ATÉ QUANDO? (FALTAM-ME PALAVRAS PARA UM TÍTULO MELHOR)

 

Imaginemos um segurado que trabalhou como “serrador”, com utilização de motosserras. O formulário PPP, expedido na forma exigida pela legislação previdenciária, comprova a sua exposição ao agente físico ruído acima de 90 decibéis. Mesmo assim, foi autorizada a produção de prova pericial em juízo, espancando qualquer dúvida acerca do labor especial. Mais do que isso. A prova comprovou a exposição do segurado a outros agentes, para além do ruído!

Vale lembrar que as únicas provas discutidas plenamente em contraditório são a pericial e testemunhal, pois neles se conta com a participação das partes, mediante a formulação de quesitos/perguntas. Essa argumentação foi encampada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: “Em matéria previdenciária, a prova pericial é condição de possibilidade, é certo que as únicas provas discutidas em contraditório são a prova pericial e testemunhal. O contraditório não se estabelece no que diz respeito ao formulário fornecido pela empresa (PPP), um documento criado fora dos autos, isto é, sem a participação do segurado” (AgInt no AREsp 576.733/RN, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 25/10/2018, DJe 07/11/2018).

É por esse motivo que deve ser prestigiada a imparcialidade que caracteriza a prova produzida no curso do processo jurisdicional. Na existência de conflito entre os fatos demonstrados no PPP e as constatações registradas no laudo pericial produzido em juízo, deve preponderar a prova judicial (TRF4, AC 5034367-41.2014.4.04.7108, QUINTA TURMA, Relator OSNI CARDOSO FILHO, juntado aos autos em 26/07/2020). Na espécie, contudo, a prova judicial veio confirmar o labor especial já reconhecido no PPP.

A sentença confirmou o tempo de serviço especial. Já deu para perceber que estamos falando de um caso real. A realidade é muito pior! Eis que a Turma Recursal do Rio Grande do Sul simplesmente afastou a especialidade, adotando como fundamento:

Inicialmente, no tocante à perícia técnica judicial, destaco que, no entendimento desta Turma Recursal, tal meio de prova não se revela o meio mais adequado à verificação das condições ambientais do labor exercido, especialmente diante da juntada de formulários PPP devidamente preenchidos, com indicação do responsável técnico, e de laudo técnico da própria empresa empregadora.

Em relação aos períodos de [...], a partir da descrição das atividades do segurado, verifico que a exposição a ruído acima dos limites previstos na legislação não era habitual e permanente - requisito imprescindível a contar da Lei n.º 9.032/95-, o que impede o reconhecimento do tempo de serviço especial. Com efeito, um dos trechos dos laudos técnicos informa que a exposição a ruído era eventual.

Em resumo: a decisão deu preferência ao PPP emitido pela empresa e, mesmo com o documento comprovando a exposição do segurado ao agente físico ruído acima de 90 decibéis, concluiu que a exposição era eventual. Com a devida vênia, seria mais fácil se alguns magistrados admitissem sua parcialidade.

Algumas coisas nos deixam extremamente revoltados, mas sugerimos que essa revolta seja direcionada e canalizada para algo produtivo, como escrever artigos! Não existe exposição intermitente ao agente físico ruído. O nível de ruído indicado no PPP é sempre representativo da jornada de trabalho. O agente físico observa o binômio intensidade/duração. Assim, quando maior o nível de ruído; menor o tempo de duração. A cada 5 decibéis aumentados, deve-se reduzir o período de exposição ao som pela metade:

8 h/dia........................................................85 dB

4 h/dia........................................................90 dB

1 h/dia......................................................100 dB

30 min/dia................................................105 dB

15 min/dia................................................110 dB

A dose ou NEN é sempre o resultado da medição de um conjunto de situações acústicas ao qual está submetido o trabalhador no decorrer de toda a jornada de trabalho. Suponhamos que, durante uma jornada de 8 horas, o segurado trabalhou 4 horas exposto a nível de pressão sonora de 76 decibéis e, no restante, a um nível de 90 decibéis. Aplicando o cálculo da dose conforme o anexo 1 da NR-15 e levando em consideração o NPS de 76 dB(A) no cálculo, teremos um ruído de 85,1 dB(A) para um tempo de exposição de oito horas. Vamos supor que, neste caso, a jornada de trabalho do segurado seja de 44 horas semanais. Desta forma teremos que realizar o cálculo do NEN – Nível de Exposição Normalizado, pois a exposição diária ao ruído será diferente de 480 minutos, mais precisamente de 528 minutos. Procedendo o cálculo, teremos um NEN de 85,8 dB(A). Como os efeitos são cumulativos, a dose de exposição de ruído se dilui ao longo da jornada de trabalho. Sendo assim, considerando-se uma taxa de duplicação de dose de 5, um NPS de 90, é possível se considerar o trabalho insalubre.

É por isso que existe um cálculo a ser feito com base no tempo de exposição a cada nível de ruído, o qual se chama “dose”. Se o resultado deste cálculo for superior a 1 ou 100%, significa que o limite de tolerância para uma jornada de trabalho de 8 horas foi ultrapassado. Considerando a taxa de duplicação de dose do Anexo 1 da NR-15, a cada incremento de 5 dB(A) há a duplicação do nível de pressão sonora (NPS) e a respectiva redução pela metade do tempo de exposição a este NPS, ou seja: 85 dB(A) - 8 horas; 90 dB(A) - 4 horas; 95 dB(A) - 2 horas; 100 dB(A) - 1 hora e assim sucessivamente até o limite máximo de 115 dB(A), nível este que é considerado pela norma trabalhista como de risco grave ou iminente. Deve ficar bem claro que até este momento não foi calculado o NEN, que deve ser realizado caso a jornada de trabalho do trabalhador seja diferente de 8 horas diárias. Não se pode aprofundar esse ponto aqui.

