DIREITO À CUMULAÇÃO DE BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS: SEM REDUÇÃO DO VALOR DOS BENEFÍCIOS?



Como já se viu, é possível a cumulação de pensão por morte com aposentadoria na nova previdência. No entanto, na hipótese de acumulação é assegurado o direito de recebimento do valor integral do benefício mais vantajoso e de uma parte de cada um dos demais benefícios, apurada cumulativamente de acordo faixas previstas no art. 24, § 2º, da EC 103/2019.
A pensão por morte concedida a dependente de segurado do Regime Geral de Previdência Social ou de servidor público federal será equivalente a uma cota familiar de 50% (cinquenta por cento) do valor da aposentadoria recebida pelo segurado ou servidor ou daquela a que teria direito se fosse aposentado por incapacidade permanente na data do óbito, acrescida de cotas de 10 (dez) pontos percentuais por dependente, até o máximo de 100% (cem por cento).
O problema, agora, é que o cálculo da média da aposentadoria por idade (regra transitória) e das aposentadorias concedidas à luz das regras de transição previstas nos arts. 15 e 16 (pontos e idade) corresponderá à 60% média + 2% a cada ano que ultrapassar os 20, se homem, e 15 anos, se mulher, de todo o período contributivo desde a competência 07/94 ou da primeira contribuição. A aposentadoria por invalidez (“por incapacidade permanente”) agora é (quase) proporcional ao tempo de contribuição, com a aplicação do mesmo critério, salvo nos casos de acidente de trabalho, doenças profissionais e doenças do trabalho, sem falar na impossibilidade de o valor ser inferior ao salário mínimo – no RPPS já era assim.
Assim, uma das revisões possíveis será defender que o instituidor já preenchia os requisitos ensejadores do benefício de aposentadoria, pela regra anterior. Oportuna a citação da Súmula 416 do STJ: “É devida a pensão por morte aos dependentes do segurado que, apesar de ter perdido essa qualidade, preencheu os requisitos legais para a obtenção de aposentadoria até a data do seu óbito”.
E no caso de alguém que se aposentou pelas regras anteriores e seu cônjuge falece agora, na vigência da EC 103/2019, deixando-lhe uma pensão por morte. É necessário perguntar humildemente: A aposentadoria pode ser reduzida mesmo tento direito adquirido ao benefício antes da reforma? Vamos deixar bem claro, estamos trabalhando com a hipótese de o valor da pensão por morte ser o benefício mais vantajoso, logo, a redução que fala o dispositivo supramencionado (de acordo com faixas) deve recair sobre o benefício da aposentadoria. Exemplo: a esposa recebe uma aposentadoria do INSS dede 2017, cujo valor atual é de R$2.000,00, sendo que o marido servidor público aposentado pela União faleceu em 15/11/2019 e deixou uma pensão de R$5.000,00.
Estaria a nova ordem “retroagindo” para atingir a aposentadoria recebida do INSS? A discussão pode ser trabalhada sob um enfoque diferente. Interessante a fábula “O Jacaré e o Sapo”:[1]
O jacaré e o Sapo nadavam em paz no Grande lago Tsé-Chuin, quando o sábio Oi-Ti-Sin gritou da margem:
- Ei, Jacaré, o Tai-Kum acaba de decretar que de hoje em diante é permitido de novo matar e comer qualquer animal com rabo. Olha, vem aí o barco do xogum!
O Jacaré imediatamente pôs em movimento suas poderosas patas, gritando:
- Trepa nas minhas costas, Sapo, que eu te salvo. Mas o Sapo continuou nadando tranquilo, dizendo:
- Ué, e eu lá tenho rabo? – e foi se aproximando, destemeroso, do barco de pesca, facilitando ser apanhado pela rede que os pescadores atiravam. E, ao se sentir preso, pôs-se a gritar:
- Me soltem, me soltem! Eu não tenho rabo! Eu não tenho rabo! Mas o Jacaré, protegido por trás de uma pedra, invectivou:
- Nossas leis têm efeito retroativo, idiota! Você não tem rabo, mas teve, quando era girino.
Poder-se-ia alegar que a EC 103/2019 não pode alcançar o direito (adquirido) do beneficiário de continuar recebendo uma aposentadoria integral (sem redução do valor)? Por outras palavras, não poderíamos alegar que o benefício menos vantajoso não pode sofrer uma redução no valor, com fundamento no princípio da irredutibilidade do Valor dos Benefícios (art. 194, parágrafo único, IV, da CF/88)?
Enfim, parece-me que o direito adquirido a um dos benefícios antes da reforma não garante o direito à cumulação integral, vale dizer: não é garantia contra a redução do valor da aposentadoria concedida no regime anterior, tampouco eventual vedação da cumulação (mas esse não é o caso). Assim como na discussão envolvendo a cumulação de aposentadoria e auxílio-acidente ou, até mesmo, a possibilidade de conversão do tempo de serviço comum em especial, a tendência é que os tribunais superiores digam que o direito à cumulação, sem redução no valor, é possível, desde que ambos benefícios sejam anteriores à vigência da Lei 9.528/97 (o preenchimento dos requisitos ensejadores da aposentadoria e o óbito do cônjuge precisam ocorrer antes da EC 103/2019).
Sobre a possibilidade de cumulação do auxílio-acidente com qualquer aposentadoria, já cheguei a concordar que o direito adquirido ao auxílio-acidente vitalício e, consequentemente, a acumulação com outra aposentadoria no futuro, nascia com o acidente (que gerou a sequela) ocorrido em data anterior à Lei 9.528/1997. Afirmei que, uma vez concedido o auxílio-acidente de forma vitalícia, não pode lei posterior condicionar sua manutenção à concessão de outra aposentadoria, que é um direito fundamental e não admite restrição que não fundamentada em outro valor constitucional. A questão da cumulação não se interpõe entre o direito (adquirido) ao auxílio-acidente vitalício e a concessão de qualquer aposentadoria. O restante da explicação vai para a nota de rodapé.[2]
Mas voltando à nossa pergunta, penso que a questão envolvendo a cumulação de auxílio-acidente e aposentadoria é diferente. A resposta poderia ser objetiva, mas nem o óbvio dispensa reflexão. Na verdade, gosto de trabalhar na pergunta, tanto de maneira teórica como prática. O artigo é só um pretexto para se pensar de forma integrada as mudanças, vale dizer: a partir de um confronto com a tradição. Agora, respeito aqueles que concordam e defendem a tese.

