O DECRETO 10.410/2020 NO INTERIOR DE UM SISTEMA CONSTITUCIONAL E LEGAL (DEMOCRÁTICO)
Eu penso, mas posso
estar errado, que deveríamos estar mais discutindo uma possível afronta ao
princípio da legalidade e menos criticando o seu conteúdo. É preciso construir
um conhecimento mais sofisticado sobre isso.
Já no art. 5º, II,
da Constituição Federal, temos “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de
fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Assim, a eficácia de toda a
atividade administrativa está condicionada ao atendimento da lei e do
direito.[1] A Constituição de 1988 iniciou um verdadeiro processo de
(re)democratização, com o estabelecimento de um sistema de hierarquia dos atos
normativos (art. 59) e, até mesmo, a revogação de todos os dispositivos legais
que atribuíam ou delegavam a órgão do Poder Executivo competência assinalada
pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente no que tange a: (i) ação
normativa; (ii) alocação ou transferência de recursos de qualquer espécie,
conforme art. 25 do Ato Das Disposições Constitucionais Transitórias.
As considerações de
Délton Winter de Carvalho, que analisa as espécies normativas e sua hierarquia
valorativa em matéria ambiental, resumem bem o nosso sentimento:
cumpre destacar que
em favor do sistema constitucional, que estabelece um sistema de hierarquia dos
atos normativos, está o princípio democrático, uma vez que as matérias
submetidas ao legislativo pressupõem a garantia de debate pelos representantes
políticos dos cidadãos; uma maior ressonância e poder de controle por estes,
maior poder de cobrança de seus representantes pelos membros da população e
eleitores; o resguardo ao devido processo legal; e enaltecimento da
representatividade de diversas forças ideológicas ou políticas.[2]
A referência
constitucional é a lei, e não decretos, regulamentos portarias, resoluções,
instruções normativas e o escambau. José Afonso da Silva esclarece:
Poder regulamentar
é a faculdade de expedir regulamentos para fiel execução das leis federais que
a Constituição outorga ao presidente da República. Trata-se de poder
administrativo, no exercício desse poder permite ao presidente da república
cumprir sua função executiva no que tem de mais característico; execução da
lei. Chama-se, com efeito, ‘regulamento’ o decreto que consigna um conjunto
ordenado de normas destinadas à melhor execução da lei, ou ao melhor exercício
de uma atribuição ou faculdade consagrada expressamente na Constituição. [...]
O poder regulamentar não é poder legislativo, por conseguinte não pode criar
normatividade que inove a ordem jurídica. [...] O regulamento tem limites
decorrentes do direito positivo. Deve respeitar os textos constitucionais, a
lei regulamentada e a legislação, em geral, e as fontes subsidiárias a que ela
se reporta.[3]
Assim, os decretos
têm a “estrita finalidade de produzir as disposições operacionais uniformizadoras
necessárias à execução de lei cuja aplicação demande atuação da Administrativa
Pública”.[4] Com efeito, não se pode admitir que o Poder Executivo crie ou
alargue restrições em matéria previdenciária. Neste nível, somente a lei tem
poder de inovar e dizer que não será possível computar o tempo em gozo de
benefício como tempo de serviço especial, e não o Dec. 10.410/2020.
Exemplos são muitos
e colocam o problema da escolha. Mas pensando na questão dos efeitos
financeiros a partir do fornecimento de elementos suficientes para a concessão
do benefício em sede de revisão ou recurso administrativo.
Os arts. 176, § 7º,
e 347, § 4º, do RPS, são ilegais, não apenas porque contrários ao que prevê a
Lei 9.784, de 1999, no seu art. 29, como bem defende Alexandre Triches. O
direito adquirido não está condicionado ao momento de sua comprovação, tampouco
seus efeitos financeiros, que devem retroagir à data do requerimento administrativo,
conforme arts. 54 e 57, § 2º, combinados com o art. 49, inciso II, da Lei
8.213/1991. Este é o entendimento do próprio STJ, como fica claro na Pet.
9.582/STJ:
PREVIDENCIÁRIO.
INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. APOSENTADORIA ESPECIAL. TERMO
INICIAL: DATA DO REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO, QUANDO JÁ PREENCHIDOS OS
REQUISITOS PARA A CONCESSÃO DO BENEFÍCIO. INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DE
JURISPRUDÊNCIA PROVIDO. 1. O art. 57, § 2o., da Lei 8.213/91 confere à
aposentadoria especial o mesmo tratamento dado para a fixação do termo inicial
da aposentadoria por idade, qual seja, a data de entrada do requerimento
administrativo para todos os segurados, exceto o empregado. 2. A comprovação
extemporânea da situação jurídica consolidada em momento anterior não tem o
condão de afastar o direito adquirido do segurado, impondo-se o reconhecimento do
direito ao benefício previdenciário no momento do requerimento administrativo,
quando preenchidos os requisitos para a concessão da aposentadoria. 3. In casu,
merece reparos o acórdão recorrido que, a despeito de reconhecer que o segurado
já havia implementado os requisitos para a concessão de aposentadoria especial
na data do requerimento administrativo, determinou a data inicial do benefício
em momento posterior, quando foram apresentados em juízo os documentos
comprobatórios do tempo laborado em condições especiais. 4. Incidente de
uniformização provido para fazer prevalecer a orientação ora firmada. (Pet
9.582/RS, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em
26/08/2015, DJe 16/09/2015)[5]
Num suposto
conflito com a Lei de Benefícios, o decreto executivo fica abaixo da lei
infraconstitucional. A propósito, no julgamento do tema 709, o Supremo Tribunal
Federal reiterou que:
A Lei nº 8.213/91,
em seu art. 57, § 2º, cuidou de disciplinar o tema da data de início da
aposentadoria especial, fazendo uma remissão ao art. 49 daquele mesmo diploma
legislativo. Eis que, desse modo, a legislação de regência já cuidou de regular
o assunto, estabelecendo que o benefício será devido (i) da data do
desligamento do emprego, quando requerido até essa data, ou até noventa dias
depois dela (inciso I, alínea a); (ii) da data do requerimento, quando não
houver desligamento do emprego ou quando o benefício for requerido após o prazo
previsto na alínea a (inciso I, alínea b). Conforme se nota, inexiste, no
referente ao assunto, vácuo legislativo, de modo que afastar a previsão do art.
