A PRESUNÇÃO DE INVALIDEZ NA APOSENTADORIA ESPECIAL E O CRITÉRIO DE CÁLCULO DO BENEFÍCIO NA "NOVA PREVIDÊNCIA"



Ainda sobre a aposentadoria especial, este texto foca em questões que escaparam ou cuja importância não se percebeu, vale dizer: de modo reflexivo ou para além de uma reprodução da literalidade dos novos enunciados, mormente por parte de quem aprovou a reforma da previdência social. A retomada do tema, portanto, não é pura repetição do que já foi dito.
Uma reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência sem a qual a aposentadoria especial pode virar uma ficção e a realidade uma tragédia. O mineiro exerce o seu trabalho num ambiente (minas) que é sempre associado a uma “atmosfera pesada”, com pouco oxigênio e mistura de poeira, o que afeta seriamente o pulmão desses trabalhadores, provocando uma série de problemas à saúde, como a pneumoconiose (conhecida como pulmão negro), além de distúrbios do coração, diminuição digestiva do organismo etc. Em vista disso, entre 35 e 45 anos o trabalhador em minas poderia ser considerado incapaz para o trabalho.[1]
A despeito de a lei exigir apenas 15 anos de efetiva exposição a agentes nocivos, a “nova previdência” estabelece uma idade mínima de 55 anos, devendo o cálculo do benefício observar o disposto no § 5º do art. 26 da EC 103/2019: 60% + 2% para cada ano que exceder os 15 anos de contribuição. Neste nível, o segurado somente atingirá um benefício integral (100% da média) após 35 anos de contribuições, o mesmo tempo exigido para uma mulher que nunca trabalhou sob condições especiais, ou seja, como se nada justificasse um tratamento diferenciado para quem trabalhou sujeito a agentes nocivos. Nunca na história do benefício previdenciário se aplicou um coeficiente tão baixo.
Daí o tom de surpresa, legítima surpresa, que envolve o tema. A aposentadoria especial traz consigo uma presunção de incapacidade! Sobre tal presunção, Feijó Coimbra leciona:
A aposentadoria é a prestação previdenciária concedida pela ocorrência do risco social invalidez. Esta tanto poderá ser a que se apura efetiva, em uma perícia médica, como aquela que a lei presume, ante circunstâncias que o legislador teve como geradora de incapacidade laborativa. Assim, a concedida por velhice, considerada como fator incapacitante por si mesma; a que se dá ao trabalhador após certo tempo de serviço, ao qual se atribui o mesmo caráter de gerador de desgaste físico e, no caso, a especial, destinada ao trabalhador emprenhado em atividades que, pelo reconhecido teor de periculosidade, de penosidade ou de insalubridade, persuadiram o legislador a tê-las como fator incapacitante após certo lapso de tempo mais curto [...]. O que justifica presumir-se incapaz o trabalhador, atestadora dessa incapacidade, ou sem implemento da idade bastante, é o exercício da atividade reconhecida em lei como fator do desgaste físico atuante de forma prenunciada.[2]
Não se pode aceitar como “benesse”, portanto, a redução do tempo de contribuição e idade mínima, em razão da efetiva exposição a agentes nocivos (durante 15 anos, no caso do mineiro), se, por outro lado, o valor do benefício poderá sofrer uma redução de até 40% da média de salários-de-contribuição. Alguém, então, poderia indagar: para efeitos de cálculo do benefício, é possível a comparação com uma aposentadoria por incapacidade permanente, decorrente do trabalho? Por outras palavras: não seria o caso de aplicação do inc. II, § 3º, art. 26, da EC 103/2019?
Art. 26. [...]
§ 3º O valor do benefício de aposentadoria corresponderá a 100% (cem por cento) da média aritmética definida na forma prevista no caput e no § 1º:
I - no caso do inciso II do § 2º do art. 20;
II - no caso de aposentadoria por incapacidade permanente, quando decorrer de acidente de trabalho, de doença profissional e de doença do trabalho.
Meu senso de justiça me diz que seria incompreensível discordar dessa possibilidade. O que me resta agora é explicar o meu ponto de vista e alinhar os princípios que comandam a aplicação das regras que regulamentam o benefício da aposentadoria especial, desde os critérios de acesso, passando pela caracterização e comprovação das atividades especiais até chegar no cálculo do benefício, e que cobram coerência e integridade do direito, tais como prevenção (em sentido lato senso), igualdade, proteção social e dignidade da pessoa humana. Tenho me referido a esses princípios em inúmeros trabalhos, logo, a intenção não é enfadar o leitor.
Quanto mais se pensa sobre, reconhecendo a incoerência em princípio, tanto mais fica claro que a “violação” do § 5º do art. 26 da EC 103/2019 é uma possibilidade, sob pena de afronta ao art. 201, § 1º, da CF.

Escrito por Diego Henrique Schuster
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Bah1: ROCHA, Julio Cesar de Sá da. Direito ambiental do trabalho: mudanças de paradigmas na tutela jurídica à saúde do trabalho. São Paulo: Atlas, 2013. P. 109-110.
Bah2: COIMBRA, Feijó. Direito previdenciário brasileiro. 7. ed. Rio de Janeiro: Edições Trabalhistas, 1997. p. 155-156. René Mendes faz uma importante observação, que confere maior destaque ao que se pretende demonstrar neste momento, qual seja, que “[...] o trabalho pode fazer com que as pessoas venham a morrer prematuramente, isto é, ‘antes da hora’” [...]”, por causas distintas daquelas “esperadas” (por agravos que ocorrem excessivamente em algumas categorias). Pode, ainda, “[...] agregar sofrimento à morte, como é o caso de muitos trabalhadores silicóticos que somente alcançam o direito de morrer depois de muito sofrimento produzido pela insuficiência respiratória crônica”, e pode prejudicar o direito de dignidade no ato de morrer (morte drástica, como o esmagamento em um moinho). MENDES, René. Saúde e segurança no trabalho: acidentes e doenças ocupacionais. In: FERNANDES, Reynaldo (Org.). O trabalho no Brasil no limiar do século XXI. São Paulo: LTr, 1995. p. 201. Daí que “no existe, en sentido estricto, un riesgo de muerte, sino unicamente el risgo de un acortamiente del tempo de vida. Quien considera que la “vida” es le bíen en de decir: “una larga vida”. LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales: lineamientos para una eoría general. México: Anhropos: Universidade Iberoamericana; Santafé de Bogotá: CEJA, Pontíficia Univeersidad Javeriana, 1998, nota de rodapé 58, p. 72.

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