Embora devêssemos pensar o
tempo no processo para muito além das meras preclusões, das aquisições e das
perdas que ele proporciona, a questão dos limites temporais da coisa julgada costuma
ser trabalhada numa dimensão cronológica fática, numa relação entre “antes”,
“durante” e “depois”.
De acordo com Manuel Serra Domínguez: “[…]
el factor tiempo no opera por sí mismo como elemento identificado de la cosa
juzgada, sino más bien como elemento que permite separar temporalmente unos
hechos de otros distintos, delimitando en el tiempo la causa de pedir”.[1]
No centro de tudo está o
conceito de causa de pedir. Após defender que a causa de pedir é formada
pelo conjunto de fatos essenciais (acontecimentos concretos da vida)
contemplados na situação de vantagem objetiva que servem de base à obtenção de
consequências jurídicas pretendidas pela parte no processo em um determinado
momento no tempo e no espaço, Darci Guimarães Ribeiro explica: “[...] uma vez
mudado o fato constitutivo do qual a parte extrai as consequências jurídicas
necessárias para configurar a situação de vantagem jurídica, estaremos diante
de uma diversa causa de pedir e, consequentemente, de uma diversa pretensão processual.”[2]
Quando o assunto é
benefício por incapacidade e coisa julgada, duas são as possibilidades (que se compartilha aqui): uma
coisa é o agravamento da mesma doença (no quadro clínico ou condições pessoais
do segurado); outra, bem distinta, é a existência de doenças diferentes e
sobrepostas, que tiveram seu início na mesma época.
É de se ver que, nas ações
de concessões de benefícios por incapacidade, a alteração nas condições de
saúde do segurado justifica um novo requerimento administrativo e,
consequentemente, uma nova ação previdenciária. Assim, defende-se que é devido o afastamento da coisa
julgada diante de uma mudança da situação de fato ocorrida tanto após o
trânsito em julgado[3] como após o encerramento da instrução da demanda
anterior. Oportuno um exemplo clássico da doutrina civilista para justificar a segunda
hipótese: “[...] “assim, se o autor pede o despejo, alegando danos nas paredes
do imóvel, não pode propor outra ação, alegando danos nas portas, salvo se
ocorridos após o encerramento da instrução”.[4] Neste nível, os efeitos
financeiros devem coincidir com o início da incapacidade para o trabalho.
E se a doença “nova” já existia ao tempo da propositura da primeira
ação? É possível a limitação dos efeitos financeiros ao trânsito em julgado da
demanda anterior? Reconhece-se a dificuldade ou, até mesmo, a falta de um propósito
útil nessa pergunta. Isso porque, na prática, como admitir que uma outra doença
(diferente da alegada) tenha simplesmente escapado da análise? Mesmo com um
grande período de latência, o que importa é a incapacidade para o trabalho
naquele momento. É claro que 10 a 15 minutos de perícia médica é tempo
insuficiente para uma adequada anamnese.
Do ponto de vista teórico – em que amenizada a interferência da
viabilidade prática –, concordando-se que determinado fato (essencial) não
foi discutido em contraditório na demanda anterior, a superação da coisa
julgada, com fundamento numa nova causa de pedir, traz consigo a possibilidade
de se analisar os efeitos financeiros de forma completamente independente. Por
outras palavras, ou fez coisa julgada ou não. O afastamento da coisa julgada
implica a possibilidade de os efeitos financeiros coincidirem com o início da
incapacidade para o trabalho, ou seja, independentemente do momento processual –
no processo anterior. Para não dizer que situações podem acontecer e a resposta do Poder Judiciário conforta o nosso entendimento:
PREVIDENCIÁRIO.
COISA JULGADA benefício por incapacidade. AGRAVAMENTO. inocorrência.
