A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL É O QUE É: A DIFERENÇA ENTRE JEJUAR E PASSAR FOME



Não é difícil tecer críticas às regras previstas na PEC 06/2019 (uma simples simulação é suficiente para se compreender os prejuízos), o problema é mostrar suas desvantagens a partir de uma abordagem utilitarista. Sabemos que o cálculo utilitarista utilizado pelo governo não leva em conta as desigualdades sociais, os direitos sociais e o projeto de vida das pessoas.[1] O que importa, ao fim e ao cabo, são os “custos” evitados com a concessão e manutenção de benefícios previdenciários, numa soma total. Neste nível, não se atribui importância nem mesmo a reivindicações de direitos adquiridos ou expectados, o que desafia o pressuposto liberal da confiança.
Aos desvalidos (com baixa escolaridade e emprego inseguro) restará apenas a conformação com a necessidade de sobrevivência até os 65 aos de idade (homem) para se aposentarem. É dizer: os que não tiveram tempo nem condições para pautar sua conduta de acordo com as novas regras do jogo terão de ajustar seus desejos e expectativas àquilo que sem nenhuma ambição consideram exequíveis. Não podemos concordar com as regras de transição prevista na PEC 06/2019, isto é, independentemente das consequências, não importando o quanto elas podem ser injustas e aflitivas para a vida das pessoas envolvidas.
Mesmo assim, no polo oposto, alguns apoiam uma idade mínima para todos, sem distinção. No entanto, uma abordagem utilitarista sugere a necessidade de se examinar as consequências de uma idade mínima, também, em termos de resultados de custos, na economia. Há muitas evidências de que a falta do benefício previdenciário e a redução do seu valor poderá dificultar a existência de sustento social para os que não têm opção ou ficam para trás. E isso poderá contribuir para o aumento da violência, da injustiça, da exploração, da fome, da precarização do trabalho, das doenças, da ignorância, etcétera. Precisamos considerar essas conexões causais. Não podemos perder a batalha por falta de um prego, como ensina o antigo poema “Jacula Prudentum”, do poeta inglês George Herbert (1593-1632): “Por falta de um prego, perde-se a ferradura; por falta de uma ferradura, perde-se o cavalo; e por falta de um cavalo, perde-se o cavaleiro”. (N.T.)
A despeito de uma igualdade formal, no sentido de todos se aposentarem somente com 65 anos de idade (“seja rico ou seja pobre, o velhinho sempre vem”), as diferenças de idade, sexo, condições sociais (incluindo o acesso aos serviços de educação, saúde, etc.), renda familiar, enfim, podem fazer com que pessoas tenham oportunidades individuais de bem-estar e qualidade de vida divergentes.
Com efeito, o fim da aposentadoria por tempo de contribuição (independentemente de idade) tornará ainda mais difícil a vida de quem começou a trabalhar desde muito cedo e pesado, sem falar na redução do valor dos benefícios. O que um trabalhador, com mais de 56 anos de idade e baixa escolaridade, ganhará com a reforma da previdência? Se a “nova previdência” gerar novos empregos (como prometido) e o mercado lhe oferecer uma oportunidade, a resposta é fácil, qual seja, mais trabalho. E, ainda sim, essa será uma consequência da reforma, e não a sua finalidade. Caso negativo, ele será obrigado a trabalhar para sobreviver até os 65 anos de idade.
Tirar do trabalhador a opção de se aposentar antes dos 65 anos, com quase 35 anos de trabalho, faz com que a “nova previdência” seja o que é: escolher privilegiar instituições financeiras e forçar aquele que não tem escolha a trabalhar mais. Reformar às custas de quem ganha de um a dois salários mínimo (de quem mais precisa do benefício previdenciário) é tudo menos combater privilégios.
