ADI 6096 E O PRAZO DECADENCIAL: O QUE SOBROU DO ART. 24 DA LEI 13.846/2019?
Muitos vão achar que não passa de um debate
acadêmico de escassa utilidade prática, eu entendo...
A partir da Lei 9.868/1999, são mecanismos aptos à
realização da filtragem hermenêutico-constitucional das leis: a interpretação
conforme a Constituição e a nulidade parcial sem redução de texto; mecanismos
esses que, definitivamente, foram incorporados à normatividade
jurídico-brasileira.
Em Jurisdição constitucional e decisão jurídica,
Lenio Luiz Streck aprofunda as seis hipóteses em que o Poder Judiciário pode –
deve – deixar de aplicar uma lei ou dispositivo de lei, entre elas:
c) quando aplicar a interpretação conforme a Constituição
(verfassungskonforme Auslegung), ocasião em que se torna necessária uma adição
de sentido ao artigo de lei para que haja plena conformidade da norma à
Constituição. Nesse caso, o texto de lei (entendido na sua “literalidade”)
permanecerá intacto. O que muda é o seu sentido, alterado por intermédio de
interpretação que o torne adequado à constituição. Trabalha-se, nesse ponto,
com a relação “texto-norma”. Como poderá ser visto amiúde mais adiante, a interpretação
conforme, a nulidade parcial sem redução de texto e as demais sentenças
interpretativas são importantes elementos para confirmar a força normativa da
Constituição. São sentenças interpretativas e perfeitamente legítimas, quando
proferidas sob o império de uma adequada teoria da decisão;
d) quando aplicar a nulidade parcial sem redução de texto
(Teilnichtigerklarung ohne Normtextreduzierung), pela qual permanece a
literalidade do dispositivo, sendo alterada apenas a sua incidência, ou seja,
ocorre a expressa exclusão, por inconstitucionalidade, de determinada(s)
hipótese(s) de aplicação (Anwendungsfalle) do programa normativo sem que se
produza alteração expressa do texto legal. Assim, enquanto, na interpretação
conforme, há uma adição de sentido, na nulidade parcial sem redução de texto ocorre
uma abdução de sentido (conforme item específico no capítulo em que discuto
esses mecanismos de aplicação do direito);
As duas hipóteses podem ser invocadas tanto
mediante o controle concentrado como difuso de constitucionalidade. Para o
autor: “Tais mecanismos, a toda evidência, podem e devem ser utilizados em sede
de controle difuso (juízes singulares e tribunais), não sendo monopólio do
Supremo Tribunal Federal”.[1]
No entanto, o que nos interessa – aqui e agora – é
analisar a ADI 6.096, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da
Indústria – CNTI, no qual foi requerida a declaração de inconstitucionalidade
da Medida Provisória n. 871/2019, convertida na Lei 13.846/2019, que, ao
conferir nova redação ao art. 103 da Lei de Benefícios da Previdência Social,
passou a limitar o direito fundamental à concessão do benefício previdenciário
ao prazo decadencial.
Note-se que, em sede de informações, a Presidência
da República defendeu a inépcia da petição inicial, em razão da impugnação
integral do texto da MP 871/2019 (não específica), devendo, por isso, ser
indeferida e o processo ser extinto sem exame do mérito, nos termos do art. 4º
da Lei 9.868/1999. De cara, restou prejudicada a análise do art. 22 da MP
871/2019, porquanto não incluído pela Lei 13.846/2019. Em uma delimitação mais
específica e explícita sobre o objeto da ADI, o relator sintetizou:
Assim, na linha do entendimento jurisprudencial
desta Corte e, ante a ausência de impugnação específica dos arts. 23, 24 e 26
da MP 871/2019 no decorrer das razões jurídicas expendidas na exordial, deve o
conhecimento da demanda recair sobre os arts. 1º a 21 e 27 a 30 (alegada
natureza administrativa) e 25, na parte em que altera os arts. 16, § 5º; 55, §
3º; e 115, todos da Lei 8.213/1991 (dito formalmente inconstitucional), assim
como na parte em que altera o art. 103, caput, da Lei 8.213/1991 (alegada inconstitucionalidade
material).
Com efeito, o voto foi divido em três (03) partes.
Na primeira, a Corte entendeu inexistir comprovação da ausência de urgência,
não havendo espaço para atuação do Poder Judiciário no controle dos requisitos
de edição da MP 871/2019. Na segunda, foi acolhido o parecer lançado pela
Procuradoria-Geral da República para afastar a preliminar trazida pela parte
autora relativa à inconstitucionalidade formal do art. 24 da Lei 13.846/2019,
equivalente ao art. 25 da MP 871/2019, na parte em que alterados os arts. 16, §
5º; 55, § 3º; e 115, da Lei 8.213/1991, ou seja, aqui se disse que os
dispositivos em questão não são comandos voltados a informar a atuação do Poder
Judiciário (escrevi sobre isso no meu último livro). Por outro lado, a
declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a
interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de
inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito
vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública
federal, estadual e municipal (Lei 9.868/1999, art. 24, parágrafo único).
