A IMPORTÂNCIA DA HERMENÊUTICA: O TRABALHADOR NÃO FLUTUA NO AMBIENTE DE TRABALHO

 



Além de não interpretarmos por partes, em fatias, também não interpretamos in abstrato. Quando falamos “lápis”, falamos de um determinado lápis. E ele estará em algum lugar, relacionado a algo.[1]

O mesmo vale para o trabalhador numa relação com o meio ambiente do trabalho. O meio ambiente é o pano de fundo das complexas relações biológicas, psicológicas e sociais a que o trabalhador está submetido. Nesse nível, todos os elementos, inter-relações e condições que influenciam o trabalhador em sua saúde física e mental devem ser considerados. Explico.

Devido à enorme volatilidade de algumas substâncias químicas (e.g.: hidrocarboneto aromático – previsto no Anexo 13 e, por isso, considerada nociva à saúde pelo critério qualitativo), qualquer ambiente fechado em que este produto é utilizado fica contaminado com agentes químicos prejudiciais à saúde.

Na Justiça do Trabalho, por exemplo, há decisões cumuladas atestando que limpadores do tipo AZ-600 e AZ-800 contêm, em sua fórmula, substâncias tóxicas para os nervos periféricos e podem causar sua degeneração progressiva, “a ponto de causar transtornos no marchar, podendo até chegar à paralisia”.[2]

Segundo Júlio Cesar de Sá da Rocha:

Os agentes agressivos químicos entram em contato com os trabalhadores por inalação, entrando pelas vias respiratórias; por ingestão, absorvidos pelo trato intestinal; ou pela exposição dermal, contato com a pele. A inalação é o problema de maior gravidade na questão ocupacional, na medida em que a respiração é um processo contínuo, embora a exposição pela pele constitua o maior volume das doenças, e. g., como as dermatites ocupacionais.[3]

A conclusão vai ao encontro do senso comum, já que claro está que, na produção do calçado, que abrange diversos setores (e.g.: montagem, preparação, corte, costura, etc.) e todas as atividades giram em torno de uma grande esteira (sem divisórias), a exposição a agentes químicos ocorre pelas vias respiratórias.

Não por coincidência reaparece a importância das regras de experiência (CPC, art. 375), que são presunções comuns, também "conhecidas por simples ou de homem, são as que a lei não estabelece, mas se fundam naquilo que ordinariamente acontece. São aquelas em que o juiz, baseado em coisas ou atos que geralmente acontecem ou se realizam, ou em fatos acontecidos, delas tira a verdade do caso sub-judice.”[4] Exemplificando:

Ouço semanalmente relatos muito semelhantes, os quais dão conta de empresas calçadistas, cuja produção se dava em um mesmo pavilhão, sem qualquer separação entre os setores de trabalho (corte, costura, pré-fabricado, montagem e acabamento). Ainda que possa oscilar a forma de trabalho do setor montagem (cavaletes, esteira manual e esteira mecânica), as atividades exercidas eram as mesmas em todas as empresas calçadistas.

Era também extremamente comum que um trabalhador exercesse as mais variadas atividades em seu setor, justamente porque a mão-de-obra não era especializada. E, quando era, havia, via de regra, anotação precisa da atividade na CTPS, como, por exemplo, costureira e cortador.

Ademais, compulsando laudos da época de empresas calçadistas, pode-se verificar que, independentemente da atividade exercida, havia submissão a algum agente nocivo, notadamente ruído superior a 80dB e hidrocarbonetos aromáticos ('cola').[5]

Assim por exemplo, no abstrato, a função “serviços gerais” sugere múltiplas atividades, porém, não no interior de uma empresa de calçados!

E qual a importância de saber se no meio ambiente do trabalho do segurado eram manuseados-manipulados-usados agentes reconhecidamente cancerígenos?

Primeiro, alguns peritos e juízes focam apenas no contato cutâneo com os agentes químicos (e.g.: passar cola), sem se preocupar com o entorno: vale ironizar: como se o trabalhador estivesse flutuando ali! Segundo, porque isso atrai a incidência do art. 68, § 4º, do Regulamento da Previdência Social:

A presença no ambiente de trabalho, com possibilidade de exposição a ser apurada na forma dos §§ 2o e 3o, de agentes nocivos reconhecidamente cancerígenos em humanos, listados pelo Ministério do Trabalho e Emprego, será suficiente para a comprovação de efetiva exposição do trabalhador.[6]

          Acrescente-se ainda; IN 77/2015, art. 284, parágrafo único; Memorando-Circular Conjunto 2/DIRSAT/DIRBEN/INSS, item 1.