De qualquer maneira, é possível que todos apoiem a reforma, desejando o crescimento econômico. Acontece que esse comportamento de escolha coincidente não representa o que cada pessoa obterá de utilidade (bem-estar ou qualidade de vida) com isso. Amartya Sem lembra que, numa visão utilitarista, pode-se definir injustiça como uma “perda agregada de utilidade em comparação com o que poderia ter sido obtido”.[2] Nessa perspectiva, como demonstrar que um pobre empregado que hoje espera se aposentar dentro de três anos obterá o mesmo benefício de quem faz da aposentadoria uma opção (um extra), tendo que esperar mais 10 anos? Por exemplo,
uma pessoa abastada que faz jejum pode ter a mesma realização de funcionamento quanto a comer ou nutrir-se que uma pessoa destituída, forçada a passar fome extrema, mas a primeira pessoa possui um ‘conjunto capacitário’ diferente do da segunda (a primeira pode escolher comer bem e ser bem nutrida de um modo impossível para a segunda).[3]
Desejar o crescimento econômico é, portanto, muito diferente de explicar os impactos sociais da reforma. Não se pode querer fundamentar a reforma comparando o desejo das pessoas em relação ao país, pois “tudo é igual quando se pensa em como tudo poderia ser” (HG). Além do mais, o crescimento econômico não é tudo, digo, o país não precisa esperar até a economia melhorar ou ser muito rico para investir em educação básica e serviços de saúde, por exemplo:
O processo conduzido pelo custeio público é uma receita para a rápida realização de uma qualidade de vida melhor, e isso tem grande importância para as políticas, mas permanece um excelente argumento para passar-se daí a realizações mais amplas que incluem o crescimento econômico e a elevação das características clássicas da qualidade de vida.[4]
Ironicamente, no Brasil, estamos cortando recursos, justamente, para a educação básica e os serviços de saúde não são prioridade. A história contada nos livros depõe contra o Brasil, conforme análise feita por Amartya Sen, em 2010:
A expansão de oportunidades sociais serviu para facilitar o desenvolvimento econômico com alto nível de emprego, criando também circunstâncias favoráveis para a redução das taxas de mortalidade e para o aumento da expectativa de vida. O contraste é nítido com outros países de crescimento elevado – como o Brasil – que apresentaram um crescimento do PNB per capita quase comparável, mas também têm uma longa história de grava desigualdade social, desemprego e descaso com o serviço público de saúde. [5]
Esse atraso social deixou o país despreparado para uma expansão da econômica. É por isso que insisto: não estamos no caminho e nem no que se dirige a ele. A falta de recursos é apresentada como argumento não para postergar investimentos socialmente importantes, mas para cortar ou reduzir investimentos em serviços básicos. A pergunta que devemos fazer é a seguinte: O que lhe faz acreditar que o governo está comprometido com o social? Educação e serviços de saúde são um luxo de países ricos? Não deveríamos considerar as oportunidades sociais reais que as pessoas têm antes de instituir uma idade mínima tão elevada? Essas são boas perguntas e podem tangenciar o problema.
Deve ter ficado claro, não se pode cair na ilusão de pensar que a “nova previdência” gerará empregos e, com muito mais razão, para pessoas com idade acima de 60 anos – tá difícil para os jovens. Se o leitor não tiver muito interesse pelos números não haverá problema em passar diretamente ao último parágrafo.
Existem boas razões para se apostar que, no mundo do trabalho, os riscos atingirão seu mais elevado nível, uma vez que as pessoas serão obrigadas a trabalhar para além de suas forças, sem opção, sem dignidade. Conforme o Anuário Estatístico da Previdência Social, lançado em janeiro de 2015 e referente a 2013, foi registrado, naquele ano, 717.911 acidentes de trabalho no Brasil. As ocorrências resultaram em 2.792 mortes. Ou seja, a cada dia, mais de sete trabalhadores brasileiros perdem a vida executando sua atividade profissional.[6] Tais números revelam uma distância muito grande entre a realidade e os preceitos normativos, o que dizer após a reforma trabalhista e a edição da lei da terceirização.
Ao mapear o perfil do trabalho decente no Brasil, a Organização Internacional do Trabalho – OIT trouxe dados dignos de alerta e preocupação, inclusive quanto aos custos que os acidentes de trabalho geram à economia do país. O custo no Brasil com acidentes do trabalho atingiu o expressivo montante de R$ 56,8 bilhões, sendo que R$ 14,2 bilhões representam a despesa da Previdência Social com pagamento de benefícios acidentários e aposentadorias especiais. O restante, cerca de R$ 42,6 bilhões, é o somatório de despesas com reabilitação física (assistência e tratamentos médicos), reabilitação profissional e o custo indireto das consequências, entre outros.[7] Com efeito, ao Estado é muito mais valioso propiciar a proteção dos trabalhadores/segurados do que negligenciá-la, pois poderá gerar tantos ou mais custos com doenças e acidentes laborais.