Abre-se, aqui, um parágrafo para uma breve
reflexão. Na prática, os arts. 16, § 5º; 55, § 3º; e 115 da Lei 8.213/1991
vinculam o Poder Judiciário. O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, não abriu mão do art. 55, § 3º, da LB no Tema Repetitivo 629 e, mais
recentemente, no Puil 293 (Afetado 1188). Isso pode ser decisivo no julgamento
do Tema 1124, já que a Lei de Benefício não dá ao julgador opção para fixar os
efeitos financeiros em outra data que não a DER e/ou preenchimento dos
requisitos ensejadores do benefício previdenciário (arts. 54 e 57, § 2º,
combinados com o art. 49, inciso II).
Mas voltamos à ADI 6.096. Na terceira e mais
importante, a Suprema Corte analisou tão somente a alteração do art. 103 da Lei
8.213/1991, vale dizer: na parte que sujeita a prazo decadencial o ato de
indeferimento, cancelamento ou cessação de benefício previdenciário,
concluindo, pois, pela afronta ao direito à previdência social, consagrado no
art. 6º da Constituição Federal. Na decisão assim restou expresso:
Com efeito, o direito à previdência social é direito fundamental,
expressamente previsto pelo art. 6º da Constituição da República, que, fundado
no direito à vida, na solidariedade, na cidadania e nos valores sociais do
trabalho e consubstanciado nos objetivos da República em construir uma
sociedade livre, justa e solidária, em erradicar a pobreza e a marginalização e
em reduzir as desigualdades sociais e regionais, caracteriza-se como
instrumento assegurador da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial.
[...]
Ora, o dispositivo impugnado, ao estender a incidência do prazo
decadencial ao direito ou à ação da parte segurada ou beneficiária em face de
qualquer decisão administrativa negativa que tenha por objeto a concessão do
pedido relativo a pedido de benefício previdenciário, obstaculiza a entrada de
ação revisional para confirmação da certeza jurídica quanto ao direito ou à
pretensão da parte beneficiária ou segurada no decorrer do lapso temporal que o
prazo atinge.
[...]
O prazo decadencial pode até fulminar a pretensão ao recebimento
retroativo de parcelas previdenciárias ou à revisão de sua graduação
pecuniária, mas jamais cercear integralmente o acesso e a fruição futura do
benefício, motivo pelo qual, como acima já sustentado, o art. 103 da Lei
13.846/2019, por fulminar a pretensão de revisar ato de indeferimento,
cancelamento ou cessação, compromete o direito fundamental à obtenção de
benefício previdenciário (núcleo essencial do fundo do direito), em ofensa ao
art. 6º da Constituição da República.
Do exposto, voto no sentido de conhecer parcialmente a ação direta e, na
parte remanescente, pela procedência em parte do pedido, declarando a
inconstitucionalidade do art. 24 da Lei 13.846/2019 no que deu nova redação ao
art. 103 da Lei 8.213/1991.
Mas afinal, qual a técnica decisória utilizada? O
Advogado-Geral da União opôs embargos de declaração, defendendo a possibilidade
de se conferir uma interpretação conforme à Constituição ao art. 103 da Lei n.
8.213/1991: “de modo a esclarecer que a decadência por ele veiculada atinge tão
somente os efeitos financeiros de benefícios previdenciários que tenham sido
originariamente indeferidos, cancelados ou cessados, não impedindo o
reconhecimento do fundo de direito em ulterior requerimento”. Em resposta, o
STF declarou a impossibilidade de aplicação da técnica de interpretação
conforme a Constituição à norma avaliada, sob o fundamento de que “seus efeitos
não são passíveis de limitação objetiva”. Em conclusão:
Com
efeito, se o prazo decadencial somente produzisse efeitos financeiros, a antiga
previsão estabelecida pelo art. 103 da Lei n. 8.213/1991 não necessitaria de
alteração, pois suficiente a redação do parágrafo único referente ao prazo
prescricional. No entanto, é justamente a modificação promovida pelo art. 24 da
Lei n. 13.846/2019 que se verifica inconstitucional.
Ao que tudo indica, o Supremo Tribunal Federal
aplicou a nulidade parcial, sem redução de texto, pois, segundo o próprio, a
interpretação conforme a Constituição constitui “técnica de controle de
constitucionalidade que encontra o limite de sua utilização no raio das
possibilidades hermenêuticas de extrair do texto uma significação normativa
harmônica com a Constituição”.
O foco foi abduzir sentido, isto é, excluir das
hipóteses de aplicação do art. 103 da Lei 8.213/1991 a concessão do benefício
propriamente dito (e aqui fica clara a diferença, e não cisão, entre regra e
norma). Assim, o STF declarou a inconstitucionalidade do art. 24 da Lei
13.846/2019 apenas no que a nova redação sujeita a um prazo decadencial o
direito à previdência social – um direito fundamental. Ganha importância a
fundamentação das decisões, uma vez que os motivos (fundamentos), embora não
sejam cobertos pela coisa julgada, dimensionam e determinam o alcance da parte
dispositiva. Não podemos esquecer que estamos diante de um precedente
construído para balizar casos futuros, envolvendo o tema da decadência.