APOSENTADORIA POR INVALIDEZ. termo inicial no cancelamento. POSSIBILIDADE.
correção monetária. INPC. TEMA 905/STJ. 1. A sentença que decide a relação
jurídica previdenciária em torno da prestação de benefícios previdenciários por
incapacidade contém implicitamente a cláusula rebus sic stantibus, a
qual subordina a eficácia e a autoridade da decisão, no tempo, à permanência
das situações de fato e de direito que ensejaram a criação da norma jurídica
individualizada contida no dispositivo sentencial. 2. O advento do quadro de
incapacidade ou do agravamento incapacitante da doença faz surgir uma nova
causa de pedir, ensejando a propositura de uma nova ação. O agravamento de patologia
incapacitante não reconhecida em outra ação demanda avaliação médica, não
pode estar baseado, extreme de dúvida, apenas nos documentos médicos
acostados com a inicial, que, aparentemente coincidem com aqueles que
instruíram a primeira ação julgada improcedente. 3. O
trânsito em julgado pode interessar como ficção para a
delimitação temporal da coisa julgada, mas é um dado totalmente alheio à
situação fática, porquanto ele ocorre muito tempo depois da avaliação médica.
Em um caso qualquer, logo após a perícia, pode o segurado que até ali se
encontrava capaz, ter um agravamento (uma crise aguda qualquer) e dela não
mais se recuperar, mas o trânsito em julgado da sentença de improcedência,
porque ele não se conformou e recorreu (afinal, dias depois da perícia piorou
muito), e o tribunal ad quem levou dois anos para negar provimento ao seu
recurso. Não se pode congelar a incapacidade, ou deixá-la refém do tempo
processual. O exame da causa de pedir é mister sutil, sobretudo nas ações
previdenciárias por incapacidade, em que se discute a as condições de
sobrevivência e dignidade do autor da ação, conforme sensibilidade da
jurisprudência desta Corte (v.g. ARS 5027592-52.2018.4.04.0000, TERCEIRA SEÇÃO,
Relator JOÃO BATISTA PINTO SILVEIRA, juntado aos autos em 04/03/2020). 4.
Permanecendo o mesmo quadro fático e jurídico presente quando da prolação da
sentença, a decisão se manterá eficaz em sua plenitude. Por outro lado, havendo
superveniente alteração desse estado de fato ou de direito, cessará a eficácia da
sentença a partir do momento em que se operar a modificação. Sobre a atuação da
cláusula rebus, vejam-se os seguintes julgados do Supremo Tribunal
Federal: MS 26323 AgR, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma,
julgado em 01/09/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-181 DIVULG 11-09-2015 PUBLIC
14-09-2015; RE 596663, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/
Acórdão: Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 24/09/2014,
ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-232 DIVULG 25-11-2014 PUBLIC
26-11-2014; MS 26980 AgR, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma,
julgado em 22/04/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-086 DIVULG 07-05-2014 PUBLIC
08-05-2014. Também o STJ entende que "é possível a propositura de nova
ação pleiteando o mesmo benefício, desde que fundada em causa de pedir diversa,
decorrente de eventual agravamento do estado de saúde da parte, com o
surgimento de novas enfermidades". (AgRg no AREsp 843.233/SP, Rel.
Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 15/03/2016, DJe
17/03/2016). 5. Prevalece na Colenda Terceira Seção deste TRF o entendimento de
que o direito à retroação do benefício desde a data do cancelamento
administrativo, não ofende a coisa julgada, uma vez que a sentença
proferida na segunda demanda não examinou a mesma relação jurídica
continuativa, mas uma nova relação jurídica, fundada em fato constitutivo
inédito do mesmo direito ao benefício previdenciário. (TRF4, CUMPRIMENTO
DE SENTENÇA CONTRA FAZENDA PÚBLICA (SEÇÃO) Nº 5000594-13.2019.4.04.0000, 3ª Seção,
Rel. Desembargador Federal OSNI CARDOSO FILHO, POR MAIORIA, JUNTADO AOS AUTOS
EM 31/07/2019). 4. A correção monetária incidirá a contar do vencimento de cada
prestação e será calculada pelos índices oficiais e aceitos na jurisprudência,
quais sejam: INPC no que se refere ao período posterior à vigência da Lei
11.430/2006, que incluiu o art. 41-A na Lei 8.213/91, conforme deliberação do
STJ no julgamento do Tema 905 (REsp nº 1.495.146 - MG, Rel. Min. Mauro Campbell
Marques, D DE 02-03-2018), o qual resta inalterada após a conclusão do
julgamento de todos os EDs opostos ao RE 870947 pelo Plenário do STF em
03-102019 (Tema 810 da repercussão geral), pois foi rejeitada a modulação dos
efeitos da decisão de mérito. 5. Recurso da Autarquia parcialmente provido.