Escrito por Diego Henrique Schuster
___________________________________
Bah1: MILLÔR, Fernandes. 100 fábulas fabulosas. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 224.
Bah2: Tal equívoco de interpretação reside no deslocamento da discussão sobre o direito ao benefício vitalício em favor da possibilidade de sua cumulação, ou não, com qualquer aposentadoria, inaugurada pela Lei 9.528/1997. Como se não bastasse, tal entendimento restou sumulado, promovendo uma “coagulação dos sentidos”. Assim, o segurado que não possui direito ao auxílio-acidente vitalício não pode, agora à luz da Lei 9.528/1997, cumulá-lo com qualquer aposentadoria, ao passo que o segurado que possui direito ao auxílio-acidente vitalício pode, sim, cumulá-lo com qualquer aposentadoria, independentemente do momento da sua concessão, já que o benefício do auxílio-acidente não lhe pode ser retirado (por ser vitalício), enquanto o benefício de aposentadoria não lhe pode ser negado (por ser um direito fundamental). Cumpre perguntar: é o benefício de auxílio-acidente que não pode ser cumulado com a aposentadoria ou a aposentadoria que não pode ser cumulada com o auxílio-acidente? Antes da Lei 9.528/1997, não estava sequer em jogo a possibilidade de cumulação, logo, a concessão da aposentadoria – a qualquer tempo – não pode prejudicar a continuidade do recebimento do auxílio-acidente vitalício. Não existia na legislação previdenciária qualquer vedação à cumulação. Após a mudança no sistema normativo, aí sim, o auxílio-acidente – concedido a partir de 1997 – não pode ser cumulado com qualquer aposentadoria, exatamente, por não ser vitalício, em homenagem aos princípios do direito adquirido, tempus regit actum e da legalidade, sendo possível, porém, a sua inclusão no salário de contribuição das aposentadorias para atenuar a proibição.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PRIMEIRAS IMPRESSÕES SOBRE A DECISÃO PROFERIDA EM SEDE DE ED: TEMA 1.102/STF

REVISÃO DA VIDA TODA: VAMOS INTERPRETAR/COMPREENDER PARA DECIDIR?

A EQUIVOCADA APLICAÇÃO DO TEMA 629/STJ: ESTAMOS INVERTENDO AS COISAS