INTERPRETAÇÃO: “ENCARE A ILUSÃO DA SUA ÓTICA” (HG)
Vejo pessoas compartilhando esse tipo de imagem como prova de que
ninguém está, necessariamente, errado ou certo, uma vez que tudo depende do
ponto de vista (do lado em que você se encontra). Confesso que não encontro um
resultado prático nisso. Estamos vendo, na primeira imagem, um número que, por
um lado, é um seis (“6”), e, por outro, é um nove. Isso é verdade – sobre isso
convergimos. Ainda, concordamos que é um número, e não uma letra – interpretar tem
limites, como ensina Lenio Streck. Na segunda imagem, estamos diante de um
cilindro que, dependendo do ângulo de incidência de luz, projeta uma sombra
quadrada ou circular. Então, agora, podemos começar a nossa discussão.
Com isso quero dizer que ter opiniões diferentes não significa que
sejamos incapazes de ver e – buscar – conhecer a verdade. Não se trata de
colocar um de cada lado. Na maioria das vezes esse discurso serve para
justificar uma postura irresponsável, ou seja, as imagens são utilizadas num
contexto equivocado.
Noutras vezes, mesmo convergindo sobre aquilo que estamos vendo, ainda assim,
divergimos sobre algum aspecto que poderia ficar de fora da discussão. É o que Ronald Dworkin denomina de “aguilhão semântico”. No seu livro, “Justiça para ouriços”, ele apresenta o
seguinte exemplo: se divergimos a respeito de se um amigo nosso é ou não
careca, apesar de concordarmos a respeito de quanto cabelo ele ainda tem, nossa
divergência é falsa ou meramente verbal.[1] Nas palavras do professor Lenio
Streck “o conceito de careca é um conceito criterial: as pessoas em geral
convergem a respeito dos critérios corretos para a sua aplicação e divergem,
apenas, sobre algumas aplicações que consideram marginais”.[2]
Muitos são os “operadores do direito” picados
por ele, perdendo-se em questões pouco ou nada relevantes diante da realidade –
que dispensa consenso.
Não adianta, tudo vai depender da abordagem e do
envolvimento com a causa- poderíamos dizer. Afinal, quando o documentário é
sobre a família de antílopes, vibramos com as suas escapadas e achamos cruel e
covarde o ataque do predador; quando é sobre a família de grandes felinos,
vibramos quando a leoa se arrisca contra coices e derruba o antílope para
saciar a fome de sua prole! Nesse ponto, importante suspendermos nossas opiniões prévias. Nesse
sentido, Hans-Georg Gadamer[3]:
Aquele que quer compreender não pode se entregar, já
desde o início, a causalidade de suas próprias opiniões prévias e ignorar a
mais obstinada e consequentemente possível opinião do texto – até que este,
finalmente, já não possa ser ouvido e perca sua suposta compreensão. Quem quer
compreender um texto, em princípio, deve estar disposto a deixar que ele diga
alguma coisa. Por isso, uma consciência formada hermeneuticamente tem que se
mostrar receptiva, desde o princípio, para a alteridade do texto. Mas essa
receptividade não pressupõe “neutralidade” com relação à coisa nem tampouco
auto-anulamento, mas inclui a apropriação das próprias opiniões prévias e
preconceitos, apropriação que se destaca destes. O que importa é dar-se conta
das próprias antecipações, para o próprio texto possa apresentar-se em sua
alteridade e obtenha assim a possibilidade de confrontar sua verdade com as
próprias opiniões prévias.
Trazendo esse exemplo para bem próximo das práticas
cotidianas dos juristas, Lenio Streck trabalhou com a filosofia hermenêutica
proposta por Hans-Georg Gadamer, que parte “[...] dos preconceitos
gerados pelo homem acerca do objeto a ser interpretado, e aí se introduz em um
círculo que vai do texto ao intérprete e regressa novamente ao texto para
encontrar em cada movimento circular um elemento que enriquece a interpretação,
até alcançar uma fusão de horizontes, na qual o intérprete assimila o conteúdo
do texto, fazendo-o parte de si mesmo, mas sem fazer com que o texto perca sua
própria autonomia; é dizer, o homem interpreta o texto a partir de sua própria
história, tempo, cultura, circunstância, a partir de seu horizonte, para trazer
até ele o essencial do horizonte do texto.”[4]
Escrito por Diego Henrique Schuster
___________________________________
Bah1: DWORKIN, Ronald. Justice
for Hedgehogs. Cambridge, Massachusetts, London: The Belknap Press of
Harvard University Press, 2011. p. 158-159.
Bah2: STRECK,
Lenio Luiz. O que é isto, ativismo judicial, em números?Revista
Consultor Jurídico, São Paulo, 26 out. 2013. Disponível em:
<https://www.conjur.com.br/2013-out-26/observatorio-constitucional-isto-ativismo-judicial-numeros>.
Acesso em: 22 set. 2019.
Bah3: GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: traços fundamentais de
uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 405.
Bah4: STRECK, Lenio Luiz. Da Epistemologia da
Interpretação à Ontologia da Compreensão: Gadamer e a tradição como background
para o engajamento no mundo (ou: uma crítica ao juiz solipsista tupiniquim). Revista Direito e Praxis. v. 6, n. 1. p.
1, 2015. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/11159>.
Acesso em: 23 set. 2019.
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