COERÊNCIA E INTEGRIDADE DO DIREITO: SEGUIMOS ROLANDO A PEDRA!

 

Em recente artigo escrevi sobre a necessidade de procurarmos, promovermos e institucionalizarmos as contradições, não apenas como um problema de justiça, mas para tentar conferir coerência às decisões.

Sobre algumas contradições:

a) quando o autor aposta em apenas um agente nocivo, muitas vezes, por conta da justificada confiança na jurisprudência do tribunal (e.g.: a questão envolvendo o ruído acima de 85 decibéis – vide redação revogada da Súmula 32/TNU) ele é penalizado por não ter deduzido todos agentes - inerentes à função – já no primeiro processo. Assim, mesmo obtendo uma prova nova, nos autos de uma reclamatória trabalhista movida contra a própria empresa, comprovando a exposição a um agente nocivo não examinado no primeiro, alega-se que deve ser aplicada a ficção da eficácia preclusiva da coisa julgada, o que significa dizer, por outras palavras, que o novo agente nocivo foi deduzido, discutido em contraditório e, consequentemente, rechaçado no processo anterior;

b) quando o advogado impugna (desafia e contextualiza) o formulário PPP e deduz, desde a petição inicial, todos os agentes nocivos – inerentes à função – a prova pericial é, na grande maioria dos casos, indeferida, transitando a decisão em julgado. O comportamento processual de que dele se esperava acaba, novamente, prejudicando o segurado, já que não foi oportunizada a sua participação no contraditório; 

c) numa possível ação rescisória, com fundamento na hipótese de prova nova (CPC, art. 966, VII), os filtros processuais são levados às últimas consequências, ficando o conceito de "prova nova" sempre a meio caminho: ou o laudo não foi obtido/descoberto após trânsito em julgado da decisão rescindenda; ou, quando emitido após o trânsito em julgado, ele não é contemporâneo ao tempo da ação originária (processo primitivo) - o tal "cobertor curto"; e, por fim

d) quando da prova nova é possível se extrair um fato novo (e.g.: um agente nocivo não examinado na demanda anterior), a 3ª Seção do Tribunal Regional Federal da 4ª Região julga improcedente a ação rescisória, entendendo que somente a prova precisa ser nova, e não o fato, logo, o caminho correto a ser seguido pelo segurado é o ajuizamento de uma nova ação, com fundamento numa diferente causa de pedir! E, assim, voltamos ao começo.  

No "Mito de Sísifo", um ensaio filosófico escrito por Albert Camus, em 1941, o último capítulo conta a história de um homem que, depois de desafiar a morte, é enviado ao Hades e condenado pelos deuses a rolar uma pedra até o alto da montanha, de onde ela desce de novo - e assim eternamente. No dia-a-dia do advogado, estamos sempre rolando a pedra e, em alguns momentos, com ela apostando corrida morro abaixo - tamanho o desespero! 

Toda vez que a prova pericial é indeferida, com fundamento no formulário “sem inconsistência” ou na suficiência de provas, o que se está dizendo, por outras palavras, é que todo e qualquer inconformismo deve ser impugnado na esfera trabalhista. Na medida em que o juiz não pode – ou não quer – postergar sua decisão na espera por maiores provas e/ou melhores informações técnicas, há que se ter maior tolerância no que diz respeito à garantia da coisa julgada. Isso encerra uma contradição gritante!

Não é possível o juiz indeferir a prova pericial, alegando que a ação previdenciária não é o meio (lugar) adequado para impugnar o PPP fornecido pelo empregador, ou seja, declinando da competência, e, depois do trânsito em julgado da decisão de improcedência, mesmo com o segurado obtendo uma prova nova, nos autos de uma reclamatória trabalhista – na qual a prova pericial vem suprir a prova negada na ação previdenciária –, acenar para a coisa julgada!

