Diálogo entre as fontes do Direito como possibilidade de construção de respostadas adequadas para preservar a saúde e dignidade do trabalhador
O que o Direto Previdenciário, o Direito
Ambiental e o Direito do Trabalho têm em comum? A preocupação com o meio
ambiente do trabalho. A preocupação com o meio ambiente do trabalho atravessa o
Direito Previdenciário de uma ponta à outra, com especial atenção para as
normas que versam sobre a saúde e segurança do trabalhador, com vistas à
caracterização e comprovação do tempo de serviço especial.
Antes de avançarmos, importante lembrar
que, na sua origem, a concessão da aposentadoria especial era prevista em caso
de exercício de atividade insalubre, penosa ou perigosa (Lei 3.807/60, art.
31).[1] É da CLT, portanto, que foram extraídos os conceitos de insalubridade e
de periculosidade (CLT, arts. 189 e 193).
A partir da Lei 9.732/1998[2], que
emprestou nova redação ao art. 58, da Lei 8.213/91, tem-se a exigência de que o
Laudo Técnico de Condições Ambientais do Trabalho (LTCAT), com base no qual é
preenchido o Perfil Profissiográfico Previdenciário (PPP), a ser fornecido pelo
segurado, como um dos meios de prova da atividade especial, observe os termos
da legislação trabalhista, como é o caso da Norma Regulamentar (NR) 15,
expedida pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Para José Antonio
Savaris, a insalubridade previdenciária parece coincidir agora com a
insalubridade trabalhista, ainda que a doutrina previdenciária possa ter uma
leitura diferente daquela operada pela trabalhista.[3]
Apesar do nosso ponto de partida ser a
legislação vigente ao tempo da prestação do serviço, existe espaço para se
buscar o referencial constitucional, prevalecendo a orientação espelhada na
Súmula 198 do extinto Tribunal Federal de Recursos – que nada mais é – e, por
isso muito – do que uma interpretação hermeneuticamente adequada do art. 201, §
1º, da CF (entendida, à toda evidência, no seu todo principiológico). Por
outras palavras, os decretos vigentes ao tempo da prestação do serviço não
excluem a Súmula 198 do ex-TFR e, consequentemente, o arcabouço de normas
existentes.
Assim sendo, diante da exclusão de agentes
pelo (atual) Decreto 3.048/1999, tais como: frio, umidade, radiações não
ionizantes, eletricidade, periculosidade, para citar apenas estes, a saída tem
sido usar as Normas Regulamentadoras da legislação trabalhista. O Superior
Tribunal de Justiça colocou um selo jurídico sobre essa conquista hermenêutica
no Tema Repetitivo 534), fixando a tese de que: “[...] as normas
regulamentadoras que estabelecem os casos de agentes e atividades nocivos à
saúde do trabalhador são exemplificativas, podendo ser tido como distinto o
labor que a técnica médica e a legislação correlata considerarem como
prejudiciais ao obreiro, desde que o trabalho seja permanente, não ocasional,
nem intermitente, em condições especiais (art. 57, § 3º, da Lei nº
8.213/1991)”.
Tudo isso, até aqui, parece bastante
tranquilo.
Existe, no Direito Previdenciário, um
espaço para uma interpretação “além do texto legal”. O que se exige é “a
afirmação técnica que permita a conclusão no sentido de que, ao tempo do
exercício da atividade, o segurado se encontrava exposto de modo habitual a
agentes nocivos a sua saúde”.[4]
O que torna o Direito Previdenciário um
campo fértil e promissor para a adoção do “diálogo entre as fontes” é, justamente,
a estagnação do próprio direito (Direito Trabalhista) em relação aos avanços tecnológicos e a
complexidade das relações envolvendo o meio ambiente de trabalho, por um lado;
e a índole protetiva das normas que atuam no meio ambiente laboral, com
especial atenção para os princípios por elas invocados, tais como da
prevenção/precaução, por outro. Ao avançar, a ciência encontra novas perguntas
e repostas, inclusive para riscos conhecidos. O direito, com certeza,
influenciado pela ciência, também deve evoluir em relação às medidas protetivas
e o reconhecimento do tempo de serviço especial, uma vez que o segurado não
pode ser penalizado por essa demora.
O direito previdenciário oferece ao
intérprete alternativas concretas para se operacionalizar o “diálogo entre as fontes do Direito”, termo utilizado pelo professor Wilson Engelmann, em sua pesquisa - denominada "Sociedade, Novos Direitos e Transnacionalização", do Programa de Pós-Graduação da Unisinos.
