REVISÃO DA VIDA TODA: COMO CORTAR ESSE NÓ GÓRDIO?
Sobre o art. 97 da Constituição Federal, cumpre
observar que ao Superior Tribunal de Justiça não cabe apenas declarar a lei.
Aliás, a tarefa de nenhum juiz se restringe a de ser um ato de conhecimento. E
mais, não se pode transformar tudo numa “questão constitucional”, no sentido de
não ser possível ao STJ analisar lei ordinária ou ser do STF a competência
exclusiva para julgar ou, ainda, ser obrigatória a sua intervenção.
Lenio Streck, tratando da prescrição, explica:
É verdade que sempre haverá fumaça constitucional
nos atos normativos infraconstitucionais. Porém, disso não se extrai que se
pode abrir as portas da Corte Constitucional para que se interprete legislação
de cunho infraconstitucional, nos casos em que a questão constitucional — senão
inexistente — é, no máximo, reflexa. Aliás, o STF não admite considerar
questões em que a constitucionalidade aparece como meramente reflexa (tema
660). É disso que se trata, aqui. Não estou vinculado ao mérito sobre prescrição.
Discuto jurisdição. E questiono a panjurisdição constitucional.
[...]
Claramente há condicionantes institucionais que
limitam o exercício da atividade interpretativa, inclusive, a do STF. Pois se
ao STF for permitido se pronunciar por último também sobre a lei federal
(sempre), estaríamos então como que diante de uma espécie de poder de dicta.
Sempre que provocado, o Soberano pode reivindicar o seu poder de dicta para
afirmar sua interpretação soberana da lei?
Se tudo é constitucional, nada mais é. Porque isso
abre uma caixa de pandora que fragiliza a função autêntica da Suprema Corte: e
a de guardiã da Constituição.
[...]
Numa palavra convidativa para o debate: só quando
existir uma interpretação objetivamente arbitrária do STJ é que o STF pode
redefinir ou fixar interpretação (tese) em caso de HC. No mais, tem de apenas
julgar o writ a partir do sentido fixado na jurisprudência do STJ.
Ou seja, somente no caso de uma arbitrariedade
interpretativa é que o STF poderá transformá-la em uma questão constitucional
por violação do artigo que trata da legalidade na Constituição Federal. São as
condicionantes institucionais.
Em termos sistêmicos, vingando a tese do STF, a
partir de agora, qualquer matéria decidida pelo STJ poderá ser alterada pelo
STF, mesmo que não contenha uma ‘questão constitucional’. E todos correrão ao
STF. O STJ será rito de passagem. A ver se vale o risco.[1]
A Corte Cidadã, à luz da legislação
infraconstitucional, nada mais fez - e, por isso, muito - do que confirmar a
possibilidade de o segurado que preencher, simultaneamente, os requisitos da
regra de transição e da regra permanente, optar pela mais vantajosa. Simples
assim.
Agora, mesmo quando o julgador pensa estar
aplicando – exclusivamente – uma regra, há sempre um princípio sendo
homenageado ou violado. Não há como se deixar a Constituição (entendida, à toda
evidência, no seu todo principiológico) de fora da aplicação do Direito. As
regras devem estar em consonância com os princípios que as fundamentam. Na
questão da Revisão da Vida Toda, contudo, qualquer violação à preceito
constitucional seria oblíqua ou reflexa.
Assim, a despeito de o artigo 20, XI, da Lei n. 8.036/90 não prever tal hipótese, o STJ autorizou o levantamento do FGTS de uma mãe que pretendia utilizá-lo em benefício de seu filho portador do vírus da AIDS, e isso com fundamento nos direitos fundamentais à saúde, à vida e a dignidade, bem assim em função do caráter social do FTGS (STJ, REsp n. 249026-PR). Exemplos são muitos e colocam o problema da escolha.
Questões hermenêuticas à parte, o Supremo Tribunal
Federal conseguiu transformar a “Revisão da Vida Toda” numa questão
constitucional – mais do que isso, o STF colocou um “selo jurídico” numa
conquista hermenêutica.
Após concluir pela viabilidade da tese, vale dizer:
também à luz da Constituição, em sede de embargos de declaração, o
Ministro Cristiano Zanin agora decide que a decisão do STJ violou a cláusula de
reserva de plenário (CF, artigo 97), devendo, por isso, o processo retornar ao
STJ para uma nova análise – cumpre perguntar: à luz de qual legislação?
Contradições ao infinito, este, pois, é mais um capítulo da novela envolvendo a
Revisão da Vida Toda.
O nó górdio é usado como metáfora de um problema
insolúvel (desatando um nó impossível) resolvido facilmente por ardil astuto ou
por uma quebra de paradigma. Discorrer sobre o que aconteceu no caso da Revisão
da Vida Toda é suficiente para deslindar o caso e "cortar o nó
górdio", ou melhor, basta ao Supremo Tribunal Federal admitir que essa
questão já fora superada - expressamente no acórdão.
Na verdade, a situação está mais para o paradoxo de
Epiménides. Epiménides, que era cretense, e disse: "Todos os cretenses são
mentirosos". Portanto, o enunciado é verdadeiro se for falso e é falso se
for verdadeiro, pois quem o enuncia é um cretense mentiroso. Neste nível, se a
questão é constitucional, como já disse o próprio STF, o STJ não precisa mais
analisar a questão (de novo à luz da lei infraconstitucional), e, se for
infraconstitucional, o STF não poderia ter reconhecido a repercussão geral.
_________________________________________
Bah1: STRECK, Lenio Luiz. Prescrição: Quem é o
guardião da lei ordinária? STJ ou STF? Revista Consultor Jurídico, São Paulo,
13 fev. 2020. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/.../lenio-streck-agora-apostar...>.
Acesso em: 30 nov. 2023.
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