assim como o juiz, o perito precisa entender que procurar o verdadeiro não é procurar o desejável, mas afastar a dúvida, para o bem ou para o mal. O objetivo deste artigo é melhorar esse diálogo, a fim de justificar a utilidade da prova pericial.

Em primeiro lugar, os quesitos precisam “obrigar” o perito a descrever o meio ambiente de trabalho de forma pormenorizada, incluindo possíveis mudanças no layout da empresa: Quais os produtos químicos manuseados-manipulados-utilizados no meio ambiente de trabalho, inclusive pelos colegas de trabalho do periciando? Quais e quantas máquinas guarnecem o setor? Existem divisórias ou exaustores no pavilhão? O ambiente é fechado? Os produtos químicos manuseados-manipulados-utilizados no setor do periciando possuem grande volatividade? Existe a possibilidade de evaporação e ser liberação pelos poros dos vasilhames? É possível se sentir o cheiro dos produtos químicos?

Ainda na perspectiva dos agentes químicos, fica fácil perceber quando o perito foca apenas no contato cutâneo com produtos químicos (e.g.: nas atividades de aplicar a cola/adesivo), o que pode - deve - ser confrontado com a opinião de outros profissionais. Ele assume tal orientação como quem perfilha de uma determinada corrente doutrinária, como o movimento antivacina. Com efeito, precisamos investigar quais discursos são verdadeiros ou científicos e quais são falsos ou ideológicos. A própria linguagem utilizada para descrever as atividades do segurado interfere no processo final de decisão sobre o que é ou não falso. O que se tem, na sequência, é um conjunto de afirmações que serve apenas para justificar a adoção de tal orientação, cada vez mais distante do caso concreto.   

 Dessa forma, o perito precisa ser “provocado” a admitir sua posição em relação a forma de exposição a agentes químicos, por exemplo: O Anexo 13 da NR-15 vale apenas para a forma de exposição cutânea? Existem substâncias capazes de serem inaladas, entrando pelas vias respiratórias? Existem substâncias capaz de absorvidas pelo trato intestinal, por ingestão? Este configura outro erro muito comum cometido pelos profissionais da área, qual seja, avaliar os agentes previstos no Anexo 13 da NR-15 apenas na forma cutânea.

Isso representa uma forma de interpretação equivocada geradora de uma consequência ainda mais equivocada, vale dizer: a prolongação do trabalho sob condições especiais.  Segundo Júlio Cesar de Sá da Rocha:

Os agentes agressivos químicos entram em contato com os trabalhadores por inalação, entrando pelas vias respiratórias; por ingestão, absorvidos pelo trato intestinal; ou pela exposição dermal, contato com a pele. A inalação é o problema de maior gravidade na questão ocupacional, na medida em que a respiração é um processo contínuo, embora a exposição pela pele constitua o maior volume das doenças, e. g., como as dermatites ocupacionais.[2]

A evaporação de um solvente não é restrita ao funcionário que aplica o adesivo. Aqui ganha destaca a diferença entre uma vinculação interpretativa e uma vinculação normativa:

[...] há um exemplo interessante que é repetido em palestras e salas de aula, que pode nos ajudar a compreender a diferença entre a vinculação interpretativa e a vinculação normativa. Se uma regra estabelece que determinada parte da praia é imprópria para o banho, em virtude da poluição, não se pode pensar – no momento de seu cumprimento – que todo o material poluente se auto-organiza de modo a permanecer junto na linha imaginária determinada pelas placas de aviso e sinalização. [...] um pai adepto da vinculação interpretativa aqui proposta, não deixaria seu filho entrar na água; um pai adepto da vinculação normativa – que, no fundo, é um analítico-positivista – permitirá que seu filho adentrasse ao mar, desde que não ultrapassasse o limite imaginário estabelecido pelo instrumento de sinalização.[3]

Devido à enorme volatilidade do solvente tolueno (hidrocarboneto aromático), presente na cola e nos solventes, qualquer ambiente fechado em que este produto é utilizado fica contaminado com agentes químicos prejudiciais à saúde. É preciso entender o que são substâncias aerodispersas. O perito não pode se entregar, já desde o início, à causalidade de suas próprias opiniões prévias e ignorar o seu papel. Ao advogado, portanto, cabe fazer o perito se dar conta das próprias antecipações, para dar a ele e às partes a possibilidade de confrontar sua verdade com as próprias opiniões prévias.