Havendo qualquer dúvida sobre a dose de exposição diária ao agente físico ruído ao qual esteve exposto o trabalhador, a prova pericial objetiva, exatamente, a proteção do segurado. A perícia a ser realizada, por força do Tema 1083/STJ, visa – também – comprovar a habitualidade e a permanência da exposição ao agente físico ruído:

No entanto, quando ausente informação sobre o NEN no Perfil Profissiográfico Previdenciário - PPP ou no Laudo Técnico de Condições Ambientais do Trabalho – LTCAT, deverá ser adotado como critério o nível máximo de ruído ou nível de pico de ruído, desde que perícia técnica judicial comprove, também, a habitualidade e a permanência da exposição ao agente nocivo na produção do bem ou na prestação do serviço, conforme disposto no art. 369 do CPC/2015 e na jurisprudência pátria, consolidada na Súmula 198 do extinto Tribunal Federal de Recursos.

Tal interpretação denota a adoção de raciocínio que, na realidade, beneficia o segurado, visto que não impõe a este a obrigatoriedade de providenciar a correção no formulário, mas permite que a atividade especial seja demonstrada nos próprios autos da ação previdenciária.

Impende ressaltar que tanto a habitualidade como a permanência são requisitos exigidos pela Lei Previdenciária para a concessão de aposentadoria especial (art. 57, §§ 3º e 4º, da Lei n. 8.213/1991 e art. 65 do Decreto n. 3.048/1999), portanto não há como afastar sua prova baseada apenas na indicação do nível máximo de ruído no formulário, porquanto o ruído acima do limite de tolerância não resultará na especialidade do labor se a exposição for eventual.

Não se olvida que, de acordo com o art. 5º da LINDB, c/c o art. 8º do CPC/2015, o juiz, ao aplicar a lei, atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum, e, como é cediço, a finalidade da norma previdenciária é a proteção social do trabalhador. Contudo, a aplicação do ordenamento jurídico deve ser pautada pela observância do cumprimento dos requisitos legais para o exercício do direito previdenciário por seu titular.[1]

No caso concreto, a prova judicial, realizada na própria empresa, comprovou a exposição do autor a um Nível de Exposição Normalizada de 97,0 0 dB(A), sendo observadas as metodologias NHO-01 da Fundacentro e os limites de tolerância previstos no Anexo 1 da NR-15 (o que, caso não constasse no laudo, certamente seria usado como pretexto para se aplicar o Tema 174/TNU).

A decisão decorre duma escolha, logo, a fundamentação é só um detalhe, é “ornamentação”, como já vi dizer o Prof. Lenio Streck. Mais do que isso. Não há apenas uma escolha, há discricionariedade-arbitrariedade. Ao juiz não é possível simplesmente desconsiderar a prova pericial, como se inútil, com fundamento em presunções contra o destinatário das normas de proteção previdenciária. Tais argumentos não têm condições objetivas de se contrapor ao laudo. É necessário fixar um ônus argumentativo maior ao julgador para que possa deixar de seguir o laudo pericial, como a indicação de fragilidades sérias. Ah, quase que esqueço de um detalhe importante, a saber: o INSS sequer apresentou qualquer objeção contra o laudo pericial!

O CPC/2015 acabou com o livre convencimento (artigo 371) e, ainda, introduziu a exigência de coerência e integridade (artigo 926). Trata-se, pois, de um problema paradigmático, como denuncia Lenio Streck: “A dogmática jurídica recebe uma surra cotidiana dos próprios tribunais. [...]. Agora, eu pergunto: se você é advogado, como é que você quer que a prova seja apreciada livremente? [...]. Se você concorda que o juiz é livre para apreciar a prova e, casualmente, livremente ele apreciou a prova que não era a seu favor, por que você se queixa? Você não deveria ter se queixado antes? Você não deveria ter dito: olha, o problema é paradigmático, veja lá, não tem liberdade de conformação para examinar a prova? Então, vamos discutir isso antes. Vamos discutir o código de processo civil, o código de processo penal.”[2]

Não está na hora de discutirmos sobre o papel do magistrado no interior de um Estado Democrático de Direito? O juiz solipsista (“viciado em si mesmo”) é um inimigo da democracia ...um inimigo do Direito e, consequentemente, do segurado!

_____________________________________________

Bah1: EDcl no REsp n. 1.886.795/RS, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Seção, julgado em 27/4/2022, DJe de 18/5/2022.

Bah2: STRECK, Lenio Luiz. A hermenêutica filosófica e a teoria da argumentação na ambiência do debate positivismo (neo) constitucionalismo. In: Diálogos constitucionais: direito, neoliberalismo e desenvolvimento em países periféricos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 292.


Comentários

  1. Há alguns juízes que me fazem lembrar Procusto: o direito do segurado nunca se ajusta à cama, porque a cama que eles sempre mostram é aquela em que estão seus juízos inautênticos. E assim, o segurado é amputado; mas, na verdade, eles escondem a cama, a cama em que cabe um raciocínio do direito previdenciário como fundamental.

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