A jurisprudência previdenciária é o maior exemplo disso.
Um exemplo, claro, desse rompimento com a forma tradicional e fechada de interpretação, é adoção das Normas de Higiene Ocupacional. A NHO-01 é mais vantajosa para o segurado/trabalhador, por ser menos tolerante ao risco e, portanto, mais protetiva. Além disso, a NHO-01 oferece procedimentos alternativos para outros tipos de medidores integradores ou medidores de leitura instantânea, para avaliação de trabalhos com dinâmica operacional mais complexa ou que envolvam a movimentação constante do trabalhador. Agora, que fique muito claro, a NHO 01 não possui compromisso com os critérios legais estabelecidos nas normas trabalhistas, como fica claro na nota à fl. 21 da referida norma. A NHO 01 não possui fundamento legal, ou seja, ela não foi produzida. Os Temas 174 e 317 da Turma Nacional de Uniformização representam uma abertura hermenêutica, com a aplicação da NHO 01. É bem verdade que isso tem como fundamento a Instrução Normativa do INSS, que determina a observância da NHO 01 (art. 280 - IN/INSS/PRES - n. 77/2015), além de muitos juízes estarem aplicando o Tema 174 contra o destinatário das normas previdenciárias, ou seja, sem preocupação alguma com a saúde do trabalhador - são feitas leituras opostas para a pretensa concretização de um direito do trabalhador.
Seja como for, outro exemplo disso é o uso
da ISO, para fins de caracterização e comprovação da especialidade do labor em
razão da exposição ao agente físico vibração, potencialmente nocivo a saúde. A
ISO 2631-1997, em seu anexo B, um guia de “caráter informativo” sobre os
efeitos da vibração em relação à saúde. O que mais perto interessa à
problemática, contudo, é verificar que a ISO (International Organization for
Standardization) é um organismo não governamental que prova uma “normalização”
acerca de especificações de produtos, serviços e boas práticas internas e
externas, com vistas ao aperfeiçoamento industrial e comercial.[5]
Essas decisões comprovam que o Direito
Previdenciário tem condições de prestar respostas adequadas, vale dizer: para
atender o escopo de proteção do trabalhador. O mesmo vale para o Tema 170/TNU.
É possível se afirmar que a jurisprudência previdenciária compreendeu a
dimensão preventiva e protetiva das normas previdenciárias no julgamento do
Tema 170: “A redação do art. 68, § 4º, do Decreto 3.048/99 dada pelo Decreto
8.123/2013 pode ser aplicada na avaliação de tempo especial de períodos a ele
anteriores, incluindo-se, para qualquer período: (1) desnecessidade de
avaliação quantitativa; e (2) ausência de descaracterização pela existência de
EPI”.[6] Essa decisão privilegiou o caráter protetivo das normas
previdenciárias, os fins sociais a que ela se dirige (LINDB, art. 5º; CPC, art. 8º), e não o tal tempus regit actum (que sequer princípio é). Também é
digno de nota o Incidente de Assunção de Competência 5/TRF4, numa tentativa de construir critérios seguros e
controláveis para se definir o agente penosidade no caso de motoristas de
ônibus e, por analogia, caminhão.
O diálogo entre fontes do Direito pode servir não
apenas para o caso de ausência de previsão legal. Veja que o Regulamento de
Previdência Social (Dec. 3.048/1999) determina a observação dos limites de
tolerância da NR-15. Isso vale para os agentes químicos capazes de serem mensurados. Na questão da poeira mineral, a NR-15, no seu anexo 12, coloca 3
limites para o profissional escolher. Ainda, a sílica cristalizada, mesmo com a
aplicação do critério quantitativo por alguns magistrados, importante observar
que, para fins de controle de saúde ocupacional, o resultado “concentração de
Sílica Livre Cristalina” pode ser comparado com outros limites, por exemplo da
ACGIH (American Conference of Governamental Industrial Hygienists), que
estabelece o limite para Sílica Livre Cristalina (0,025 mg/m³).
O 1,3-butadieno está previsto no Anexo 11
da NR-15 com um limite de 780 ppm, enquanto que, na ACGIH, o limite é de 2ppm,
ou seja, no Brasil o limite de tolerância é 390 vezes maior. Em matéria
previdenciária, o nosso amadorismo me faz concluir que estamos brincando com a
saúde ou integridade física do segurado. Os índices de aceitabilidade mais
parecem índices de letalidade.