Mas qual a importância, em termos práticos, dessa
discussão? Muitos são os efeitos práticos! Senão vejamos: A declaração de
inconstitucionalidade do artigo 24 da Lei 13.846/2019 abarca todas as situações
envolvendo o prazo decadencial? Resta mantido o inciso II do artigo 103 da Lei
8.213/1991, com redação emprestada pelo art. 24 da 13.846/2019? Note-se que o
Tema Repetitivo 975/STJ não enfrentou a redação emprestada pela Lei 13.846, de
2019, porquanto superveniente. Daí se segue com novas interrogações: Mas qual a
importância dessa lei? Ela não apenas reafirmou literalmente a existência de um
segundo termo inicial, mas foi além, conferindo a ele um lugar de destaque – na
segunda parte do inciso II:
Art. 103. O prazo de decadência do direito ou da ação do segurado ou
beneficiário para a revisão do ato de concessão, indeferimento, cancelamento ou
cessação de benefício e do ato de deferimento, indeferimento ou não concessão
de revisão de benefício é de 10 (dez) anos, contado:
I - do dia primeiro do mês subsequente ao do recebimento da primeira
prestação ou da data em que a prestação deveria ter sido paga com o valor
revisto; ou
II - do dia em que o segurado tomar conhecimento da decisão de
indeferimento, cancelamento ou cessação do seu pedido de benefício ou da
decisão de deferimento ou indeferimento de revisão de benefício, no âmbito
administrativo.
O Dec. 3.048/1999, após a redação emprestada pelo
Dec. 10.410/2020, incorporou a redação conferida pelo art. 24 da Lei
13.846/2019, com especial atenção para o segundo termo para contagem do prazo
decadencial. Enfim, o que se pode concluir, sem favor algum ao segurado, é que, no
restante, o artigo 24 é constitucional, nele compreendido o inciso II do art.
103 da Lei de Benefícios, que literalmente estabelece um segundo termo de
contagem do prazo decadencial: “da decisão de deferimento ou indeferimento de
revisão de benefício, no âmbito administrativo.”
Este é (só) mais um argumento para se defender a
existência de dois termos para contagem do prazo decadencial e/ou a
“interrupção do prazo decadencial”. O segundo (que depende do protocolo de
pedido de revisão dentro do prazo de 10 anos a contar do primeiro dia útil do
mês subsequente ao recebimento da primeira prestação) tem início a contar da
ciência da decisão de indeferimento do pedido de revisão, devendo ser observada
a matéria expressamente impugnada.
Ainda sobre a ADI 6.096, a meu ver, a Lei
13.846/2019 não trouxe nada de novo (ao incluir o inc. II no art. 103); ela
veio confirmar a existência de dois termos. Isso porque já tínhamos decisões
nesse sentido, antes e depois do julgamento do Tema Repetitivo 975/STJ.[2] O alcance da ADI não é decisivo para
se concluir pela existência (ou não) de dois termos. A propósito, as decisões
do STF têm esse problema, elas não deixam clara qual a técnica utilizada.
Às vezes, não é necessário (re)construir um novo
sentido que explique e convença melhor, mas perceber que aplicar o Tema 975 por
subsunção cria uma singularidade excludente, o que não é característica da
jurisprudência previdenciária. Aplicar o Tema 975 é dar uma interpretação mais
restritiva, sem que o STJ tivesse dito isso. Às vezes, devemos abrir mão de uma
linguagem estática, porquanto as coisas acontecem e esperam uma resposta
razoável do direito. Essa resposta já foi dada, inclusive pela TNU (tema 256).
Ela vai ao encontro do destinatário das normas previdenciárias e, o mais
importante, não afronta o Tema 975/STJ.
___________________________________
Bah1:
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias
discursivas. 5. ed., rev., mod. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 158-159.
Bah2: No
Recurso Especial nº 1566958 - PR (2015/0292044-7), o Superior Tribunal de
Justiça confirmou que o termo inicial do prazo decadencial é a data do
conhecimento pelo administrado do indeferimento do pedido de revisão. Oportuna
a transcrição do seguinte trecho da decisão: “Alega o recorrente ter
apresentado, na via administrativa, pedido de revisão do benefício, não tendo
obtido qualquer resposta da Administração. As instâncias de origem foram
uníssonas ao rejeitar a relevância da argumentação, consignando pela
impossibilidade de suspensão do prazo decadencial, julgando, nesse medida,
irrelevante a apresentação de pedido administrativo para a contagem do prazo
decadencial. Contudo, tal posicionamento afronta a jurisprudência desta Corte,
segundo a qual tendo sido negado formalmente pela administração o direito
pleiteado, o termo inicial do prazo decadencial é a data do conhecimento pelo
administrado do indeferimento do pedido.” No mesmo sentido Recurso Especial Nº
1566958 - PR (2015/0292044-7).
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