Assumindo o tribunal a incapacidade de processar e julgar uma demanda no qual se faz a impugnação do formulário PPP, como vem fazendo – expressamente – a 11ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (“a realização de avaliação técnica somente tem cabimento quando demonstrada a inviabilidade de correção do documento pela via adequada [Justiça do Trabalho]”)[1], este não poderá julgar o feito, com resolução de mérito. A questão merece ser analisada à luz do Tema Repetitivo 629/STJ, com especial atenção para os arts. 320, 485, IV, e 486 c/c 503, § 2º, todos do CPC. A rigor, não se aplica a coisa julgada se no processo houve restrições probatórias ou limitações à cognição do juiz.  

Com isso, identificam-se novos tipos de questões e formulam-se outras espécies de consequências práticas. Está tudo entrelaçado (prova pericial, coisa julgada e nova ação/rescisória) e por um fio. É necessário, por isso, conferir ao sistema jurídico integridade (compatibilidade com os diversos enunciados) e coerência (julgar casos iguais mediante semelhante raciocínio), conforme estabelece o art. 926 do CPC. Segundo Ronald Dworkin: “Os astrônomos postularam a existência de Netuno antes de descobri-lo. Sabiam que só um outro planeta, cuja órbita se encontrasse além daquelas já conhecidas, poderia explicar o comportamento dos planetas mais próximos.”[2] A integridade é o nosso Netuno.

Cabe, pois, ao tribunal decidir se possui (ou não) competência para julgar demandas complexas ou onerosas - essa sempre foi uma crítica ao sistema do JEF. Os advogados sempre buscaram o rito ordinário em busca do pleno contraditório. Com efeito, a nova orientação causou surpresa e injustiça, desorientando as partes que pautaram sua conduta de acordo com a possibilidade de demonstrar o seu direito por meio de perícia judicial, desde que demonstrada a necessidade/utilidade desta, a partir de um padrão de dúvida relevante (que trabalha com evidências sérias do labor especial). Em sendo a Justiça do Trabalho a via adequada para a impugnação do formulário PPP, os segurados poderão fazer o caminho inverso, ajuizando tantas ações trabalhistas quanto forem as empresas, com todas as implicações que isso tem na esfera previdenciária (demora, decadência, prescrição, efeitos financeiros, etc.), ou seja, voltamos à estaca zero - isso já havia sido superado. 

Sobre a necessidade de prova pericial, o Min. Gurgel de Faria deixou claro no julgamento do Tema Repetitivo 1083/STJ: "Tal interpretação denota a adoção de raciocínio que, na realidade, beneficia o segurado, visto que não impõe a este a obrigatoriedade de providenciar a correção no formulário, mas permite que a atividade especial seja demonstrada nos próprios autos da ação previdenciária". 

Lembrei agora: num dos muitos casos, a prova pericial foi indeferida sob o fundamento de que o formulário PPP deveria ser impugnado na esfera trabalhista. A sentença julgou improcedente o pedido, detalhe, com fundamento na ausência de dados que poderiam ser supridos pela prova pericial. Após o trânsito em julgado da decisão, o segurado/beneficiário obteve um novo PPP, resultante de uma reclamatória trabalhista contra a empresa, comprovando a sua exposição a agentes nocivos. Uma nova ação foi ajuizada, vale dizer: qualificada por um novo PPP, agora, corrigido na "via adequada". Apesar do documento separar o segurado do seu benefício, o processo foi extinto, sem resolução de mérito, com fundamento na coisa julgada. É quase assim:

Assim como no caso do homem declarado morto por engano, o segurado que dependia da Justiça Federal, notadamente da prova pericial, vê seu direito ser "enterrado vivo". Sim, porque a falta de tal providência inviabilizou a demonstração do seu direito. O juiz apostou no formulário PPP "sem inconsistências", um documento produzido fora do processo. Ao retornar à justiça com a prova do seu direito, o seu pedido foi negado! 

Às vezes, é assim que a justiça soluciona problemas, criando outros ainda mais graves, uma vez que a coisa julgada "fecha todas as portas". Em alguns casos, o não reconhecimento de um período, especial ou rural, representa, sim, uma privação perpétua para o segurado.

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Bah1: TRF4, AC 5001303-69.2017.4.04.7032, DÉCIMA PRIMEIRA TURMA, Relatora ELIANA PAGGIARIN MARINHO, juntado aos autos em 14/12/2022.

Bah2: DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 223.


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