57, § 2º, da Lei de Planos de Benefícios da Previdência Social para fazer
valer, em detrimento dessa norma, o art. 57, § 8º - quando esse nem sequer foi
editado com vistas a regular a questão da data de início dos benefícios -
significaria evidente violência às prerrogativas do Poder Legislativo.
Dito de outra
forma, caso acolhido o pedido da autarquia nesse ponto, o Supremo Tribunal
Federal estaria claramente a legislar, o que lhe é terminantemente vedado. O
legislador, no exercício de suas atribuições constitucionalmente conferidas,
houve por bem fixar uma determinada disciplina para a data de início do
benefício – essa disciplina encontra-se no art. 57, § 2º, da Lei nº 8.213/91. A
referida norma encontra-se em harmonia com o ordenamento jurídico e, até o
momento, não teve sua constitucionalidade questionada. Não há razão, portanto,
para se negar aplicação a ela.
Não existe, portanto, “vácuo legislativo” a permitir que se fixe em outro momento o início do benefício que não a data de entrada do requerimento no INSS, bem como seus efeitos financeiros.[6] Abre-se aqui um parágrafos para dizer que essa compreensão pode – deve – ser considerada na questão da reafirmação de DER (tema 995/STJ), já que pouco importa se os requisitos ensejadores do benefício foram cumpridos antes ou depois da Data de Ajuizamento da Ação. Nada autoriza a subtração desses valores, vale dizer: de caráter alimentar! Decisões anteriores da Corte Cidadã confirmam tal orientação, não se justificando qualquer dúvida em sentido contrário num sistema que tem como vetor de racionalidade o princípio da coerência (CPC, art. 926). Julgados da Corte Especial começaram a assumir a nova orientação, buscando efetivar a coerência.[7] É como bem anotou o Des. Osni Cardoso Filho: “o entendimento de que não é razoável condenar o INSS ao pagamento de parcelas anteriores à decisão que reafirma a DER não se coaduna com os direitos fundamentais à proteção social e à prestação jurisdicional efetiva.” (TRF4 5003819-74.2012.4.04.7117, QUINTA TURMA, Relator OSNI CARDOSO FILHO, juntado aos autos em 08/09/2020).
O que estamos
assistindo em matéria previdenciária é, também, uma verdadeira “sobrevaloração
de instrumentos normativos de hierarquia inferior à lei em sentido estrito”.[8]
Escrito por Diego
Henrique Schuster
___________________________________
Bah1: MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 41. Ed.
São Paulo: Maralheiros, 2015. p. 90.
Bah2: CARVALHO, Délton Winter de. Gestão jurídica ambiental. São Paulo:
Editora dos Tribunais, 2017. p. 46.
Bah3: SILVA, José Afonso. Comentário contextual à Constituição. 4. Ed.
São Paulo: Malheiros, 2007. p. 484.
Bah4: BANDEIRA DE MELLO. Celso Antônio. Curso de direito administrativo.
25. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 337.
Bah5: Nesse sentido: Súmula 33 da TNU: “Quando o segurado houver
preenchido os requisitos legais para concessão da aposentadoria por tempo de
serviço na data do requerimento administrativo, esta data será o termo inicial
da concessão do benefício.” Súmula 107/TRF4: “O reconhecimento de verbas
remuneratórias em reclamatória trabalhista autoriza o segurado a postular a
revisão da renda mensal inicial, ainda que o INSS não tenha integrado a lide,
devendo retroagir o termo inicial dos efeitos financeiros da revisão à data da
concessão do benefício.”
Bah6: O jurista José Antonio Savaris chamou a minha atenção para esse
trecho do voto.
Bah7: MARQUES, Mauro Campbell. Hermenêutica:
coerência e integridade como vetores interpretativos no discurso jurídico. STRECK, Lenio Luiz; ALVIM, Eduardo Arruda;
LEITE, George Salomão. IN: Hermenêutica e
jurisprudência no Código de Processo Civil: coerência e integridade. 2. ed.
São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 182-208.
Bah8: Essa é uma crítica lançada pelo jurista Délton Winter de Carvalho
sob o prisma exclusivo do direito ambiental, o que me inspirou a trazer a
discussão para o direito previdenciário.
Comentários
Postar um comentário