ADI 6096 E O PRAZO DECADENCIAL: A CONFUSÃO ENTRE INTERPRETAÇÃO CONFORME E NULIDADE PARCIAL SEM REDUÇÃO DE TEXTO

 

Muitos vão achar que não passa de um debate acadêmico de escassa utilidade prática, eu entendo...

partir da Lei 9.868/1999, são mecanismos aptos à realização da filtragem hermenêutico-constitucional das leis: a interpretação conforme a Constituição e a nulidade parcial sem redução de texto; mecanismos esses que, definitivamente, foram incorporados à normatividade jurídico-brasileira.

Em Jurisdição constitucional e decisão jurídica, Lenio Luiz Streck aprofunda as seis hipóteses em que o Poder Judiciário pode – deve – deixar de aplicar uma lei ou dispositivo de lei, entre elas:

c) quando aplicar a interpretação conforme a Constituição (verfassungskonforme Auslegung), ocasião em que se torna necessária uma adição de sentido ao artigo de lei para que haja plena conformidade da norma à Constituição. Nesse caso, o texto de lei (entendido na sua “literalidade”) permanecerá intacto. O que muda é o seu sentido, alterado por intermédio de interpretação que o torne adequado à constituição. Trabalha-se, nesse ponto, com a relação “texto-norma”. Como poderá ser visto amiúde mais adiante, a interpretação conforme, a nulidade parcial sem redução de texto e as demais sentenças interpretativas são importantes elementos para confirmar a força normativa da Constituição. São sentenças interpretativas e perfeitamente legítimas, quando proferidas sob o império de uma adequada teoria da decisão;

 

d) quando aplicar a nulidade parcial sem redução de texto (Teilnichtigerklarung ohne Normtextreduzierung), pela qual permanece a literalidade do dispositivo, sendo alterada apenas a sua incidência, ou seja, ocorre a expressa exclusão, por inconstitucionalidade, de determinada(s) hipótese(s) de aplicação (Anwendungsfalle) do programa normativo sem que se produza alteração expressa do texto legal. Assim, enquanto, na interpretação conforme, há uma adição de sentido, na nulidade parcial sem redução de texto ocorre uma abdução de sentido (conforme item específico no capítulo em que discuto esses mecanismos de aplicação do direito);

As duas hipóteses podem ser invocadas tanto mediante o controle concentrado como difuso de constitucionalidade. Para o autor: “Tais mecanismos, a toda evidência, podem e devem ser utilizados em sede de controle difuso (juízes singulares e tribunais), não sendo monopólio do Supremo Tribunal Federal”.[1]

No entanto, o que nos interessa – aqui e agora – é analisar a ADI 6096, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria – CNTI, no qual foi requerida a declaração de inconstitucionalidade da Medida Provisória n. 871/2019, convertida na Lei 13.846/2019, que, ao conferir nova redação ao art. 103 da Lei de Benefícios da Previdência Social, passou a limitar o direito fundamental à concessão do benefício previdenciário ao prazo decadencial.

Note-se que, em sede de informações, a Presidência da República defendeu a inépcia da petição inicial, em razão da impugnação integral do texto da MP 871/2019 (não específica), devendo, por isso, ser indeferida e o processo ser extinto sem exame do mérito, nos termos do art. 4º da Lei 9.868/1999. De cara, restou prejudicada a análise do art. 22 da MP 871/2019, porquanto não incluído pela Lei 13.846/2019. Em uma delimitação mais específica e explícita sobre o objeto da ADI, o relator sintetizou:

Assim, na linha do entendimento jurisprudencial desta Corte e, ante a ausência de impugnação específica dos arts. 23, 24 e 26 da MP 871/2019 no decorrer das razões jurídicas expendidas na exordial, deve o conhecimento da demanda recair sobre os arts. 1º a 21 e 27 a 30 (alegada natureza administrativa) e 25, na parte em que altera os arts. 16, § 5º; 55, § 3º; e 115, todos da Lei 8.213/1991 (dito formalmente inconstitucional), assim como na parte em que altera o art. 103, caput, da Lei 8.213/1991 (alegada inconstitucionalidade material).

Com efeito, o voto foi divido em três (03) partes. Na primeira, a Corte entendeu inexistir comprovação da ausência de urgência, não havendo espaço para atuação do Poder Judiciário no controle dos requisitos de edição da MP 871/2019. Na segunda, foi acolhido o parecer lançado pela Procuradoria-Geral da República para afastar a preliminar trazida pela parte autora relativa à inconstitucionalidade formal do art. 24 da Lei 13.846/2019, equivalente ao art. 25 da MP 871/2019, na parte em que alterados os arts. 16, § 5º; 55, § 3º; e 115, da Lei 8.213/1991, ou seja, aqui se disse que os dispositivos em questão não são comandos voltados a informar a atuação do Poder Judiciário (escrevi sobre isso no meu livro).

Na terceira e mais importante, a Suprema Corte analisou tão somente a alteração do art. 103 da Lei 8.213/1991, vale dizer: na parte que sujeita a prazo decadencial o ato de indeferimento, cancelamento ou cessação de benefício previdenciário, concluindo, pois, pela afronta ao direito à previdência social, consagrado no art. 6º da Constituição Federal. Na decisão assim restou expresso:

Com efeito, o direito à previdência social é direito fundamental, expressamente previsto pelo art. 6º da Constituição da República, que, fundado no direito à vida, na solidariedade, na cidadania e nos valores sociais do trabalho e consubstanciado nos objetivos da República em construir uma sociedade livre, justa e solidária, em erradicar a pobreza e a marginalização e em reduzir as desigualdades sociais e regionais, caracteriza-se como instrumento assegurador da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial.

[...]