Assim sendo, diante da necessidade de prevenção e proteção do trabalhador, o julgador não só pode como deve fazer uso de diferentes normas acerca da segurança e saúde do trabalhador (e.g.: NHO´s, NR´s, ACGIH, além das Convenções que tratam sobre a saúde do trabalhador), devendo prevalecer as mais favoráveis (protetivas) ao segurado, ou seja, as normas com critérios menos tolerantes ao risco. Apesar de a ACGIH ser aplicada quando houver omissão nos anexos da NR-15[7], devemos (sempre) defender sua aplicação, porquanto os limites de exposição são constantemente atualizados pela ciência e, de modo geral, são mais protetivos, vale dizer: menos tolerantes ao risco. Dito por outras palavras, a resposta pode derivar da seleção e somatório de várias disposições de mais de uma fonte. Então, na prova pericial, o juiz pode – deve – determinar a observação da ACGIH para todas as substâncias. A prova pericial é condição para a decodificação e a construção técnica do sentido de risco, para fins de caracterização do tempo especial.
O Direito de proteção do trabalhador
jamais poderia ser negado com fundamento na ausência de previsão legal (especificamente previdenciária), na aplicação de limites de tolerância menos
protetivos ou no “princípio” tempus regit actum. Com relação a este
último, o que dizer do Tema Repetitivo 694, no qual o STJ determina a
observação do Dec. 2.172/1997, que exige um nível de ruído acima do qual se
assume o risco potencial de surdez ocupacional? Por outras palavras, o Superior
Tribunal de Justiça reduziu a caracterização e a comprovação da natureza
especial àquilo que se encontra num mero decretos previdenciário, o que
significa deixar de fora da aplicação do direito os princípios, a ciência e o
mundo prático. É algo como salvar a lei e ignorar a condição humana do
trabalhador.
O absurdo fica claro quando se possui
inúmeros acórdãos, dando conta de que os decretos previdenciários não excluem a
aplicação da Súmula 198 da ex-TFR, – ou seja, independentemente da lei vigente
ao tempo da prestação do serviço –, mas a mesma não é aplicada quando
reconhecida a insalubridade do ruído acima de 85 decibéis pela perícia
judicial, sem compromisso com o Dec. 2.172/97. Vale lembrar que o STF, no ARE
664.335/SC, reconhece a especialidade do ruído acima de 85 decibéis, com
fundamento na dúvida sobre seus efeitos vibratórios e a (in)eficácia do EPI;
mas o STJ insiste num ruído de 90 decibéis, mesmo sabendo que o tempo máximo de
exposição diária permissível é de 4 horas, metade da jornada de trabalho!
O mesmo vale para o risco à integridade física. É possível se afirmar que CLT (art. 193) e a NR-16 lançam uma visão parcial sobre as atividades perigosas. No âmbito da proteção previdenciária, contudo, é possível ao julgador ir além, uma vez que a “integridade física” aparece relacionada a todo e qualquer infortúnio de ordem física, que acontece em tempo real, no espaço de um instante, como esmagamento em um moinho, explosão em uma caldeira, queda de um andaime, eletrocussão em sistema de alta voltagem, etecetera; situações que exigem uma postura diferenciada por parte do magistrado, a saber, orientada para a gravidade das consequências de um determinado risco, como a morte drástica, com fundamento no princípio da prevenção/precaução. O suporte fático da norma previdenciária não limita o reconhecimento do trabalho em alturas, por exemplo.
Enfim, já deu para perceber a importância
do tema. Mais importante do que isso é compreender o papel do intérprete do
direito. Como leciona Lenio Streck: “O Direito não é apenas um conjunto de
textos. Os textos existem a partir das interrogações postas pelos intérpretes e
pela situação hermenêutica em que estes se encontram.”[8]. O diálogo entre as fontes do Direito também pressupõe o diálogo entre as partes (Procuradores do INSS, do
Ministério Público, do Ministério do Trabalho, Sindicatos, etc.), devendo o
juiz funcionar como um “coordenador” deste diálogo. Mas não é só isso. O diálogo entre as fontes do Direito propõe “uma flexibilização de um modelo hierarquizado de
fontes e adoção de um formato de interpretação/aplicação” [9], para além de uma
interpretação rígida, do método subsuntivo; afinal, de lançar mão de uma visão
mais holística e integrada das normas de saúde e segurança do trabalhador.