Em terceiro lugar, o enquadramento jurídico cabe ao juiz! O direito analisa juridicamente as observações técnicas descritas nos laudos periciais, a fim de estabelecer a configuração do risco à saúde e/ou à integridade física. Com efeito, ao perito cabe fazer a avaliação (e medição dos agentes, e.g.: ruído, calor, vibração, etc.), sem compromisso, num primeiro momento, com os decretos previdenciários. Aliás, o perito deve ser instigado a considerar todo arcabouço normativo acerca da segurança e saúde do trabalhador (e.g.: NHO´s, NR´s, ACGIH, além das Convenções), devendo prevalecer os limites de tolerância mais favoráveis (protetivas) ao segurado ou o critério qualitativo, este último quando diante de substâncias sobre as quais não se conhece um limite segurado/aceitável de tolerância e/ou reconhecidamente cancerígenas. Teresa Cristina Nathan Outeiro Pinto e Maria Cristina Espósito Silvério Percinio Silva indagam: “Afinal, é aceitável que um agente cancerígeno tenha limite de tolerância?”[4] O perito não pode ficar preso somente à concentração dos agentes químicos, mas à toxicidade e o modo como eles dispersam.

Por fim, e não menos importante, mas a elaboração dos quesitos começa com o atendimento do cliente. A partir da narrativa da vida laboral de uma pessoa, cabe ao advogado distinguir quais fatos são juridicamente relevantes. Para tanto, o advogado precisa praticar o que chamo de “humildade séria”, ou seja, ele precisa entender que ninguém melhor do que o próprio segurado para lhe explicar como funcionava o seu trabalho, as etapas do processo industrial, quais os produtos manuseados-manipulados-utilizados, etc. Já virou clichê: cada caso é um caso (e isso vale para todos os casos). Assim sendo, as partes precisam demonstrar interesse na vida do segurado, sob pena de: "Não houve formulação de quesito específico (EVENTO 5 - PET14) e ao final da audiência a Juíza declarou encerrada a instrução e não houve qualquer impugnação."

A mesma abordagem será utilizada para trabalhamos diferentes agentes nocivos - em breve.

 

Escrito por Diego Henrique Schuster

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Bah1: A referência ao ambiente de trabalho resta clara no art. 68 do RPS: § 4o A presença no ambiente de trabalho, com possibilidade de exposição a ser apurada na forma dos §§ 2o e 3o, de agentes nocivos reconhecidamente cancerígenos em humanos, listados pelo Ministério do Trabalho e Emprego, será suficiente para a comprovação de efetiva exposição do trabalhador.

Bah2: ROCHA, Julio Cesar de Sá da. Direito ambiental do trabalho: mudanças de paradigmas na tutela jurídica à saúde do trabalho. São Paulo: Atlas, 2013, p. 107-108.

Bah3: STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes? Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013. p. 103.

Bah4: PINTO, Teresa Cristina Nathan Outeiro; SILVA, Maria Cristina Espósito Silvério Percinio. Analisando os Limites de Tolerância brasileiros. In: II Congresso Nacional de Excelência em Gestão, 2004, Rio de Janeiro. Anais do II Congresso Nacional de Excelência em Gestão. Rio de Janeiro: Inovarse, 2004. Disponível em: <http://www.inovarse.org/filebrowser/donwload/9051>. Acesso em: 06 jul. 2021.  

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