Vale lembrar que a nova redação do RPS, emprestada pelo Dec. 10.410, de 30 de junho de 2020, suprimiu a expressão meio ambiente do trabalho: “Os agentes reconhecidamente cancerígenos para humanos, listados pela Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, serão avaliados em conformidade com o disposto nos § 2º e § 3º deste artigo e no caput do art. 64 e, caso sejam adotadas as medidas de controle previstas na legislação trabalhista que eliminem a nocividade, será descaracterizada a efetiva exposição.”

É por acreditar nas decisões cumuladas a respeito do tema (e.g.: IRDR 15/TRF4, Temas 188 e 213/TNU, etc.) que se manterá a defesa da “mera” presença de agentes reconhecidamente cancerígenos no meio ambiente de trabalho, independentemente do uso de EPI ou EPC. A linguagem das promessas e das medidas de controle, previstas na legislação trabalhista, não são suficientes para dizer onde passa o limite do aceitável e do inaceitável. Ademais, a nova redação utiliza o verbo “eliminar”, vale reproduzir o seguinte trecho: “[...] caso sejam adotadas as medidas de controle previstas na legislação trabalhista que eliminem a nocividade, será descaracterizada a efetiva exposição”.

Teresa Cristina Nathan Outeiro Pinto e Maria Cristina Espósito Silvério Percinio Silva indagam: “Afinal, é aceitável que um agente cancerígeno tenha limite de tolerância?”[7] Concorda-se que não podem ser indicados níveis “seguros” de exposição para substâncias reconhecidamente cancerígenas.

Com isso pretendo chamar a atenção dos colegas para importância de se investigar os agentes químicos presentes no ambiente de trabalho, a forma como dispersam e como entram em contato com o trabalhador. Caso seja necessário, a prova testemunhal poderá individualizar/confirmar os produtos químicos manipulados e utilizados no setor do segurado, com especial atenção para a organização do meio ambiente do trabalho. É possível, igualmente, o segurado estar trabalhando em área de risco!

Na preparação para o teste psicotécnico, os especialistas alertam se for desenhar uma casa ou uma árvore "não se esqueça do chão, afinal, eles não podem ficar flutuando".

 

Escrito por Diego Henrique Schuster

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Bah1: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento, 2017. p. 23.

Bah2: TRT da 4ª Região, 10ª Turma, 0000426-51.2010.5.04.0381 AP, em 27/09/2012, Desembargador Fernando Luiz de Moura Cassal - Relator. Participaram do julgamento: Desembargador Emílio Papaléo Zin, Desembargadora Denise Pacheco, Desembargador Fernando Luiz de Moura Cassal.

Bah3: ROCHA, Julio Cesar de Sá da. Direito ambiental do trabalho: mudanças de paradigmas na tutela jurídica à saúde do trabalho. São Paulo: Atlas, 2013, p. 107-108.

Bah4: SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e comercial, vol. I, 2. ed., correta e atualizada. São Paulo: Max Limonad, 1952. p. 84.

Bah5: RIO GRANDE DO SUL. Sentença nº 5006285-92.2017.4.04.7108/RS. Juízo Substituto da 2ª VF de Novo Hamburgo, de 22 de junho de 2018.

Bah6: É importante sublinhar a diferença entre atividade e função, no sentido de que esta última representa o conjunto de atividades desempenhadas pelo trabalhador na produção do bem ou na prestação do serviço. Primeiro passo, portanto, é discernir qual ou quais atividades são inerentes à função desempenhada pelo trabalhador. Na sequência, verificar se a exposição a determinado(s) agente(s) é intrínseca a qual ou quais atividades inerentes à função.

Bah7: PINTO, Teresa Cristina Nathan Outeiro; SILVA, Maria Cristina Espósito Silvério Percinio. Analisando os Limites de Tolerância brasileiros. In: II Congresso Nacional de Excelência em Gestão, 2004, Rio de Janeiro. Anais do II Congresso Nacional de Excelência em Gestão. Rio de Janeiro: Inovarse, 2004. Disponível em: <http://www.inovarse.org/filebrowser/donwload/9051>. Acesso em: 06 jul. 2021.


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