(TRF4, AC 5004699-72.2020.4.04.9999, TURMA REGIONAL SUPLEMENTAR DE SC, Relator
PAULO AFONSO BRUM VAZ, juntado aos autos em 05/06/2020)
Com efeito, o trânsito em julgado do primeiro processo não pode ser
tratado como um obstáculo ou limite para os efeitos financeiros de uma demanda
que não é idêntica - que superou a tese
da tríplice identidade, com fundamento, exatamente, na existência de nova causa
de pedir. A diferença na causa de pedir acarreta nova ação.
A medida bem se ajusta ao
art. 503 do Código de Processo Civil, que limita o alcance da coisa julgada,
quer dizer, o alcance da imutabilidade da sentença anterior, ao limite das
questões que decidiu, ou seja, aquilo que foi efetivamente objeto de profunda
discussão e oportunidade de amplo debate.
Não é possível o retorno
argumentativo para se tentar ampliar a causa de pedir da demanda anterior. O
afastamento da coisa julgada supera a tese do fato superveniente e da preclusão
de alegações, liberando o julgador para analisar o início da incapacidade e,
logicamente, os efeitos financeiros. Trabalha-se nos limites do que foi
discutido em contraditório na demanda anterior (do contraditório e da ampla defesa), logo, mesmo com o agravamento
ocorrido antes da formação da estabilidade, não se concorda com a proposição de
que tal fato poderia ser levantado com fundamento na tese do “fato
superveniente”, mesmo que tal comportamento pudesse ser esperado pelo autor.
Ademais, o fato
superveniente poderia demandar dilação de prova pericial. Então,
há sentido em limitar os efeitos financeiros à data do trânsito em julgado ou pelo
fato de que o autor poderia ter levantado a situação de agravamento após o
encerramento da instrução no processo de origem? Quantos são os processos em
que o autor podia fazer uso do documento e o fez, mas o julgador o
desconsiderou com fundamento no momento processual?
Façamos
um balanço de tudo isso: ao mesmo tempo em que o agravamento da doença é
colocado como condição para se justificar (causa de pedir) um novo pedido
(administrativo e judicial), é verdade que a prova médica produzida em juízo,
na demanda anterior, representa o ponto mais elevado do contraditório, por
contar com a participação de todas as partes, bem assim a possibilidade de
atualização do quadro clínico e condições pessoais do segurado. Com efeito, o
limite, ou melhor, o ponto de partida para os efeitos financeiros será a
comprovação da incapacidade para o trabalho ocorrida após o encerramento da
instrução, isto é, numa relação jurídica continuativa. Por outro lado, é possível a retroação do benefício à data do cancelamento administrativo, quando comprovado fato constitutivo inédito do mesmo direito ao benefício (TRF4, CUMPRIMENTO DE SENTENÇA CONTRA FAZENDA PÚBLICA (SEÇÃO) Nº 500594-13.2019.4.04.0000, 3ª Seção, Desembargador Federal OSNI CARDOSO FILHO, por maio, juntado aos autos em 31/07/2019). Em poucas
palavras, o que justifica o afastamento da coisa julgada é também o limite para
os efeitos financeiros.
Escrito por Diego Henrique
Schuster
___________________________________
Bah1: SERRA DOMÍNGUEZ, Manuel. Comentarios al código civil y complilaciones
forales. Madrid: Edersa, 1991. p. 747.
Bah2: RIBEIRO, Darci Guimarães. Análise
epistemológica dos limites objetivos da coisa julgada. In: STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo; ENGELMANN,
Wilson (Org.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do Programa de Pós-graduação em Direito da
UNISINOS: mestrado e doutorado: n. 9. Porto Alegre: Liv. do Advogado; São
Leopoldo: UNISINOS, 2012, p. 81-86.
Bah3: TRF4, Proc.
0010549-42.2013.404.9999/PR, 5ª Turma, Rel. Luiz Antonio Bonat, j. 15.09/2015,
D.E. 22/09/2015.
Bah4: TESHEINER, José Maria Rosa. Os
elementos da ação. Jusbrasil.
Disponível em: <http://desafiojur.jusbrasil.
com.br/artigos/157563991/os-elementos-da-acao-por-jose-maria-rosa-tesheiner>.
Acesso em: 14 maio 2020.
Comentários
Postar um comentário