Ora, o dispositivo impugnado, ao estender a incidência do prazo decadencial ao direito ou à ação da parte segurada ou beneficiária em face de qualquer decisão administrativa negativa que tenha por objeto a concessão do pedido relativo a pedido de benefício previdenciário, obstaculiza a entrada de ação revisional para confirmação da certeza jurídica quanto ao direito ou à pretensão da parte beneficiária ou segurada no decorrer do lapso temporal que o prazo atinge.

[...]

O prazo decadencial pode até fulminar a pretensão ao recebimento retroativo de parcelas previdenciárias ou à revisão de sua graduação pecuniária, mas jamais cercear integralmente o acesso e a fruição futura do benefício, motivo pelo qual, como acima já sustentado, o art. 103 da Lei 13.846/2019, por fulminar a pretensão de revisar ato de indeferimento, cancelamento ou cessação, compromete o direito fundamental à obtenção de benefício previdenciário (núcleo essencial do fundo do direito), em ofensa ao art. 6º da Constituição da República.

Do exposto, voto no sentido de conhecer parcialmente a ação direta e, na parte remanescente, pela procedência em parte do pedido, declarando a inconstitucionalidade do art. 24 da Lei 13.846/2019 no que deu nova redação ao art. 103 da Lei 8.213/1991.

                Mas afinal, qual a técnica decisória utilizada? O Advogado-Geral da União opôs embargos de declaração, defendendo a possibilidade de se conferir uma interpretação conforme à Constituição ao art. 103 da Lei n. 8.213/1991: “de modo a esclarecer que a decadência por ele veiculada atinge tão somente os efeitos financeiros de benefícios previdenciários que tenham sido originariamente indeferidos, cancelados ou cessados, não impedindo o reconhecimento do fundo de direito em ulterior requerimento”.

            Em resposta, o STF declarou a impossibilidade de aplicação da técnica de interpretação conforme a Constituição à norma avaliada, sob o fundamento de que “seus efeitos não são passíveis de limitação objetiva”. Em conclusão:

Com efeito, se o prazo decadencial somente produzisse efeitos financeiros, a antiga previsão estabelecida pelo art. 103 da Lei n. 8.213/1991 não necessitaria de alteração, pois suficiente a redação do parágrafo único referente ao prazo prescricional. No entanto, é justamente a modificação promovida pelo art. 24 da Lei n. 13.846/2019 que se verifica inconstitucional.

            Ao que tudo indica, o STF aplicou a nulidade parcial sem redução de texto, excluindo das hipóteses de aplicação da norma do artigo 103 da lei de Benefício os casos de indeferimento, cancelamento ou cessação do benefício previdenciário. Segundo o próprio STF, a interpretação conforme a Constituição constitui “técnica de controle de constitucionalidade que encontra o limite de sua utilização no raio das possibilidades hermenêuticas de extrair do texto uma significação normativa harmônica com a Constituição”.

            O foco foi muito mais abduzir sentido, declarando a inconstitucionalidade do art. 24 da Lei 13.846/2019 no que deu nova redação ao art. 103 da Lei 8.213/1991. Na verdade, as técnicas de decisão aparecem misturadas, evidenciando, por vezes, a falta de técnica. Não podemos esquecer que estamos diante de um precedente construído para balizar casos futuros, envolvendo o tema da decadência.

Mas qual a importância, em termos práticos, dessa discussão? Muitos são os efeitos práticos! Senão vejamos: A declaração de inconstitucionalidade do artigo 24 da Lei 13.846/2019 abarca todas as situações envolvendo o prazo decadencial? Resta mantido o inciso II do artigo 103 da Lei 8.213/1991, com redação emprestada pelo art. 24 da 13.846/2019?

O Tema 975/STJ, por exemplo, não enfrentou a redação emprestada pela Lei 13.846, de 2019, porquanto superveniente. Mas qual a importância dessa lei? Ela não apenas reafirmou literalmente a existência de um segundo termo inicial, mas foi além, conferindo a ele um lugar de destaque – na segunda parte do inciso II:

Art. 103.  O prazo de decadência do direito ou da ação do segurado ou beneficiário para a revisão do ato de concessão, indeferimento, cancelamento ou cessação de benefício e do ato de deferimento, indeferimento ou não concessão de revisão de benefício é de 10 (dez) anos, contado

 

I - do dia primeiro do mês subsequente ao do recebimento da primeira prestação ou da data em que a prestação deveria ter sido paga com o valor revisto; ou

 

II - do dia em que o segurado tomar conhecimento da decisão de indeferimento, cancelamento ou cessação do seu pedido de benefício ou da decisão de deferimento ou indeferimento de revisão de benefício, no âmbito administrativo.

 

O Dec. 3.048/1999, mesmo após a redação emprestada pelo Dec. 10.410/2020, manteve a mesma semântica. Enfim, o que se pode inferir disso tudo é que, no restante, o artigo 24 é constitucional, nele compreendido o inciso II do art. 103 da Lei de Benefícios, que literalmente estabelece um segundo termo de contagem do prazo decadencial: "da decisão de deferimento ou indeferimento de revisão de benefício, no âmbito administrativo." Correta, portanto, a decisão da TNU  no julgamento do Tema 256.

Este é (só) mais um argumento para se defender a existência de dois termos para contagem do prazo decadencial e/ou a "interrupção do prazo decadencial". O segundo (que depende do protocolo de pedido de revisão dentro do prazo de 10 anos a contar do primeiro dia útil do mês subsequente ao recebimento da primeira prestação) tem início a contar da ciência da decisão de indeferimento do pedido de revisão, devendo ser observada a matéria expressamente impugnada.

 

Escrito por Diego Henrique Schuster

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Bah1: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5. ed., rev., mod. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 158-159.

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