Por outro lado, há um aspecto que tem um interesse muito imediato para a economia e para a compreensão dos efeitos da reforma sobre esta, qual seja, os benefícios previdenciários injetam milhões na economia dos municípios, fazendo o dinheiro circular no comércio, por exemplo. Dos 5.568 municípios em 3.875 deles (70%) o valor dos repasses aos aposentados e demais beneficiários da Previdência supera o repasse do Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Em 4.589 municípios (82%) os pagamentos aos beneficiários do INSS superam a arrecadação municipal.[8]
Voltando para a necessidade de uma idade mínima (não 65 anos), é inegável, a expectativa de vida aumentou (que bom!).Uma explicação bem plausível para essa rápida elevação reside, exatamente, no aumento de serviços (programas) sociais, incluindo aqui a seguridade social e as oportunidades sociais geradas pelos benefícios previdenciários. Assim como a qualidade de vida pode ser muito melhorada mediante a expansão da educação básica e dos serviços de saúde, oportunidades sociais contribuem para o crescimento econômico. Em poucas palavras, embora sem ter como traduzir em números, acreditamos na interferência dos benefícios previdenciários no aumento da expectativa de vida e, com muito mais razão, no bem-estar do povo brasileiro.
A segurança protetora é necessária para proporcionar uma rede de segurança social, impedindo que a população afetada seja reduzida à miséria abjeta e, em alguns casos, até mesmo à fome e à morte. A esfera da segurança protetora inclui disposições institucionais fixas, como benefícios aos desempregados e suplementos de renda regulamentares para os indigentes, bem como mediadas ad hoc, como distribuição de alimentos em crises de fome coletiva ou empregos públicos de emergência para gerar renda para os necessitados.[9]
Portanto, a previdência social tem de ser julgada não apenas como um custo, mas como algo que, na perspectiva dos serviços socais, pode contribuir para o crescimento econômico. É claro que é mais fácil sustentar o contrário, ou seja, que o crescimento econômico pode ajudar o Estado a financiar, entre outras coisas, a seguridade social.
A questão crucial é: qual o plano para a política econômica e social do país? O que vem depois? Na hipótese de o governo não ter uma estratégia, devemos considerar as consequências de uma reforma precipitada e, do ponto de vista técnico, muito mal feita, vale dizer: injusta. Isso porque a previdência social, ainda que encarada como parte do problema, faz uma grande diferença no que diz respeito à distribuição de renda, fornecendo condições materiais para uma vida digna e inclusiva ao trabalhador e sua família.
Quais as prioridades aceitas? Seja qual for a abordagem, ela não pode assumir a forma de “tudo ou nada”, tampouco ignorar os direitos sociais ou condições de vida reais. O que parece, até agora, é que a abordagem é influenciada pela insensibilidade. Os números do governo não refletem aspectos importantíssimos como a qualidade de vida, a violação ou fruição de direitos, etc. O governo deve prestar atenção no bem-estar das pessoas e como isso repercute no seu psicológico e, consequentemente, na economia.

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Bah1: O presente artigo tem como inspiração as ideias de Amartya Sen.
Bah2: SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 85.
Bah3: SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 105.
Bah4: SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 71-72.
Bah5: SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 67.
Bah6: BRASIL. Ministério da Previdência Social. Instituto Nacional do Seguro Social. Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social. Anuário estatístico da previdência social AEPS 2013. Brasília, DF: MPS/DATAPREV, v. 22, p. 575, 2013. Disponível: <http://www.previdencia.gov.br/wp-content/uploads/2015/ 03/AEPS-2013-v.-26.02.pdf>. Acesso: 07 set. 2019.
Bah7: ACIDENTES consomem R$ 7,8 bilhões ao ano. Previdência Social, Brasília, DF, a. 2, n. 2, p. 17, jan./abr. 2012. Disponível em: <http://www.previdencia.gov.br/ arquivos/office/3_120425-115428-524.pdf>. Acesso em: 07 set. 2019.
Bah8: Impacto da Reforma na economia dos municípios (dez/2014). Dados retirados do material utilizado pelo advogado Anderson de Tomasi Ribeiro, na sua luta em defesa dos direitos sociais.
Bah9: SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 60.

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