Em matéria de meio ambiente de trabalho existe uma antinomia que subjaz a toda essa discussão, qual seja, ao mesmo tempo que a Constituição exige do Estado e da sociedade um meio ambiente de trabalho equilibrado e saudável, assegurando o direito à “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” (art. 7º, inc. XXII), com vistas a conservar a “existência digna” do trabalhador (art. 170, caput), devendo até mesmo o SUS “colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido do trabalho”. (art. 200, inc. VIII); ela autoriza o pagamento de adicionais de insalubridade ou periculosidade (art. 7º, XXIII). A teoria do "diálogo entre as fontes do Direito" tem como fundamento a "coerência". A falta de coerência gera contradições e, por vezes, antinomias.
Uma nova mentalidade interpretativa, uma visão horizontalizada, na tentativa de corrigir contradições e incoerências[10], sob pena do Direito Previdenciário chegar atrasado na tentativa de prevenir danos – finalidade da aposentadoria especial. Tais normas "devem ser 'convidadas' para o 'diálogo' a partir de uma nova hermenêutica da prevenção, a qual, por sua vez, se materializa pelo conjunto círculo hermenêutico=princípio de solidariedade=consciência coletiva."[11]
________________________
Bah1:
Com a nova redação trazida pela Lei 8.213/91, as nomenclaturas penosidade,
periculosidade e insalubridade foram substituídas pela expressão prejudicial à
saúde ou à integridade física.
Bah3:
BRASIL. Lei n. 9.072, de 11 de dezembro de 1998. Altera dispositivos das Leis
nos 8.212 e 8.213, ambas de 24 de julho de 1991, da Lei no 9.317, de 5 de
dezembro de 1996, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9732.htm.
Acesso em: 13 fev. 2021.
Bah3:
SAVARIS, José Antonio. Direito processual previdenciário. 3. ed. Curitiba:
Juruá, 2011. p. 255.
Bah4:
SAVARIS, José Antonio. Direto processual previdenciário. 6. ed., Curitiba:
Juruá, 2016. p. 295.
Bah5:
ENGELMANN, Wilson; GÓES, Maurício de Carvalho. Direitos das nanotecnologias e o
meio ambiento do trabalho. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.p. 214.
Bah6:
Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei (Turma)
5006019-50.2013.4.04.7204, LUÍSA HICKEL GAMBA - TURMA NACIONAL DE
UNIFORMIZAÇÃO.
Bah7:
No item 9.6.1.1 da NR 9: “Na ausência de limites de tolerância previstos na
NR-15 e seus anexos, devem ser utilizados como referência para a adoção de
medidas de prevenção aqueles previstos pela American Conference of Governmental
Industrial Higyenists – ACGIH”.
Bah8:
STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas fundamentais da
Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte:
Letramento, 2017. p. 95.
Bah9:
ENGELMANN, Wilson; GÓES, Maurício de Carvalho. Direitos das nanotecnologias e o
meio ambiento do trabalho. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.p. 184.
Bah10: Tomando como recorte os riscos desconhecidos, provenientes das nanotecnologias, Wilson Engelmann trabalha com o "diálogo entre fontes": "O grande desafio é gerar uma teoria que possa identificar os elementos do suporte fático no Direito e não apenas na lei. Desta maneira, o modelo escalonado em forma de uma pirâmide, como Kelsen vislumbrava as estruturas das fontes, fortemente verticalizada, deverá ser substituído por uma organização horizontalizada das fontes, onde elas sejam dispostas uma ao lado da outra. Portanto, se substitui a hierarquia pelo diálogo, fertilizado pelo filtro de constitucionalidade assegurado pela Constituição da República. [...] Esse é o Direito que se apresenta para dar conta dos novos desafios que os humanos estão produzindo." ENGELMANN, Wilson. A (re)leitura da teoria do fato juridico à luz do “diálogo entre as fontes do direito”: abrindo espaços no direito privado constitucionalizado para o ingresso de novos direitos provenientes das nanotecnologias. In: Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica. Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos: mestrado e doutorado, Porto Alegre, n. 7, p. 289-308, 2010. p. 296.
Bah11: ENGELMANN, Wilson; GÓES, Maurício de Carvalho. Direitos das nanotecnologias e o meio ambiento do trabalho. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.p. 197.
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